Moro presidenciável põe o pé no Nordeste com plateia de ex-bolsonaristas
Ex-juiz reúne 700 futuros eleitores e potenciais aliados do PP e do DEM no lançamento de sua biografia. Entre palestra e selfie, presidenciável do Podemos começa a desenhar sua estratégia na região menos afim a seu nome
A fila em frente à bilheteria do teatro instalado dentro de um shopping em Recife aumentava no fim de tarde deste sábado à medida em que o sol se escondia do outro lado de uma área de manguezal, próxima ao centro antigo da cidade. Os frequentadores, tomados pelo impulso natalino, subiam apressados e carregados de sacolinhas plásticas a escada rolante de acesso ao piso superior, onde seguranças estavam orientados a evitar constrangimento por ali. Havia uma excitação coletiva na hora de comprar o ingresso de 80 reais para assistir ao espetáculo. Por mais 16 reais, homens e mulheres de meia-idade, em sua maioria, tinham o direito a levar para a casa o livro escrito pela atração da noite, alçado à condição de presidenciável desde que se filiou ao Podemos para embarcar na disputa presidencial do ano que vem.
O ex-juiz Sérgio Moro foi recepcionado por uma plateia fervorosamente devota à figura do magistrado que fez fama e carreira política ao desvendar um esquema de corrupção que deu origem à operação Lava Jato. Antes de ser anunciado, Moro observou o clima por entre as cortinas pretas. A iluminação central diminuiu e um canhão de luz foi direcionado a duas cadeiras brancas no meio do palco, uma para ele, e outra para a jornalista que conduziria a sessão de perguntas que permitiu ao autor levar o público a reações histéricas. Moro foi aplaudido de pé por cerca de cinco minutos assim que apareceu de blazer e sem gravata. “Você é lindo, Moro”, gritou uma voz feminina, diante de um ex-juiz sem qualquer traço de timidez e aparentemente mais acostumado com o assédio. Ele riu, esperou a plateia respirar e passou a zanzar de um lado para o outro do palco a fim de conquistar a atenção do público.
A desenvoltura chamava a atenção não só de quem o trata como uma espécie de “novo mito”. “Ele está muito mais solto, isso é visível. E já nos disse que quer ter contato com o povo na rua o quanto antes”, diz ao EL PAÍS o senador Eduardo Girão (Podemos-CE), no papel de anfitrião de Moro em Recife. Horas antes de assumir a versão “showman” no palco, o ex-juiz fez a lição de casa e se juntou a figuras políticas em sua primeira passagem por uma capital do Nordeste, terra de seu principal adversário para suas pretensões presidenciais, desde que ingressou num partido político. Moro esteve em um almoço self-service tendo camarão como prato principal, regado ainda a vinho branco, oferecido pelo deputado Ricardo Teobaldo (Podemos-PE). O parlamentar abriu seu apartamento de frente à praia de Boa Viagem para que o novo colega de partido pudesse se relacionar com deputados, vereadores e prefeitos de cidades vizinha.
Na sala de estar, posou para fotos, conversou com correligionários e fez um breve discurso, colocando-se à disposição para acertar uma agenda que inclua visitas a outros estados nordestinos. Na busca pelo voto dos eleitores da região, usou de simbologia posando com um chapéu de cangaceiro ao lado de simpatizantes. O encontro foi reservado a simpatizantes e familiares do anfitrião, alguns com camisetas com alertas de combate à corrupção.
O Nordeste é um terreno a ser explorado pelo presidenciável nos próximos meses. O Podemos pretende estabelecer uma agenda intensa a ser cumprida na região já a partir de janeiro. A ideia é tentar ganhar a simpatia da maior parte possível dos 30,3% do eleitor que votaram em Bolsonaro no segundo turno da eleição de 2018, num apoio que hoje parece desidratar, segundo as pesquisas de opinião pública. Para isso, avaliam os aliados, será preciso criar um arco de aliança capaz de aglutinar as mais diferentes forças em torno de Moro. Ex-ministro da Educação no governo de Michel Temer e ex-governador de Pernambuco, José Mendonça Filho prestigiou o ex-ministro da Justiça. “Há muito o que se discutir em termos de aliança, mas Moro já se mostrou um político capaz de agregar”. Figuras locais de partidos que hoje compõem o chamado Centrão, de sustentação ao governo Bolsonaro, também estarão na mira daqui em diante.
O almoço em torno de Moro na casa de Teobaldo, por exemplo, já tinha entre os convidados políticos do Partido Progressista, agora um dos fiéis escudeiros de Bolsonaro. “Não tem como apoiar o governo que está aí. Eu vou de Moro, nem que eu tenha que sair do PP”, disse o deputado estadual Romero Albuquerque, um dos entusiastas na candidatura de Sergio Moro, ao lado da mulher, Andreza Romero, vereadora em Recife, também do PP, e dizendo-se pronta para buscar abrigo em outra legenda caso não encontre respaldo na direção do Progressista.
