“Faremos de tudo para ter todos de volta”: uma rede de estudantes nas ruas para combater a evasão escolar
Alunos de Fortaleza apelam para mensagens, ligações, visitas e até cartas na tentativa de atrair colegas para as aulas presenciais. Brasil tem 5,5 milhões de estudantes fora da escola
São dez horas da manhã de uma terça-feira. Mikaelle Honorato e Samuel Rebouças, de 18 e 19 anos, cruzam o portão da escola estadual Professor Aloysio Barros Leal com uma série de pastas e documentos. Os papéis servem de mapa para identificar colegas que estão prestes a abandonar os estudos. Eles caminham pelas ruas do bairro, várias delas sem calçadas, sob um forte calor. Buscam os endereços de colegas porque abraçaram um desafio enorme: agir para que nenhum aluno se perca no caminho de volta às aulas presenciais depois de mais de um ano de problemáticas aulas remotas na pandemia. Enquanto o Unicef projeta que 5,5 milhões de estudantes em idade escolar estavam sem atividades durante a crise no país, Mikaele e Samuel se unem a outros quatro colegas para tentar baixar ao menos as estatísticas de sua escola, fincada em um dos bairros mais pobres de Fortaleza. No primeiro mês de trabalho, conseguiram trazer de volta nove colegas.
“Ô de casa!”, grita Samuel, batendo no portão marrom da casa de Lucas Sousa, um colega de turma que não participa das atividades escolares há mais de dois meses. Os dois cursam o terceiro ano do Ensino Médio. “Nós conversamos com ele por telefone há algumas semanas, e ele disse que deixou de acompanhar porque o celular quebrou, mas já tinha comprado outro e iria voltar. Retomamos as aulas presenciais, e nem assim ele voltou. Então viemos aqui, para saber o que aconteceu”, explica Samuel ao EL PAÍS, do lado de fora da casa. Só se escuta o latido de um cão. Mikaelle e Samuel insistem até que o jovem abre uma pequena fresta do portão: “Espera só um minuto.” Mikaelle vibra: “É ele. Vai dar certo”.
Alguns minutos depois, Lucas sai na calçada e vai logo explicando que não conseguiu voltar à escola porque o emprego que agora representa metade da renda da família não permite. Ele começou a trabalhar de garçom há cerca de três meses, para pode comprar um celular novo e estudar, mas, depois de alcançar o objetivo, não pôde mais largar o emprego, porque a mãe, promotora de vendas em uma empresa, havia sido demitida. Agora, o salário dele e o do padrasto, que trabalha em um supermercado, garantem o sustento da família, que inclui dois irmãos mais novos que ele.
“Tenho que trabalhar. É impossível ir todo dia pra escola”
“Estamos com tanta saudade do seu violão no intervalo”, diz Mikaelle, lembrando dos recreios de antes da pandemia. A escola retomou as aulas 100% presenciais, mas sem intervalos, por segurança sanitária. Cerca de metade dos Estados brasileiros já retomaram o ensino presencial. “Não solta as aulas. O que acha de tentar mudar de turno?”, sugere ela. Lucas arqueia as sobrancelhas e tenta explicar a complexidade de sua situação. Conta que os turnos da manhã, da tarde e da noite já não cabem na sua rotina incerta de agora. Promovido a supervisor dos garçons há pouco tempo, ele precisa cumprir uma jornada das 21h às 3h da manhã em um bar. Mas é comum também ter que ir até lá à tarde e pela manhã, para resolver problemas e ajustar a equipe. “Eu quero voltar, só não vejo como. É impossível para mim ir todo dia pra escola”, conta, mostrando olheiras que diz ter conquistado com o trabalho de madrugada. “Pensa que só falta dois meses para você terminar o Ensino Médio”, anima Samuel.
Ele e Mikaelle prometem, então, checar com a diretoria da escola se seria possível conseguir outras atividades e trabalhos escolares para abonar os dias que Lucas não consiga frequentar presencialmente ―algo que a escola já adotou para recuperar alunos desde o ensino remoto. Entregam um envelope com uma carta que escreveram para estimulá-lo a retornar à escola e um chocolate. “Tem chocolate? Oba!”, ri Lucas. “Vocês acreditam que passei no centro olímpico de basquete e também tive que desistir por causa do trabalho?”, lamenta. Mesmo assim ele promete voltar à escola e diz ter esperança de seguir um plano de futuro que parece muito sólido na sua cabeça: concluir o Ensino Médio, fazer um curso técnico de tecnologia da informação e, depois, cursar uma faculdade de Engenharia de Software. Só que, com a crise econômica e a falta de renda da mãe neste momento, o sonho precisa caber numa jornada já ocupada pelo trabalho. “Vou ter toda essa formação um dia, vocês vão ver”, ele diz. “Nós estamos aqui, viu, cara? Vamos te ajudar no que pudermos”, responde Samuel.
“É tão feliz quando conseguimos trazer mais um”
Segunda visita: uma aluna que acompanhou as aulas remotas por um tempo, mas também deixou de realizar as atividades e não voltou para as aulas presenciais. Ela mora a alguns quarteirões de Lucas, mas agora Mikaelle e Samuel têm menos sorte. A estudante está trabalhando todos os dias das 8h às 17h e está difícil falar com ela tanto por telefone quanto presencialmente. No terceiro endereço que completaria as visitas daquela manhã, uma colega em situação semelhante nem sequer consegue abrir a porta para atendê-los. “Não posso falar, estou muito ocupada cuidando de uma criança”, avisa, em algum cômodo do alto de uma escada, com a porta fechada. “Ela só pode ter mais 25 faltas, então seria muito importante a gente falar com ela”, explica Samuel, referindo-se à semana de margem para faltas que lhe resta para não ser reprovada. “Nestes casos, a gente fica triste quando vê que não está conseguindo. Mas é tão feliz quando conseguimos trazer mais um. Se o Lucas conquistar o sonho dele de fazer uma faculdade, é como se eu me sentisse fazendo parte disso.”
