500 mil mortes, doença, fome, desvio de verbas e pedido de CPI: o retrato da Grande Seca do Império
Foram três anos de seca em oito províncias, levando à morte 5% da população brasileira da época. Proporcionalmente, a Grande Seca foi 17 vezes mais mortífera que a pandemia de covid-19
Em 1877, quando chegou o dia 19 de março e nenhuma gota de água caiu do céu, os sertanejos anteviram a desgraça. Esse é o Dia de São José, padroeiro do Ceará e das chuvas. Até hoje, quando não chove nessa data, eles já sabem que terão pela frente um ano inteiro de seca.
Naquele dia, porém, os sertanejos do Império não podiam imaginar que a estiagem que apenas começava seria tão violenta e prolongada e provocaria, em termos relativos, a maior catástrofe da história do Brasil.
A chamada Grande Seca se arrastou por três anos e provocou 500 mil mortes em oito províncias, tanto por sede e fome, quanto por doenças. O número representa 5% da população do Império que, na época, rondava os 10 milhões de habitantes.
Nenhuma outra calamidade matou uma parcela tão grande da população do país. Como comparação, a atual pandemia de covid-19 tirou a vida de 0,3% da população até o momento. Dos 213 milhões de brasileiros, 600 mil morreram em razão do coronavírus. Proporcionalmente, a Grande Seca foi 17 vezes mais mortífera que a pandemia de covid-19.
O primeiro parlamentar a levar a tragédia ao conhecimento do Senado foi Figueira de Melo (CE). Um mês depois daquele Dia de São José, o senador discursou:
— As notícias que acabam de nos chegar da província do Ceará, pelo último paquete, não podem deixar de contristar todos os corações brasileiros. As catadupas do céu parecem ter-se fechado. Um sol ardente dardeja seus raios sobre o país. As árvores e tudo quanto tem vida desaparecem. A horrorosa seca inutilizou todas as esperanças de que a Providência Divina mandasse em tempo chuvas suficientes para a alimentação do gado e as plantações.
Meses mais tarde, o senador Visconde de Jaguaribe (CE) apresentou um retrato ainda mais dramático. Num pronunciamento, ele pediu que uma eleição que se realizaria em sua província fosse cancelada:
— A província do Ceará é hoje um vasto cemitério. Em vez de população que vote, se hão de encontrar cadáveres e sombras.
Os discursos fazem parte do acervo histórico do Arquivo do Senado. Os documentos do período 1877-1879 indicam que, assim que a notícia da Grande Seca chegou ao Rio de Janeiro, capital do Império, os senadores das províncias atingidas logo se mobilizaram para tentar mitigar os estragos.
Juntos, Figueira de Melo e o Visconde de Jaguaribe escreveram um projeto de lei prevendo o envio de 400 contos de réis para socorrer a população do Ceará.
No mesmo dia, alguns deputados apresentaram à Câmara uma proposta mais abrangente, determinando a liberação de 2 mil contos para as províncias do Norte, localizadas entre o Piauí e a Bahia — não se dizia Nordeste; o Império se dividia em duas regiões, Sul e Norte.
Ao longo dos três anos, sucessivas leis aprovadas pelo Parlamento e decretos baixados pelo governo destinaram verbas do Orçamento imperial às províncias sem chuva. O dinheiro foi aplicado principalmente em comida — toneladas de farinha, arroz, feijão, milho, carne seca e bacalhau. Navios procedentes do Rio de Janeiro aportavam em cidades, como Recife e Fortaleza, carregados de víveres.
Esse auxílio emergencial estava previsto em lei. A Constituição de 1824 determinava que, sempre que a população se encontrasse em situação de calamidade, o Império deveria prover os “socorros públicos” necessários.
Os jornais publicaram retratos chocantes de crianças sertanejas esquálidas. Comovida pelas notícias vindas do Norte, a população do Sul organizou ações beneficentes, como leilões, concertos e até banquetes.
— Na cidade do Rio de Janeiro e em todas as províncias se têm formado comissões que procuram meios mais ou menos engenhosos a fim de obter esmolas e donativos para os desgraçados. E o belo sexo, em cujo coração os sentimentos de benevolência mais dominam, não tem sido insensível ao espetáculo do sofrimento, chegando até a ir representar em teatros para ser a esmola mais abundante — afirmou Figueira de Melo.
— A Augusta Regente [princesa Isabel], atual chefe do Estado, tem se mostrado pessoalmente incansável em acudir às vítimas. Abstraindo dos recursos de que pode o governo lançar mão, ela não se dedigna de pôr-se à testa do movimento caritativo, de por si mesma promover concertos e leilões de objetos de que possam provir socorros, certa, como está, de que a caridade brasileira jamais é invocada em vão — acrescentou o Visconde de Jaguaribe.
