“A internet caía, as ‘lives’ travavam, precisei comprar um celular”: os percalços para chegar a um Enem em crise
Provas ocorrem neste domingo e em 28 de novembro em meio à censura de questões pelo Governo, dúvidas sobre credibilidade e debandada do Inep
Começa neste domingo o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) mais desprestigiado da história. Pouco mais de três milhões de candidatos —o menor número em 16 anos— são esperados em todo o país para prestar a edição 2021 da prova, que termina em 28 de novembro. Esta é a segunda edição do Enem sob os percalços da pandemia, com estudantes enfrentando as dificuldades do ensino remoto, que acabou aprofundando ainda mais o poço da desigualdade e afunilou o acesso ao ensino superior. “A internet caía, as lives travavam, precisei comprar um celular novo que rodasse a plataforma”, lamenta Thayna Tales Gallé, de 18 anos. A bolsista da Escola Luminova, em Sorocaba (SP), pretende conquistar uma vaga no curso de pedagogia e diz ter sentido falta do contato com os professores, “das conversas no fim da aula na escola”.
Entre os ausentes deste ano, os jovens ouvidos pelo EL PAÍS confirmaram que a insegurança e a pandemia pesaram na decisão de ficar de fora. É o caso de Vinicius Carvalho do Ó, de 21 anos, de São Paulo. Ele se formou no ensino médio em 2017, mas desde então precisou focar no trabalho. Tinha como plano voltar aos estudos em 2021. Não deu. A necessidade de batalhar pela renda da casa, agravada pela crise econômica, adiou seus sonhos. Tainara Sousa, 20 anos, até se inscreveu em Salvador, mas decidiu que não fará a prova. Faltou preparo. Em 2020, não teve nenhuma aula, nem remota, na rede pública estadual da Bahia. Foi aprovada no ensino médio com o desempenho do Enem passado. Agora, teme que o quadro de ansiedade que já tinha fique ainda pior com o resultado da prova. A solução foi se resguardar e estudar mais para o ano que vem.
Como se não bastassem as dificuldades advindas da pandemia, o Inep, órgão do Governo federal responsável pelo exame, virou alvo de denúncias de censura e “pressão ideológica” para a confecção da prova, o que levou à uma debandada de 37 servidores, que colocaram seus cargos à disposição a pouco menos de 10 dias da prova. Quase 60 outros servidores assinaram um ofício em solidariedade aos colegas e denunciando a “fragilidade técnica e administrativa em que se encontra a gestão máxima do Inep”.
Entidades estudantis reagiram com uma ação pedindo o afastamento do presidente do instituto, Danilo Dupas —o que foi negado—, e o Tribunal de Contas da União (TCU) abriu processo para apurar as irregularidades após representação de parlamentares. “Esta edição do Enem está cercada de mensagens contraditórias”, lamenta Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais, da FGV, e ex-diretora de educação do Banco Mundial.
O Enem foi criado em 1998 e, em 2009, passou a adotar a Teoria de Resposta ao Item (TRI) para confecção e correção da prova, o que permite comparar as edições ao longo dos anos. Cada pergunta é pré-testada em escolas pelo país “disfarçadas” em meio a outras provas, para calibrar a dificuldade dos estudantes em respondê-las. Essas questões são elaboradas por professores credenciados, que seguem critérios técnicos estabelecidos em edital. A prova do Enem tem por característica questões acompanhadas de textos de contextualização e de propor reflexão crítica sobre a sociedade atual.
No início da semana, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que o Enem deste ano teria “a cara do Governo”, o que levantou dúvidas sobre a credibilidade e confidencialidade da prova. A declaração foi dada após servidores revelarem que questões envolvendo contextos sociopolíticos e socioeconômicos foram vetadas. Após a polêmica, Bolsonaro negou ter tido acesso ao conteúdo do exame, mas diversas evidências apontadas pelos servidores indicam que o conteúdo foi censurado. “É lamentável o presidente dizer que este Enem será a cara deste Governo, porque o Enem não tem que ter a cara de nenhum governo. Política educacional é política de Estado, não política de governo. Chega de visão ideológica sobre o que deveria ser a mais importante porta de acesso ao ensino superior, que é a característica principal do Enem”, critica Costin.
Para Daniel Perry, diretor do Curso Anglo, preparatório para vestibular, o Governo deu sinais de que há temas que podem ficar de fora da prova neste ano. “O atual Governo federal se opõe às pautas dos movimentos identitários, como dos coletivos negros, LGBTQIA+, feministas, indígenas. Dessa forma, você pode esperar uma prova que não aborde estes assuntos, ou mesmo faça referência a eles. Também causa incômodo no Governo a discussão em torno dos movimentos revolucionários de esquerda nos séculos XIX e XX. E é tabu, na atual administração, os debates a respeito da ditadura militar brasileira e regimes congêneres na América Latina.”