A evasão escolar não é um problema novo para a ABL, como a escola é chamada por seus alunos. Localizada em um dos bairros com o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Fortaleza, o Barroso, a escola está também em uma zona de guerra entre facções. Fica entre duas avenidas grandes, que nem todos os alunos podem atravessar a depender de qual grupo criminoso comanda o território onde moram. Na ABL, sempre foi comum para professores, coordenadores e diretores ouvirem de alunos o anúncio de que precisariam se afastar da escola por um tempo. Às vezes porque ficou muito perigoso atravessar a pé o caminho de casa até lá, outras por estar jurado de morte. Há quem se afaste por ter que trabalhar para sobreviver e até por simplesmente não ter um sapato, um caderno ou uma roupa. Também é comum ver adolescentes deixarem de frequentar aulas para cuidar do filho após uma gravidez não planejada.
“Ficar vigilante para o aluno não evadir é uma tarefa permanente”
“Aqui, ter que ficar vigilante para o aluno não evadir sempre foi e é uma tarefa permanente”, diz, sem rodeios, a diretora Maria do Socorro Lima de Freitas. Antes mesmo da pandemia, a ABL contava com uma rede que ia dos professores às secretárias da coordenação para fazer a busca ativa dos alunos. A escola tem 1.226 matriculados entre o nono e o terceiro ano. As turmas com maior risco de evasão, como as do primeiro ano, por exemplo, passaram a contar com uma espécie de padrinho. Pelo projeto Diretor de Turma, um professor acompanha um determinado grupo e estabelece uma relação mais próxima com cada aluno. Faltar dois dias seguidos ou três alternados na mesma semana já é indício para uma ligação. “Foi desafiador fazer isso na pandemia. Nosso celular não para. Não queríamos perder nenhum aluno, então estávamos sempre ligando, mandando mensagem. Eu só perdi um, que não consegui mesmo trazer. Uma pena, mas ao mesmo tempo poderia ter sido pior”, conta o professor de geografia Miguel Ângelo, diretor de uma turma do primeiro ano.
A pandemia ampliou o problema, levando os próprios estudantes a se engajarem nos esforços. Em agosto, o Governo do Ceará selecionou 3.000 alunos para atuarem como monitores da busca ativa escolar. Até dezembro, eles receberão uma bolsa de 200 reais por mês para atuar na busca pelos colegas. “Nós tivemos bons frutos, mas os meninos conseguem mais. Eles conhecem melhor a realidade dos colegas e conseguem abordar melhor, porque, muitas vezes, o aluno fica acanhado em abrir seu problema ao professor”, reconhece a coordenadora Vanessa Hitzschky.
Os monitores da Busca Ativa só podem atuar fora do seu horário de aula e sugerem estratégias que julgam mais adequadas à diretoria. Na ABL, os seis monitores se reúnem toda segunda-feira para analisar os estudantes que estão em uma situação mais crítica. A partir daí, tentam contato por WhatsApp, chamadas telefônicas e até pelas redes sociais. Se não houver sucesso, partem para as visitas domiciliares. São priorizadas as casas mais próximas da escola. “Nós vamos a pé e também precisamos prezar pela nossa segurança, porque sabemos do problema aqui do bairro com as facções e o tráfico”, explica Melky Santos, de 18 anos, enquanto caminha com os companheiros Caio César e Micaelle Sousa para mais três visitas no turno da tarde.
“Eu estava sem fé que conseguiria acompanhar”
As aulas remotas duraram mais do que qualquer um esperava, e a falta de acesso à internet ou a um telefone celular desmotivou estudantes. A escola até tentou distribuir exercícios impressos, mas o impacto no aprendizado foi avassalador. O receio quanto à defasagem levou alguns a imaginar que não vale a pena seguir. “Eu estava sem fé que conseguiria acompanhar. Estava morando em outra cidade e já tinha deixado de fazer as atividades, porque fiquei sem celular”, conta Douglas Andre Fernandes, do segundo ano. Mas uma das secretárias da escola, Luzia Lopes, o procurou e organizou para que ele frequentasse o colégio. “A Luzia ficou em cima de mim. Recebi esse empurrão e consegui continuar. Eu me sinto um filho da Luzia. Não sei ainda o que vou fazer no Enem ano que vem, mas quero fazer faculdade.”
Cientes do problema, os monitores da ABL já planejam um próximo passo: dar aulas de reforço aos colegas que não voltaram pelo receio de não conseguir acompanhar o conteúdo. “Estamos vendo em qual matéria somos bons, para nos dividirmos”, conta Melky Santos. Os seis estudantes envolvidos na busca ativa na escola já toparam. Eles dizem que atuar no projeto há mudou a percepção que tinham da desigualdade que assola os colegas. “Estou aprendendo a ver outras realidades e conhecendo a história de colegas que têm mais dificuldades que eu. Sou o vínculo de uma escola que pode dar uma mãozinha a eles”, afirma Micaelle Sousa, de 16 anos. Elas mostram, pelo celular, a imagem de um colega para o qual conseguiram um caderno. Ele não frequentava as aulas há quatro meses e decidiu voltar após conversar com Marina Vitoriano, de 15 anos, que celebra: “O que a gente precisa é dar apoio aos nossos colegas e abraçar esta corrente. Faremos de tudo para ter todos os alunos de volta aqui com a gente”.
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