Deputados chegaram a propor que uma parte do dinheiro arrecadado com as loterias fosse reservada para o auxílio às províncias do Norte, mas a proposta foi rejeitada.
Logo se criou polêmica em torno dos socorros públicos. Alguns senadores avaliaram que a política de oferecer comida de graça à população sertaneja era equivocada. Um deles foi Silveira da Mota (GO), que analisou:
— Na Europa, as classes proprietárias do capital e do solo desfrutam a sociedade, e as classes pobres parecem sacrificadas à exploração dos proprietários e dos capitalistas. Daí agita-se a questão do socialismo e vêm a reação das classes obreiras contra governos solidamente constituídos. No Brasil, estamos vendo o contrário do socialismo europeu. Nas províncias do Norte, as classes pobres estão se acostumando a viver sem trabalhar, à custa das classes que têm trabalhado e acumulado capitais. É um novo socialismo, que o governo tem alimentado com o seu mau sistema de prestação de socorros.
Para esses senadores, a solução seria exigir dos sertanejos, em troca do alimento enviado pelo governo, que trabalhassem em obras públicas, como a abertura de ferrovias, a extensão de cabos telegráficos e a construção de açudes. O senador Teixeira Júnior (RJ) discursou:
— Vejo pretextos para se manter a ociosidade daqueles que, tendo-se habituado à indolência, vivendo à custa do óbolo da caridade que o governo distribui em farinha e carne seca, não querem mais sujeitar-se à condição absoluta que rege a sociedade: o trabalho. Fogem do trabalho que se lhes oferece e depois reaparecem para reclamar a competente ração diária.
Falando na condição de ministro da Fazenda, o senador Afonso Celso (MG) contou que alguns presidentes de província (os atuais governadores de estado) já vinham exigindo o trabalho dos flagelados:
— O presidente do Ceará preferiu, em vez de dar esmola, que humilha e abate a quem a recebe, proporcionar trabalho assalariado aos indigentes, minorando destarte os sacrifícios do Estado, aproveitando nas obras que hão de perdurar longos anos e ao mesmo tempo mantendo na população os hábitos de ordem e atividade. Esse pensamento sempre me pareceu acertado e digno de animação.
A elite política e econômica acreditava que era preciso “domesticar” os pobres livres, pois entendia que eles, sendo majoritariamente mestiços, não tinham a disciplina necessária para o trabalho assalariado na lavoura.
Os poderosos do Império se preocupavam com essa questão porque já sabiam que, cedo ou tarde, a escravidão acabaria. A Lei do Ventre Livre, por exemplo, vigorava desde 1871. Para substituir os escravizados nas plantações de café, os fazendeiros preferiam imigrantes europeus, mas não descartavam a mão de obra livre nacional, apesar de considerá-la de qualidade inferior.
— Precisamos evitar que os nossos concidadãos morram à fome. Para o país, é um grande infortúnio e um prejuízo perder tantos braços quando deles temos tanta necessidade — afirmou o Visconde de Jaguaribe. — Quando o governo se preocupa constantemente com a necessidade de importar braços estrangeiros, era muito mais vantajoso aproveitar os que existem no país.
A utilização da mão de obra dos sertanejos em obras durante a Grande Seca, segundo certos senadores, seria benéfica também para os cofres públicos, pois os flagelados aceitariam até os salários mais aviltantes. Figueira de Melo exemplificou:
— Há diferentes obras de que a província do Ceará necessita, e uma elas é a estrada de ferro de Fortaleza a Baturité. Os salários, que ali andavam por 1,2 mil ou 1,5 mil réis nos casos ordinários, talvez possam ser reduzidos a 500 réis hoje, dizem as cartas dos meus amigos. Portanto, se a população válida, mas pobre e faminta, for empregada nesse serviço, poder-se-ão fazer muitas obras com pouco dispêndio.
O sertão se transformou num grande vazio demográfico, não só por causa das mortes, mas também pelo êxodo. Nas roças, não se pôde mais criar gado ou plantar. Nos povoados, devido à escassez, o preço dos alimentos disparou. Milhares de pessoas então migraram para as cidades do litoral, como Recife e Fortaleza.
Em busca da sobrevivência, muitos retirantes — termo que já se usava na época — viajaram a cavalo ou em carroça. Os mais miseráveis tiveram que ir a pé. Alguns, contudo, acabaram morrendo pelo caminho. Os cronistas relatam que, pelas estradas do sertão, tornaram-se comuns pequenas cruzes de madeira fincadas na terra árida.