Do almoço, a turma de apoiadores seguiu em peso justamente para o teatro onde Moro fez uma performance que ultrapassava os ensinamentos de Constantin Stanislavski, teatrólogo mundialmente conhecido pelo seu método de preparação de atores. Moro interagia com a plateia, dava “deixas” para que o público reagisse, parecia controlar a respiração para soltar o recado certo na hora devida. O presidenciável se movimentava como se estivesse num palanque, ainda que em nenhum momento tenha se colocado oficialmente como pré-candidato.
Mas o discurso político foi o que deu o tom durante as duas horas em que provocava a plateia. Moro chegou a se referir a Lula como “vaca sagrada”, dada a reação da militância petista a cada investida sua quando era juiz no caso do petrolão. Frisou, no entanto, não ter nenhuma “animosidade pessoal” com o petista. Provocado a comentar sobre a decisão da Justiça de absolver Lula das acusações e de ser colocado sob suspeição nos processos que envolviam o ex-presidente, Moro repetiu uma resposta que havia dado minutos antes quando lembrou de alguns episódios sobre sua passagem no governo. “Existe a versão dos fatos e existem os fatos”.
Foi por várias vezes duro em relação a Bolsonaro, quando afirmou, ainda que de forma política, que o processo de combate à corrupção do presidente Bolsonaro não teve espaço no governo. Moro foi abandonado em praça pública quando reagiu contra a interferência de Bolsonaro na Polícia Federal. “Havia um interesse em interferir nos órgãos de controle para evitar questões que pudessem gerar problemas (para o presidente)”.
O nome de Moro aparece com vantagem nas pesquisas de intenção de voto, quando colocado lado a lado ao de outros que tentam se estabelecer como uma terceira via. Uma das especulações é a de que poderia fazer uma dobradinha com o governador de São Paulo, João Doria. A julgar pela medição de sua popularidade, os aliados acreditam que o ex-magistrado não pretende formatar precocemente uma aliança seja com quem for até que o cenário esteja mais consolidado. Ele mesmo despista: “Não vou falar agora de eleição”, disse, ao EL PAÍS.
A construção de uma terceira via, por ora, parece inviável dado o número de pré-candidatos que se colocam sem qualquer sinal de que estão prontos para um abraço coletivo. Entre os principais nomes que devem disputar a sucessão presidencial estão os dos ex-ministros Ciro Gomes (PDT-CE) e Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS), o do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), da senadora Simone Tebet (MDB-MS), além do de João Doria (PSDB-SP). Com chance remota para a construção de uma terceira via, aliados de Moro só pensam mesmo em furar a bolha da polarização. Moro já criou frases de efeito para ajudar nesse trabalho. “A impressão que dá (com o debate polarizado) é que o eleitor morreu e agora tem que escolher entre um caixão vermelho ou azul”, disse ele.
A comerciante Márcia Alves gravava emocionada o evento pelo celular. “Este homem vai nos salvar de tudo isso que está aí”, dizia ela, ainda que tendo sido uma das apoiadoras de Bolsonaro na eleição passada. “Ele nos traiu”, dizia, visivelmente emocionada enquanto equilibrava no colo uma bolsa preta de couro Chanel e duas sacolas em papelão reluzente da Gucci, loja de grife instalada no piso inferior reservado, em parte, a marcas luxuosas internacionais.
De repente, um burburinho próximo à entrada principal do teatro provoca um alvoroço entre os seguranças, rapidamente contornado pelos assessores. As portas são fechadas e os funcionários trajando ternos pretos, munidos de rádios-comunicadores, seguem para o lobby, onde um grupo de manifestantes grita palavras de ordem contra o ex-juiz. Uma faixa o acusava de prender o ex-presidente Lula sem provas. Jorge (que não quis dar o sobrenome) estava exaltado. Ele gritava contra Moro de um lado, enquanto, do outro, uma senhora com o livro estampado com a cara do ex-juiz na mão fazia uma espécie de pregação “em nome de Deus para que vocês tenham juízo”. A situação foi pacificada sem intercorrência, e Moro seguiu o script. Para crescer no Nordeste, fundamental para ganhar um eleição, o ex-juiz precisa vencer uma resistência grande. Pesquisa recente a Atlas Político mostra que numa eventual disputa com Lula no segundo turno, o ex-presidente teria 57% de apoio, contra 21% do presidenciável do Podemos.
