Revista que divulgou estudo de cobaias humanas com proxalutamida no Brasil carimba o caso como “preocupante” após denúncia do EL PAÍS
Reportagem de outubro revelou que um paciente com covid-19 foi tratado com o remédio sem respaldo ético e científico. ‘British Medical Journal’, que deu espaço ao experimento, agora reforça que pode se tratar de “uma das piores violações de ética médica do Brasil”
A revista científica britânica British Medical Journal (BMJ) divulgou nesta semana uma nota na qual expressa suas preocupações a respeito do estudo publicado na própria com uso de dose inédita do medicamento proxalutamida num paciente com covid-19 em Brasília. O tratamento foi conduzido pelo endocrinologista Flávio Adsuara Cadegiani, sem respaldo ético e científico necessário. A manifestação acontece após o EL PAÍS trazer a denúncia do caso em reportagem publicada no dia 20 de outubro. Na mesma nota, o BMJ reforça as preocupações levantadas pelo Conselho Nacional e Saúde (CNS) a respeito do experimento liderado por Cadegiani, que teria usado 645 cobaias em três Estados brasileiros com a mesma droga,. Isso pode ter levado ao óbito de 200 pessoas e estaria “entre as piores violações de ética médica do Brasil”.
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Segundo o caso publicado no BMJ, que virou alvo de preocupação para a entidade, um paciente “em estado grave” de covid-19 recebeu uma dose de 600 miligramas de proxalutamida no Instituto Corpometria, clínica particular de Cadegiani em Brasília. O fármaco, que é estudado para tratamento de câncer, não possui registro no Brasil e foi utilizado pelo médico sem a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e sem cumprir os requisitos básicos do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Além disso, a dose utilizada foi maior do que a registrada em qualquer outro site relevante para consulta de estudos científicos, como Clinical Trials e Pub Med.
Na época, a BMJ respondeu à reportagem que investigaria o caso. O estudo segue publicado no site da revista, mas ganhou um carimbo chamado de expression of concern, traduzido para o português como uma “manifestação de preocupação”. Nela, a revista informa que “seguindo as preocupações levantadas ao BMJ, estamos investigando o uso do medicamento relatado neste caso (proxalutamida) e as circunstâncias em torno de sua disponibilidade e licença para uso. Enquanto ocorre a investigação, gostaríamos de alertar aos leitores para essa manifestação de preocupação”.
O artigo divulgado neste 17 de novembro pela publicação britânica com o título Ensaio experimental de “cura da covid-19” está entre as piores violações de ética médica na história do Brasil, dizem reguladores também chama a atenção para as pesquisas irregulares com a proxalutamida no Brasil. O texto cita não só o caso de Brasília, trazido pelo EL PAÍS, como também a pesquisa envolvendo 645 pessoas no Amazonas, Santa Catarina e Rio Grande do Sul que é alvo de denúncias de CNS e CONEP.
“O ensaio clínico com proxalutamida ‘desrespeita quase todo o protocolo’ e pode ter contribuído para a morte de 200 pessoas, revela o CNS, órgão que regula a pesquisa clínica no Brasil”, diz o artigo. “O tratamento foi prescrito por médicos como se fosse um tratamento médico estabelecido, afirmou o CNS, apesar de ter sido aprovado apenas para estudos clínicos. O número de pessoas que receberam o remédio também foi maior do que o aprovado para a pesquisa”, continua.
O BMJ referencia nominalmente as denúncias apontadas pelo EL PAÍS. “O jornal espanhol EL PAÍS reportou que pacientes confiaram nos médicos para receberem o melhor tratamento possível e não foram informados que estavam ingerindo um remédio experimental como parte de um estudo clínico. Alguns dizem que o tratamento não foi acompanhado pela equipe médica. O termo de consentimento dado aos pacientes omitiu informações importantes sobre o direito de participantes de pesquisa e detalhes sobre o estudo, disse o CNS”. O BMJ reforça a conclusão apontada pelo Conselho: “Em toda a história do Conselho Nacional de Segurança brasileiro, nunca houve tamanho desrespeito às diretrizes éticas e aos direitos dos participantes de pesquisa”.
Como Cadegiani tampouco tinha autorização para utilizar o medicamento para tratar um paciente de sua clínica particular, o caso também se tornou alvo de investigações da Anvisa. A Agência informou à reportagem que “identificou discrepâncias nos processo de importação da proxalutamida para o Brasil e adotou algumas medidas de investigação que estão em curso”. No entanto, também afirma que “considerando que o processo administrativo de investigação ainda está em curso —e esse corre sob sigilo— não é possível antecipar detalhes em relação às diligências já realizadas”. Flávio Cadegiani também está entre as 80 sugestões de indiciamento no relatório da CPI da Pandemia por crime contra a humanidade.
Também assinaram como responsáveis pelo caso denunciado pelo EL PAÍS Carlos Gustavo Wambier, dermatologista e professor da Universidade Brown, nos Estados Unidos; Erica Lin, estudante de medicina na Universidade Brown; e Andy Goren, dermatologista e diretor médico da Applied Biology. Wambier e Cadegiani se defenderam ao dizer que o uso da proxalutamida não necessitava de aprovação da Anvisa; que a dose de 600mg era “provavelmente ideal”, embora inédita; e que as pesquisas com o remédio foram feitas sem infringir nenhuma norma ética ou procedimental do país. A versão é contestada pelos principais órgãos reguladores de estudos clínicos pelo Brasil e, agora, pela própria revista que cedeu espaço aos pesquisadores.
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