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100 anos de Orson Welles
Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

Orson Welles, um gênio sem idade

Nunca saberemos quantas obras prodigiosas ele teria criado com liberdade

Carlos Boyero
Orson Welles em uma imagem da exposição de fotografias de Magnum 'A paixão pelo cinema', em Lisboa em 2001.
Orson Welles em uma imagem da exposição de fotografias de Magnum 'A paixão pelo cinema', em Lisboa em 2001.

Hoje ele faria cem anos. Não é necessário muito esforço para imaginar seu aspecto. Com relação a Orson Welles, tenho a sensação de que nunca foi jovem nem velho, de que não tinha idade ou que poderia aparentar a que desejasse, o que sempre foi uma coisa tão insólita como impressionante. Orson Welles não precisou aprender nem evoluir; sua personalidade e sua inteligência não tiveram alterações, foi deslumbrante, complexo e abençoado pela arte mais poderosa, desde a sua infância até o final.

Certamente as luzes e as trevas habitariam alguém tão especial, e imagino que ele poderia ser muitas vezes desesperador para quem financiava sua criatividade, mas também que, como o personagem da Alida Valli em O Terceiro Homem, o cinema continua em dívida permanente com ele e apaixonado por sua figura grandiosa e inquietante, mesmo que os fatos nos confirmassem coisas tão monstruosas, como que ele tentou enriquecer no mercado negro adulterando penicilina e deixando crianças inválidas naquela Viena devastada pela guerra.

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O fascínio despertado pelo sedutor, cínico e sinistro terceiro homem permaneceria intacto mesmo com a descoberta do seu reverso tenebroso. E você subiria com ele à roda-gigante do parque Prater para ouvir, hipnotizado, suas selvagens opiniões sobre a condição humana, os Borgias e o relógio de cuco, mas seria melhor que você se agarrasse muito forte a algum cabo, pois ele sem dúvida o atiraria ao vazio se você lhe causasse algum problema.

Não é por acaso que seu grande amor foi Shakespeare e que ele foi obcecado em transpor sua obra para o cinema, para meu gosto com resultado desigual em Macbeth e Otelo (e que me excomungue a Academia dedicada ao culto ao sagrado) e de forma comovedora em Falstaff – O Toque da Meia-Noite. E, obviamente, sempre precisou ter certeza de que entraria para a história como o Shakespeare do cinema. De igual para igual. Mas nunca saberemos quantas obras prodigiosas teria criado Welles (ou do que Maradona teria conseguido no futebol se o viciante pó branco não colonizasse seu organismo desde que se instalou em Barcelona) se lhe tivessem permitido engendrar seus múltiplos e ambiciosos projetos com plena liberdade criativa, conforme sua imaginação as concebeu, com orçamentos à altura do que pretendia fazer.

Welles dizia que conseguiu essa independência unicamente com Cidadão Kane, o luxuoso batismo no cinema daquele menino prodígio que revolucionaria a linguagem de contar histórias com uma câmera. Tenho sensações que são continuamente renovadas com esse filme, ao qual assisti pela primeira vez com um pé atrás, por causa das permanentes e solenes listas de historiadores e críticos declarando que era o que de mais bonito e profundo havia sido criado na história do cinema. E mesmo admitindo sua magia, seu mistério, sua potente expressividade, achei que não era para tanto, que diretores como Lubitsch, Keaton e Murnau é que haviam me presenteado com o mais parecido que existe com a felicidade na tela.

Tenho a sensação de que nunca foi jovem nem velho, de que não tinha idade

Mas de vez em quando um ímã estranho me obrigava a revisar a história desse homem temível e trágico que se despedia do mundo obcecado com esse enigmático e lírico Rosebud, algo maravilhoso e puro que possuiu e que depois foi levado pelo vento. E, nas últimas vezes em que vi o filme, fiquei hipnotizado, sua grandeza é autêntica. No entanto, Soberba, que Welles renegava, já que a produtora voltou a montar seu trabalho original, gerou em mim uma paixão desde o primeiro encontro. Quanta tristeza, sentimento, poesia, compreensão e sutileza existem na crônica do esplendor dos Ambersons e em sua inevitável queda, nas devastadoras faturas emocionais que podem acompanhar o progresso.

Cinco dos seus filmes me deixaram uma marca perpétua

E, naturalmente, me senti intrigado e cativado pelos perversos amores daquele marinheiro niilista que se pendura na mulher que menos lhe convém, na perturbadora e sombria A Dama de Xangai. Ou com essa sombria obra-prima que desprende um aroma de pesadelo perdurável, intitulada A Marca da Maldade, cujo início deslumbra perante a genialidade e audácia dessa câmera cujo virtuosismo só é equiparável ao de Hitchcock, mas que em seu desenvolvimento e nesse final inesquecível, com o lamentável e odioso ogro chamado Hank Quinlan sabendo-se derrotado e agonizante, mais bêbado, saudoso e solitário do que nunca, cria um nó na garganta e uma lembrança eterna na retina.

Sei que Welles é mais do que tudo isso, embora eu fique engasgado ou entediado com algumas de suas supostas obras de arte. Mas os cinco filmes que citei me deixaram uma marca perpétua. Era diferente, era único, era excessivo, era genial, o que não garante um eterno estado de graça, mas, quando este funcionava, paria criaturas inesquecíveis.

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