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Novo coronavírus se multiplica 1.000 vezes mais na garganta que o vírus da SARS

Monitoramento dos primeiros pacientes na Alemanha revela os mecanismos de propagação da doença

Manuel Ansede
Pessoal sanitário colhe amostras para análise de coronavírus em uma instalação de Munique (Alemanha).
Pessoal sanitário colhe amostras para análise de coronavírus em uma instalação de Munique (Alemanha).Matthias Schrader (AP)
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A humanidade ainda não compreendeu como um vírus desconhecido há apenas três meses já viajou por todo o planeta e obrigou bilhões de pessoas a se esconderem em suas casas. A comunidade científica está igualmente intrigada com isso, mas uma análise exaustiva de nove jovens infectados na Alemanha começa pelo menos a revelar a forma de propagação do coronavírus SARS-CoV-2. O novo agente patogênico se multiplica muito mais e em muito menos tempo que seu irmão mais velho, o primeiro vírus da síndrome respiratória aguda grave (SARS, na sigla em inglês), outro coronavírus que apareceu na China em 2002 e matou quase 800 pessoas antes que uma campanha internacional interrompesse a epidemia. A carga viral do novo coronavírus é mil vezes superior.

As nove pessoas analisadas se infectaram em um mesmo surto descoberto em 27 de janeiro em Munique, no sul da Alemanha. O estudo não diz, mas, pela data, se trata dos primeiros contagiados na Europa: trabalhadores da fábrica de autopeças Webasto que fizeram um curso de formação com uma colega chinesa. Desse mesmo foco também saiu o turista alemão detectado em La Gomera, nas ilhas Canárias, no que foi o primeiro caso confirmado na Espanha. O monitoramento dos nove pacientes, feito pelo médico Clemens Wendtner, mostra que o vírus não se multiplica só nos pulmões, como a SARS de 2002, mas também se replica de maneira incrivelmente ativa na garganta durante a primeira semana com sintomas.

A equipe de Wendtner, da Clínica Schwabing, de Munique, analisou amostras da garganta, dos pulmões, da saliva, das fezes, da urina e do sangue dos pacientes para entender o comportamento do novo coronavírus. Nas pessoas com um quadro leve, que foram quase todas, os pesquisadores isolaram vírus ativos na garganta e nos pulmões só até o oitavo dia após o início dos sintomas. O pico de carga viral ocorreu antes do quinto dia. No vírus da SARS de 2002, esse pico, com um milésimo de intensidade, ocorria entre 7 e 10 dias após o início dos sintomas. A diferença é crucial, porque a potente e rápida proliferação dos vírus na garganta de pessoas com sintomas muito leves as transforma em bombas-relógio para a propagação da doença.

As pessoas infectadas e praticamente assintomáticas são bombas-relógio para a disseminação da doença

Os modelos matemáticos, alimentados com os padrões de movimento de centenas de milhões de chineses registrados pelas empresas de telecomunicações, já revelaram que até 86% dos contágios no início da pandemia foram provocados por pessoas que tinham sintomas leves ou totalmente indetectáveis. A China, a Coreia do Sul e outros países asiáticos recomendam o uso generalizado de máscaras para evitar que esses portadores invisíveis transmitam o vírus. A OMS só aconselha o uso de máscaras se a pessoa tiver tosse ou espirros.

“Assusta e tem implicações”, afirma a virologista espanhola Margarita del Val sobre o novo estudo, do qual não participou. “Já sabíamos como o vírus é contagioso. Aqui demonstram o porquê”, explica. O novo coronavírus e o vírus da SARS de 2002 utilizam uma mesma porta de entrada no organismo humano, a proteína ACE2, que se expressa na superfície das células dos pulmões. É como uma fechadura que os vírus abrem com uma chave: sua proteína S. A análise alemã, publicado nesta quarta-feira na revista científica Nature, sugere que uma mutação nesta chave permite que o novo coronavírus abra outra porta, a das células da garganta.