Roteiro eleitoral no palco
O roteiro no palco foi uma espécie de revisionismo da carreira do ex-magistrado até a sua conflituosa participação no governo do presidente Jair Bolsonaro, a quem tratou com deboche, tal qual às dezenas de vezes em que citou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Os ataques, no entanto, cumpriam uma espécie de roteiro eleitoral. “A gente tem que ter alternativa e esperança, e por isso eu resolvi voltar (dos Estados Unidos). Eu resolvi voltar por vocês”. A cada afago no público, gritos e aplausos efusivos eram retribuídos pela equipe do teatro com um jogo luz especial que iluminava a plateia reagindo tal qual fã de banda pop na fila do gargarejo.
O ex-juiz foi especialmente aplaudido quando usou de ironia para falar do ano em que morou nos Estados Unidos. “Fui morar perto de Washington, aí já viu, né? Me chamavam aqui no Brasil de agente da CIA, de empregado da Globo e até de comunista. Imagina o contracheque?”, disparou, ele mesmo rindo da piada que encontrou eco na plateia: “Fora, comunistas. Fora. Fora. O Senhor está contigo, Moro”, gritou um homem calvo, cerca de 50 anos, numa manifestação religiosa bastante usual naquele ambiente. “Graças a Deus teremos ele (na eleição do ano que vem)”, repetiu algumas vezes ao EL PAÍS uma advogada de Curitiba, “terra natal” da Lava Jato e onde ela mesma pretende seguir carreira na magistratura estadual, inspirada na trajetória de Sergio Moro.
Enquanto citava trechos do livro, Moro parecia cada vez mais à vontade diante de cerca de 700 pessoas declaradamente seus eleitores. O EL PAÍS conversou com dezenas deles, todos, sem exceção, revelaram a condição de ‘bolsonarista arrependidos’. A professora aposentada Elizabeth Almeida dirigiu por três horas entre São Bento do Una e Recife para sentar-se na primeira fila. Ela se diz fã do ex-juiz, sobre quem ela tem uma tese a respeito da participação dele no governo Bolsonaro. “Ele botou em jogo a carreira dele para um governo que não o merecia”, disse ela, sem uma resposta assertiva a respeito dos motivos que levaram o ex-juiz a abandonar a carreira para ingressar num governo também alvo de denúncias.
Um dos primeiros a chegar ao auditório, o casal de médicos Mozart Lacerda e Lilian Vieira também abandonou o bolsonarismo para embarcar na campanha de Moro. Os dois são entusiastas de primeira hora da Lava Jato. Para Mozart, a operação sofreu um revés “quando entraram certas figuras no poder”. O apoio a Sergio Moro, no entanto, vem com ressalva a uma das polêmicas decisões de Moro quando estava à frente da 13ª Vara Federal de Curitiba e vazou o áudio em que a então presidente Dilma Rousseff conversa com um assessor em favor da nomeação de Lula para um ministério e, assim, ganhar foro privilegiado. “Sim, ele ultrapassou os limites da própria lei, mas essa decisão não desmonta a questão do combate à corrupção como um todo”, diz Mozart.
Diante de uma plateia aparentemente convertida à “ideologia morista”, o ex-juiz tratou de afagar lideranças políticas locais. Pediu uma salva de palmas à delegada Patrícia, ex-candidata ao governo de Pernambuco que já se colocou à disposição de Moro para apoiar informalmente as andanças do presidenciável pelo interior de Pernambuco. A campanha de Moro aproveitará a relação dela com o setor de segurança pública para formatar ainda mais o apoio de uma categoria com forte simpatia ao governo Bolsonaro. A candidatura de Moro deve avançar em busca de apoio de políticos que carregam suas patentes no nome, como delegados, coronéis e até soldados rasos. “Uma coisa é certa: ele quer tirar voto do Bolsonaro, e nada melhor do que falar diretamente aos militares, ao Judiciário, às forças policiais, pois boa parte dessa turma já não tem o presidente como referência política”, diz um procurador de São Paulo que chegou a atuar em processos desmembrados da Lava Jato.
Numa dinâmica aparentemente ensaiada, assessores mandam recado de que o tempo acabou e Moro precisa deixar o palco, sem qualquer chance de perguntas da plateia. O ex-juiz agradece, diz que por ele ficaria ali mais tempo e brinca dizendo que livros são ótimos presentes de Natal. Diante da insistência de um grupo frenético, ele volta para um “bis”, quando se agacha na ponta do palco, posa para fotos, autografa alguns exemplares, beija simpatizantes. Dali, se encontraria para um jantar com seis pessoas para avaliar sua primeira passagem no Nordeste como presidenciável. Antes de deixar o shopping, brincou: “Quem sabe não vem aí o volume 2?”.
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