Outro fator contribuiu para a migração em massa. Boa parte dos socorros públicos enviados pelo Sul não conseguia chegar ao destino. Como a água e a pastagem haviam desaparecido, os animais que puxavam as carroças nas quais iriam os alimentos para os flagelados não tinham como adentrar o sertão. Os socorros públicos acabaram se acumulando nas cidades do litoral. Também por essa razão, os sertanejos se viram forçados a se dirigir para a costa.
Fortaleza, que tinha 25 mil habitantes, de repente se viu com 140 mil. As classes altas das províncias do Norte não gostaram de ver suas capitais abarrotadas de retirantes, parte deles convertida em pedintes. Estatísticas de segurança apontaram aumento de roubos e furtos.
Atendendo aos desejos da elite, os governantes adotaram dois planos. O primeiro foi criar colônias fora das cidades e nelas enclausurar — à força, quando necessário — parte dessa multidão.
O ministro e senador Afonso Celso leu no Senado trechos de uma carta escrita pelo presidente de Pernambuco a respeito da Colônia Socorro, que fora instalada a mais de 100 quilômetros do Recife e contava com capela, orfanato e escola:
— A experiência tem assaz demonstrado os inconvenientes das grandes aglomerações de retirantes famintos e ociosos nos pontos do litoral. Muito mais proveitoso será colocá-los em estabelecimentos como a Colônia Socorro, onde, aplicados a trabalhos agrícolas, deixarão de ser estéreis consumidores.
Na realidade, a situação das colônias de flagelados nada tinha de pacífica. O senador Diogo Velho (RN) relatou que os quase 7 mil retirantes da Colônia Sinimbu, localizada nos arrabaldes de Natal, eram tratados sem nenhuma humanidade. No Senado, ele leu um relatório do vice-presidente da província do Rio Grande do Norte:
— Os gêneros, que em tão larga profusão eram remetidos ao diretor da colônia, se distribuíam com intervalo de 10, 12 e até 20 dias, em diminutas quantidades, dando isso lugar a que morresse um grande número de pessoas inanidas de fome. O chicote era muita vez o pão que eles recebiam quando diziam “temos fome”. E ai daquele que ousava levantar a voz e queixar-se de seus sofrimentos! Durante a estação invernosa dos meses de junho a agosto, desenvolveram-se entre os habitantes da colônia diversas moléstias originadas já pelas intempéries a que se achavam expostos em suas míseras choupanas, já pelo miasma que exalava do alagadiço vizinho.
Das moléstias que se espalharam durante a Grande Seca, a que mais mortes provocou entre os sertanejos aglomerados nas colônias foi a varíola, apesar de na época já existir vacina contra ela.
Mais tarde, nas primeiras secas do século 20, as colônias de retirantes passaram a ser chamadas de campos de concentração.
O segundo plano dos governantes para “limpar” aquelas capitais foi embarcar os sertanejos, de graça, em navios para bem longe. Alguns foram mandados para o Rio de Janeiro e São Paulo, com destino às plantações de café. Outros foram despachados para a Amazônia, em direção aos seringais. Os retirantes quase nunca eram bem-vindos.
— Os que vieram para a corte [Rio de Janeiro] mostraram grande repugnância para o serviço da lavoura. Eles o que queriam era não trabalhar — criticou Silveira da Mota.
— Notamos a indolência — reforçou Cruz Machado (MG).
— O governo é o culpado da indolência, mandando muita farinha — alfinetou Teixeira Júnior.
Notando o tom preconceituoso, o Visconde de Jaguaribe saiu em defesa dos sertanejos:
— Aqueles que nascem na abundância, que não precisam lutar com a natureza para alimentar-se, naturalmente entregam-se à indolência sem nenhuma objeção séria. Mas quem nasce cercado de precisões e vê que, se não trabalhar, se não fizer uso de suas forças, há de morrer à míngua, necessariamente cede à lei da necessidade. É por isso que eu digo que o cearense em geral tem por índole uma certa atividade.
Para diversos senadores, o governo imperial tinha culpa pela situação calamitosa dos flagelados. Eles acusaram o poder público de ser imprevidente, pois, mesmo sabendo que as secas no Norte eram periódicas, deixou de tomar com antecedência as medidas necessárias, como a construção de açudes e armazéns de alimentos no sertão.
— O governo, quando iguais calamidades têm perseguido essas províncias, tem prometido fazer obras que garantam a não repetição, mas tem-se descuidado. E não é o ministério atual somente. São também os anteriores. Todos eles têm deixado de mandar abrir poços artesianos e de fazer o plantio de árvores de sombra — criticou Silveira da Motta.
