A experiência brasileira de Welles
No centenário do diretor, Brasil relembra visita os bastidores do inacabado 'É tudo verdade'
Nesta quarta-feira, 6 de maio, a cinefilia global celebra a vida de um grande: Orson Welles, o “gênio que fez Cidadão Kane aos 26 anos”, como definem muitos cinéfilos, e que faria 100 anos hoje. Não seria pouco festejá-lo só por este filme, um eterno clássico, ainda inspirador e analisado com paixão mundo afora, mas o fato é que Welles tem muito mais a oferecer — inclusive, um filme brasileiro. Para celebrá-lo no Brasil, portanto, nada melhor que relembrar os bastidores deste longa-metragem inacabado que o cineasta de Wisconsin filmou no Brasil e cujas imagens ficaram guardadas por anos, em segredo, pelos estúdios Paramount.
Chama-se It’s all true – É tudo verdade e foi uma encomenda feita a Orson Welles em plena Segunda Guerra Mundial, como parte da Política de Boa Vizinhança dos Estados Unidos com a América Latina à época, sob Roosevelt. Realizado em 1942 e composto de três episódios, tem uma parte filmada no México, chamada My friend Bonito, e duas no Brasil, Carnaval (ou The story of samba) e Jangadeiros (Four men on a raft). Era para ser o terceiro filme feito pelo diretor para a RKO Pictures, com a qual ele rodou Cidadão Kane (1941) e Soberba (1942), mas a filmagem se complicou, suas relações com a companhia ficaram tensas, e o projeto terminou engavetado.
A mais interessante das histórias, ao menos do ponto de vista dos bastidores, é Jangeiros. Foi pinçada da imprensa, a partir de uma manchete da revista Time, para servir os propósitos de ressaltar a dignidade do trabalhador e a diversidade étnica e cultural da América, que estavam no programa norte-americano. No Brasil, o Governo no poder era o de Getúlio Vargas, e o país lutava por direitos trabalhistas. Four man on a raft (quatro homens numa jangada) foi a chamada de capa da Time, que contava como quatro pescadores navegaram em uma jangada de Fortaleza ao Rio de Janeiro em setembro de 1941 para protestar contra a exploração econômica que sofriam, obrigados a pagar metade de seus ganhos aos donos das jangadas para poder trabalhar.
Na reconstituição fílmica da navegação, que ficou famosa, os homens subiram novamente na jangada, mas foram virados por uma onda, e o líder dos quatro –Jacaré– desapareceu. Welles quis a todo custo terminar a filmagem, segundo ele, em homenagem a Jacaré, e a RKO se opôs, terminando a já fragilizada relação com ele e abortando o projeto. As imagens só foram redescobertas em 1985 por um diretor da Paramount, Fred Chandler, e usadas em 1993 em um documentário de Bill Crohn e Myron Meisel titulado É tudo verdade – Um filme inacabado de Orson Welles. Segundo o crítico Luiz Zanin, que escreveu sobre o tema para o Estado de S. Paulo, “o material referente à saga dos jangadeiros é esplêndido. Poucas vezes o Brasil e sua gente foram registrados em película de forma tão bela”.
Os outros dois episódios do longa fizeram menos alarde. My friend bonito, cuja realização foi passada por Welles – ocupado então com Soberba – às mãos do cineasta Norman Foster, contava a relação de um menino com um toro no México. The story of samba registrava o carnaval carioca.
No Brasil, o cineasta Rogério Sganzerla, autor do clássico nacional O bandido da luz vermelha (1968), se tornou um especialista na experiência brasileira de Orson Welles e filmou Nem tudo é verdade (1986), Tudo é Brasil (1987), A linguagem de Orson Welles (1990) e O signo do caos (2003), todos documentários sobre Welles. Já That’s a Lero Lero (1994), de Lírio Ferreira e Amin Stepple, é uma ficção que recria uma passagem real do cineasta pelo Recife, na ocasião da produção de É tudo verdade. Zanin, em sua matéria, ressalta a influência de Sganzerla e diretamente de Welles nas obras dos cineastas pernambucanos que integram o movimento do novo cinema pernambucano, batizado de Árido Movie. “Desse veio nasceria o Árido Movie, com seu longa inaugural, Baile perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, marco fundador do novo cinema pernambucano e seus autores, rebeldes e criativos, como Lírio e Paulo, Claudio Assis, Hilton Lacerda e outros. Autores que trazem uma inequívoca marca wellesiana”, escreveu.
Não é pouco, e não é tudo. O gênio de Cidadão Kane – responsável também por A guerra dos mundos, uma ficção radiofônica de 1938, inspirada no livro de H.G. Wells, que fez o público de fato acreditar que os Estados Unidos estavam sendo invadidos por alienígenas – também inspirou, com seu interesse pelo Brasil, o nosso maior festival de documentários, É tudo verdade, que o homenageou com uma mostra na edição deste ano.
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