Na Câmara, comissão aprova projeto que fragiliza blindagem de terras indígenas

PL 490 é aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, segue para votação no plenário e depois vai ao Senado. Se aprovado, rompe com proteção de povos isolados e fragiliza limites das terras de povos indígenas, cobiçadas por garimpo e agronegócio

Indígenas de diversas etnias protestam nesta quarta em frente a uma das entradas da Câmara em protesto contra o PL 490.Joédson Alves (EFE)
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No mesmo dia em que Ricardo Salles anunciou sua exoneração do cargo de ministro do Meio Ambiente, os povos indígenas tiveram uma derrota na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara (CCJ). Foi aprovado nesta quarta-feira o projeto de lei 490/2007, que representa um retrocesso nos direitos indígenas ao dificultar novas demarcações de terra — já paralisadas pelo Governo Jair Bolsonaro. “Desastrosamente foi aprovado na CCJC o PL 490 por 40 votos favoráveis a 21. Vocês não serão esquecidos pelos povos indígenas. A nossa luta e resistência continua!”, afirmou a deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), uma das maiores forças de defesa dos povos originários no Congresso.

Um dos pontos mais críticos do texto é a exigência da comprovação da posse e ocupação do território reivindicado pelos povos tradicionais antes do dia 5 de outubro de 1988 (data da promulgação da Constituição Federal). Atualmente a legislação sobre o tema não impõe nenhum marco temporal, e a demarcação é feita por uma equipe multidisciplinar da Fundação Nacional do Índio (Funai). O projeto aprovado, que é defendido pela base bolsonarista e pelo agronegócio, está alinhado à atuação do Planalto no sentido de “passar a boiada” ao facilitar a grilagem de terras e o aumento da exploração de florestas e de áreas protegidas, uma vez que ele também permite a legalização de empreendimentos em áreas de reserva, como garimpos ilegais e hidrelétricas.

A análise do tema foi retomada na CCJ um dia após forte repressão aos protestos de povos tradicionais contra o projeto em frente à Câmara dos Deputados, que teve disparos de bomba de gás e terminou com ao menos três indígenas, um policial e dois servidores do Congresso feridos. O ato conseguiu paralisar a análise na CCJC nesta terça-feira. A mobilização contra o PL 490 reuniu cerca de 800 indígenas de 45 etnias, que estão acampados no local há semanas pedindo o arquivamento do texto e maior participação popular na discussão do texto. O projeto aprovado também flexibiliza a possibilidade de contato com povos isolados —pela doutrina indigenista em vigor estes grupos devem ser mantidos em suas condições atuais, a não ser em caso de risco à sua integridade.

Joenia Wapichana apontou, durante a sessão, a inconstitucionalidade do texto, e afirmou que mesmo aprovado, ele deverá ser contestado e derrubado na Justiça: “Esse projeto tem vícios constitucionais seríssimos. Há uma tentativa de retaliar os direitos constitucionais [dos povos indígenas], com base nessas teses de marco temporal, que não tem amparo legal”. Segundo ela, não há benefício algum para os povos indígenas, e o projeto é fruto de “cobiça” do agronegócio e de outros setores sobre suas terras. “Existe um mito de que os índios têm muita terra. Mas se os indígenas agissem como os grileiros fazem, teriam muito mais”, disse. No início da sessão, Wapichana, que é uma das poucas representantes indígenas no Congresso, chegou a ter a palavra tolhida pela presidente da comissão e integrante da tropa bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF).

Wapichana pediu, sem sucesso, que a CCJ aguardasse o Supremo Tribunal Federal analisar o tema antes de votar, tendo em vista que a Corte deve analisar ainda este mês um caso envolvendo o povo Xokleng, em Santa Catarina, que também envolve o problema do marco temporal e terá validade de repercussão geral (ou seja, se aplica a todos os processos semelhantes). O ministro Edson Fachin já adiantou seu voto de forma favorável aos Xokleng. Outros parlamentares da oposição também cobraram Kicis para que aguardasse o parecer do STF antes de debater o PL na comissão, mas foram derrotados em votação.

Defensor do projeto, Kim Kataguiri (DEM-SP) afirmou que os povos indígenas têm indicadores socioeconômicos “medievais”, provocados, segundo ele, pelas políticas “paternalistas” do Governo. O deputado afirmou que a iniciativa “dá liberdade” para que estes povos possam decidir o que fazer “sem a tutela do Estado”. O deputado disse ainda que as maiores taxas de desmatamento “ocorrem em terras indígenas, e não em propriedades privadas”. Ele foi desmentido pela colega Fernanda Melchiona (PSOL-RS), que apresentou dados de um relatório da ONU que aponta melhores índices de proteção ambiental nas áreas demarcadas.

Os deputados de oposição também criticaram o atraso no início da ordem do dia no plenário da Câmara, que estava prevista para começar por volta das 14h, e cujo início levaria à suspensão das discussões na CCJ. Segundo eles, foi uma manobra do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), e de Kicis para conseguir votar a matéria ainda hoje. “É a boiada passando”, afirmou a deputada Melchiona. Após criticar o protesto ocorrido em frente à Câmara na terça-feira, Lira sinalizou ser favorável ao projeto. “[Precisamos] ter coragem de debater sobre o tema de exploração em terra indígena. Não é possível que nós vamos ficar de olhos fechados quanto a isso. Não tem só um lado da história não, têm dois, têm três, têm quatro”, afirmou. O projeto, inicialmente apresentado em 2007, já foi rejeitado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara em 2009, mas voltou recentemente à pauta tendo como relator o deputado federal Arthur Oliveira Maia (DEM-BA).

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