Baixa adesão
Nesta edição, são esperados 3.109.762 candidatos —3.040.871 na prova impressa e 68.891 na digital, feita em computadores sem acesso à internet. É o menor número desde 2005, e 45,3% inferior ao da edição passada, quando eram esperados 5,6 milhões de inscritos. Na análise de dados por cor e raça, a maior redução ocorreu entre indígenas (55,18% menos candidatos nesta edição), seguido por pretos (53,36% menos) e pardos (redução de 55,99%), o que evidencia a exclusão social.
A baixa adesão é reflexo de incertezas sobre a organização do exame, que no ano passado sofreu adiamento de data, foi aplicado em meio à alta de casos de covid-19 e teve estudantes barrados em salas lotadas. Durante o período de inscrições, o Ministério da Educação (MEC) manteve a exigência de que os alunos beneficiados com a isenção da taxa de 85 reais, e que faltaram à prova no ano passado, deveriam comprovar o motivo da ausência para seguir tendo acesso ao benefício. Entre os motivos aceitos no edital, não havia nada relacionado ao risco da pandemia. A Justiça determinou que o MEC reabrisse as inscrições sem exigência de justificativa. Os candidatos desta segunda leva vão fazer a prova em janeiro.
“O reduzido número de inscritos neste Enem se explica em parte pelo fechamento das escolas, o que levou a um preparo insuficiente, especialmente de alunos que vêm de famílias em situação de vulnerabilidade, dada a baixa conectividade, a inexistência de livros nas casas e, muitas vezes, também a falta de equipamentos tecnológicos. Também teve esse processo estranho de tirar a isenção de um grupo de participantes, como um castigo por eles não terem comparecido, o que mostra uma grande insensibilidade do ministro da Educação”, avalia Costin.
Qual é a cara do Enem?
As críticas que se somaram contra o Inep e o Enem levaram o presidente do instituto, Danilo Dupas, a prestar esclarecimentos na Câmara no último dia 10. Ele assegurou a realização do exame e minimizou as críticas. O ministro da Educação também correu para colocar panos quentes. “O Enem tem a cara do Governo, no sentido de competência, honestidade, seriedade, essa é a cara do Governo”, disse Milton Ribeiro, também na Câmara dos Deputados. Mas ainda há pontos obscuros nas denúncias dos servidores, como a presença de um policial federal, em 2 de setembro, na sala onde ficam armazenadas as questões e a prova do Enem.
O sigilo do exame foi posto em xeque. “Não dá para discutir que, se muita gente conhecer as perguntas da prova, inclusive dirigentes e governantes, algum familiar de um desses dirigentes que vá prestar a prova pode ter visto as questões que nela vão cair. Então o sigilo é uma questão fundamental”, explica Costin. O jornal O Estado de S. Paulo revelou que 24 questões foram “censuradas” neste exame pelo diretor de Avaliação da Educação Básica do Inep, Anderson Oliveira, que é formado em direito, tem passagens pelo ministério da Economia e da Justiça, e está há seis meses no cargo. Para manter o nivelamento da prova, 13 dessas questões voltaram ao conjunto de avaliação.
A Folha de S.Paulo publicou que Bolsonaro pediu ao ministro da Educação que o golpe militar do Brasil fosse tratado como “revolução” na prova. Em 2019, uma comissão criada para avaliar o conteúdo do Banco de Itens do exame já havia recomendado alterar o termo “ditadura” por “regime militar” nas questões da prova, além de sugerir a exclusão de 66 perguntas por terem “leitura direcionada da história”, “leitura direcionada do contexto geopolítico”, e “polêmica desnecessária”. Segundo a revista Piauí, entre as polêmicas desnecessárias estava uma tirinha da personagem Mafalda, do Quino. A peça mostrava um diálogo entre mãe e filha, em que Mafalda questiona o fato de a mãe não ter estudado. “Sabe, mamãe, eu quero ir para o jardim de infância e estudar bastante. Assim, mais tarde não vou ser uma mulher frustrada e medíocre como você!”, afirmava a personagem. Recebeu o carimbo da censura.
Em meio à picuinha do Governo com o conteúdo da prova, Daniel Pery, do Curso Anglo, aposta que a avaliação de habilidades do exame deve ser mantida, já que a praxe é que a prova seja montada com questões pré-testadas. Já o TCU propôs uma análise sobre as questões deste ano para averiguar se elas atendem realmente a critérios técnicos.
O primeiro dia de provas do Enem, neste domingo, terá questões sobre linguagens, ciências humanas e redação. Os portões se abrem às 12h (horário de Brasília) e fecham às 13h. As provas começam 13h30 e se encerram às 19h. No segundo dia, em 28 de novembro, haverá provas de matemática e ciências da natureza. Os horários são os mesmos, mas as provas se encerram meia hora antes, às 18h30.
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