— No tempo da prosperidade, facilmente nos esquecemos das desgraças passadas — acrescentou o senador Barão de Cotegipe (BA).
— Só deitamos fechaduras nas portas depois que os ladrões têm roubado — concordou Figueira de Melo.
O governo imperial respondia que, diante de uma catástrofe natural, pouco podia fazer.
— A solução depende da Divina Providência, e não de nós — disse o senador Cansanção de Sinimbu (AL), na época o primeiro-ministro do Império.
— O governo não pode fazer chuva — afirmou, na condição de ministro de Estrangeiros, o senador Diogo Velho.
Por causa da Grande Seca, o Brasil passou um ano inteiro sem Parlamento. No início de 1878, por questões políticas, D. Pedro II derrubou o gabinete ministerial do Partido Conservador e nomeou outro do Partido Liberal. No parlamentarismo brasileiro, sempre que um gabinete caía, a Câmara dos Deputados era dissolvida (o Senado não, por ser vitalício) e uma nova eleição parlamentar se realizava.
Naquele ano, contudo, inúmeros povoados das províncias afetadas não tinham eleitores suficientes. Para não desequilibrar a composição da nova Câmara em prejuízo do Norte, o imperador resolveu adiar as eleições para o fim de 1878. Como a Constituição dizia que uma Casa do Parlamento não podia funcionar sem a outra, o Senado também precisou fechar as portas.
Ao longo desse ano, o governo pôde remeter ao Norte as verbas dos socorros públicos por meio de uma sucessão de decretos, sem precisar de leis aprovadas pelo Parlamento. No fim de 1878, apesar da persistência da seca, o eleitorado foi às urnas. No início de 1879, o Senado e a Câmara finalmente reabriram.
A Grande Seca tirou a vida de 12% da população das oito províncias afetadas. As mortes só não ultrapassaram a marca de 500 mil porque naquele momento existiam relativamente poucos escravizados no Norte. Em 1850, a Lei Eusébio de Queiroz havia proibido a chegada de navios negreiros aos portos do Império. Impossibilitados de importar mão de obra nova da África, os barões do café do Sul passaram a comprar escravizados das fazendas do Norte, onde as plantações de cana-de-açúcar e algodão estavam em declínio.
Hoje se sabe que a seca de 1877-1879 não foi um fenômeno exclusivamente brasileiro. Teve alcance global. Regiões como a Austrália, a China, a África do Sul e o Egito também foram afetadas. A Índia viveu a chamada Grande Fome. A principal causa foi um El Niño extraordinariamente intenso — o fenômeno eleva a temperatura das águas superficiais do Oceano Pacífico equatorial e provoca alterações no clima.
Sem dispor dessa informação, à qual os cientistas só chegaram recentemente, Figueira de Melo apresentou sua explicação ao Senado recorrendo a Deus:
— Na minha humildade e com grande sentimento de verdade, senhores, reconheço que a mão da Providência Divina fere a minha província e outras vizinhas como castigo de se terem afastado das leis divinas e das leis morais.
Diante daquela seca que parecia não ter fim, os senadores começaram a ficar incomodados com as somas que o governo imperial continuava enviando para as províncias do norte.
— Não podemos gastar só com algumas províncias metade da renda anual do Império. É dinheiro gasto improdutivamente, ainda que por alto sentimento de religião e humanidade. Despendemos muito e sabe Deus se teremos mais tarde recursos de onde possamos haver os meios necessários para o provimento dessa despesa enorme e espantosa — queixou-se o senador Fernandes da Cunha (BA).
— A Constituição não admite socorros permanentes. Isso seria criar o proletariado oficial — avaliou Cruz Machado.
— O Paraguai está sendo substituído pelo Ceará — sentenciou o senador Mendes de Almeida (MA), referindo-se à Guerra do Paraguai, que uma década antes havia praticamente secado os cofres públicos do Império.
— O principal responsável é o senhor ministro da Fazenda, porque em nosso país, segundo dizia um notável homem de Estado, o ministro da Fazenda deve estar sempre à porta do Tesouro de arma engatilhada — discursou Silveira da Mota.
Denúncias de desvio de socorros públicos começaram a aparecer nos jornais. As notícias falavam de remessas de carne podre e farinha misturada com cal que eram dadas aos retirantes, sacas compradas pelo governo que chegavam com menos alimento que o contratado, funcionários públicos das províncias que repentinamente enriqueciam e intermediários entre o governo, os empresários e os flagelados que contabilizavam lucros estratosféricos.