“Este estudo também traz boas notícias: não encontraram vírus ativos nem no sangue nem na urina nem nas fezes”, informa Del Val, do Centro de Biologia Molecular Severo Ochoa, em Madri. Os exames de sangue dos nove pacientes mostraram que metade deles apresentava anticorpos contra o vírus após sete dias de sintomas, e todos os tinham após 14 dias. Entretanto, conforme observam os cientistas alemães, “os níveis de anticorpos neutralizantes não sugerem uma estreita correlação com o curso clínico da doença”. A aparição dos anticorpos ―gerados pelo corpo humano para se defender do invasor― não implica a eliminação imediata do vírus.

Os autores do estudo alertam que as futuras vacinas focadas em instigar a produção de anticorpos terão que “induzir respostas muito fortes para serem efetivas”. Margarita del Val acredita que isto será um impulso à estratégia do virologista espanhol Luis Enjuanes, cuja equipe no Centro Nacional de Biotecnologia trabalha para obter uma vacina a partir de uma versão atenuada do vírus, capaz de desencadear uma resposta imunológica completa sem causar a doença.

Quatro dos nove pacientes de Munique comunicaram perda do olfato e paladar

Alguns tipos de glóbulos brancos do sangue produzem anticorpos para lutar contra os vírus que circulam fora das células humanas. Outros glóbulos brancos, denominados linfócitos-T citotóxicos, destroem as próprias células infectadas, transformadas em autênticas fábricas de novos vírus. Uma vez dentro de uma célula humana, um coronavírus pode produzir até 100.000 cópias de si em apenas em 24 horas.

“Com uma vacina como a do grupo de Luis Enjuanes ficaria aberta a possibilidade de que se induza também a uma imunidade celular que pudesse agir sobre as fábricas de novos vírus, as células infectadas, ao mesmo tempo em que os anticorpos neutralizam as partículas de vírus infeccioso circulante”, explica Del Val. Outro caminho para desenvolver vacinas é utilizar apenas determinadas proteínas do vírus, mas a estimulação do sistema imunológico poderia ser insuficiente, conforme adverte a virologista. Para ela, as novas conclusões também obrigam a “avaliar com cautela” o uso de transfusões diretas de plasma sanguíneo de pacientes recuperados como tratamento experimental dos doentes. “Seria preciso usar os plasmas com a maior concentração de anticorpos possível”, aponta.

Perda de olfato

Quatro dos nove pacientes de Munique comunicaram uma perda do olfato e do paladar muito mais forte e duradoura que a típica de um resfriado comum. Por isso, há algumas semanas órgãos médicos de vários países recomendam o isolamento preventivo nesta época de pandemia das pessoas que perderem o olfato de maneira repentina e sem causa aparente. Segundo o novo estudo, este sintoma poderia estar relacionado com a intensa multiplicação do vírus nas células do trato respiratório superior, do nariz à garganta.

A análise dos nove pacientes alemães sugere que o vírus ataca o corpo humano em “duas ondas”, nas palavras de Margarita del Val. A primeira, concentrada na garganta e com sintomas leves ou indetectáveis, facilitaria a disseminação explosiva do vírus. Na segunda fase, só presente numa minoria dos doentes, a multiplicação do vírus se concentraria nos pulmões, de maneira similar à SARS de 2002, com pneumonias que podem chegar a ser letais.

Dois dos nove pacientes alemães chegaram a apresentar indícios preliminares de pneumonia. Em sua saliva, o vírus se manteve em níveis altos até nos dias 10 e 11. Segundo os autores, estes resultados sugerem que, nos casos leves, os médicos poderiam dar alta hospitalar aos pacientes a partir do décimo dia se a presença do RNA viral na saliva for baixa. Para evitar o “pequeno risco residual de contágio”, os pesquisadores recomendam o isolamento domiciliar destas pessoas até a cura total.

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