— Os fatos de dilapidação geral abundam em todo o Ceará — denunciou o Visconde de Jaguaribe, em seguida citando um dos esquemas. — Com a necessidade de remeter gêneros para o interior, surgiu alguma indústria e de fato apareceu a dos contratadores de fretes. Apareceram para esses contratos os protegidos das potestades do dia, que muitas vezes eram indivíduos que não possuíam cavalos e nunca tinham feito viagens. Assim, muitas vezes sucedia que, enquanto uma localidade tinha aviso de que tal remessa lhe fora feita, os respectivos gêneros jamais chegavam.
— A presidência do Ceará hoje vive em bailes e até se distribuem sorvetes. O que lá se deseja é a seca do Tesouro público — ironizou Mendes de Almeida.
— Não se estão mandando enormes quantias para matar a fome de quem a tem. É para matar a fome dos fornecedores — afirmou Silveira da Mota, acrescentando que estes últimos faziam pressão sobre o poder público para que não se fechassem as colônias de retirantes.
Diante da enxurrada de acusações, o governo acabou dando o braço a torcer. Num discurso, o senador e ministro Afonso Celso se explicou:
— É fora de questão que o flagelo da seca trouxe para o Tesouro despesas excessivas. É indubitável que tais despesas devem cessar no mais curto prazo possível, sob pena de ficarem completamente desorganizadas as finanças por largos anos. Admito ainda a possibilidade de abusos por parte de agentes subalternos da administração ou de fornecedores de gêneros, porque os abusos são inevitáveis em tempos ordinários, quanto mais em épocas calamitosas. Uma vez provadas, as fraudes devem acarretar contra seu autores toda a severidade das leis. Mas, senhores, concluir daqui que o governo e seus delegados nas províncias têm-se esquecido de seus deveres ou deixado de fazer tudo quanto era humanamente possível é o que me parece clamorosa injustiça.
Chegou-se a pedir a abertura de uma CPI no Senado para investigar as denúncias relativas aos socorros públicos da Grande Seca. A proposta, apresentada por Silveira da Mota, não foi aprovada. Se tivesse sido criada, a Comissão Parlamentar de Inquérito, provavelmente, prejudicaria tanto o Partido Conservador, que governou o Império em 1877, quanto o Partido Liberal, que esteve no poder em 1878 e 1879.
A historiadora María Verónica Secreto, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora de um estudo sobre a Grande Seca, explica que esse “fenômeno climático que virou crise social”, apesar de ser pouco conhecido no país hoje, produziu impactos nacionais tão profundos que podem ser sentidos até agora, passados mais de 140 anos:
— Muito da imagem estigmatizada e preconceituosa que o Brasil tem hoje do Nordeste, a daquela região miserável, atrasada e estéril, vem daqueles três anos da Grande Seca. Os nordestinos passaram a ser vistos como incapazes de se sustentar sozinhos e dependentes da caridade ou da assistência pública. Além disso, a Grande Seca marcou o início da chamada indústria da seca. O poder público organiza a ajuda, mas, diante da existência de tantos intermediários em busca de lucro, o socorro vai se desidratando pelo caminho até finalmente chegar ao cidadão. Isso ocorre não só nas ações ligadas à seca, mas nas mais diversas políticas públicas. Veja, por exemplo, quantos atravessadores têm surgido no caso das vacinas contra a covid-19.
A historiadora entende que, apesar de todos os problemas denunciados pelos senadores do Império, a responsabilidade do governo monárquico na Grande Seca não pode ser comparada com a do governo republicano hoje na pandemia:
— Não podemos cobrar do Império o mesmo que devemos cobrar da República. São dois momentos históricos muito distintos. Em primeiro lugar, porque na época de D. Pedro II não existia o conceito moderno de política pública. As ações do Estado que beneficiavam os cidadãos eram vistas como caridade. Agora as entendemos como direito, inclusive os programas de renda mínima. Em segundo lugar, porque o Império tinha muito menos poder econômico que a República. Não existiam tantos impostos quanto agora. A arrecadação não era tão forte. Diante de calamidades, portanto, a República não poderia cometer erros semelhantes aos que foram cometidos pelo Império.
Em 1880, quando chegou o Dia de São José e caiu água do céu, os sertanejos respiraram aliviados. O governo imperial também. A Grande Seca finalmente ficava para trás.
A reportagem, publicada originalmente aqui, faz parte da seção Arquivo S, resultado de uma parceria entre o Jornal do Senado, a Agência Senado e o Arquivo do Senado brasileiro. Reportagem e edição: Ricardo Westin | Pesquisa histórica: Arquivo do Senado | Edição de fotografia: Pillar Pedreira | Edição de multimídia: Bernardo Ururahy
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