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Nicolelis: “Vamos chegar a 1 milhão de óbitos por todas as causas em julho. Isso inclui o colapso hospitalar da covid-19”

Neurocientista aponta para um total de vida perdidas bem acima do esperado para 2021, evidenciando as consequências globais do coronavírus. Em artigo com colegas na revista ‘Scientific Reports’, pesquisador detalha as consequências da não adoção de ‘lockdown’ no Brasil

O neurocientista Miguel Nicolelis.
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Brazil's Health Minister Marcelo Queiroga speaks during a meeting of the Parliamentary Inquiry Committee (CPI) to investigate government actions and management during the coronavirus disease (COVID-19) pandemic, at the Federal Senate in Brasilia, Brazil June 8, 2021. REUTERS/Adriano Machado
Investigação de Queiroga, Pazuello, Araújo e mais 11 mede o poder da CPI da Pandemia

Há meses o neurocientista Miguel Nicolelis alertava que o Brasil chegaria a meio milhão de mortos pela covid-19 caso não corrigisse seu protocolo de combate à pandemia. E assim foi. Alcançado o vergonhoso marco no último sábado, o pesquisador diz que é hora de olhar para além do número oficial da pandemia para entender de forma mais completa o desastre sanitário brasileiro. Ele explica: todos os anos, espera-se que morram no país um contingente de pessoas e, para 2021, a expectativa, em situação mais ou menos normal, era que 1,2 milhão de brasileiros perdessem a vida. A análise do pesquisador, que é colunista do EL PAÍS, onde comanda um podcast de análise sobre a crise da covid-19, aponta que o quadro neste ano já é mais que assustador: o Brasil deve acumular um milhão de mortes totais já em julho, de acordo com os atestados de óbitos no Registro Civil.

“Vamos completar 83% dos óbitos esperados anualmente, por todas as causas, em sete meses. Isso inclui óbitos pelo colapso hospitalar e dá uma visão mais completa da tragédia”, afirma. Ou seja, o enorme contingente de perdas humanas mostra não apenas quem morreu comprovadamente pela covid-19, mas também joga luz naqueles que não puderam fazer o teste para a doença a tempo ou quem tentou e não conseguiu ter atendimento para outras enfermidades nos sistemas de saúde. Não é algo trivial. Há um ano e meio, os sistemas de saúde públicos, mas também os privados, trabalham sob alta pressão e especialistas chamam atenção para um colapso de atendimento e diagnóstico nem sempre evidente.

Há qualquer perspectiva de correção de rota? Nicolelis não está otimista. “Estamos fazendo tudo exatamente igual, cometendo os mesmos erros na terceira onda de contágios”, aponta ele, quando o país voltou a superar a média de 2.000 mortes diárias na pandemia e a trajetória da vacinação segue acidentada. A afirmação do neurocientista vem acompanhada de novas evidências que ele acaba publicar em artigo na revista Scientific Reports, do grupo Nature, em parceria com outros três pesquisadores —Rafael L. G. Raimundo, Pedro S. Peixoto e Cecilia S. Andreazzi. No texto, o professor da Universidade Duke, nos EUA, e seus colegas da Universidade Federal da Paraíba, da USP e da Fiocruz reconstroem com dados as primeiras semanas e meses da pandemia no Brasil, a partir de março de 2020. O paper mostra como a recusa das autoridades brasileiras em adotar medidas básicas que estavam sendo aplicadas em todo mundo mudou ―e para muito pior― a trajetória do SARS-CoV-2 no país.

Gráfico mostra a contribuição de 17 capitais brasileiras no espalhamento da covid-19 no Brasil.
Gráfico mostra a contribuição de 17 capitais brasileiras no espalhamento da covid-19 no Brasil.

“O erro primordial foi não ter fechado o espaço aéreo, nossa principal porta de entrada. Depois, não ter feito um lockdown sério em São Paulo. Nós também não fizemos barreiras nas 26 principais rodovias federais”, explica Nicolelis. Os resultados estão descritos no artigo na Scientific Reports: São Paulo foi responsável por 85% da difusão do vírus nas primeiras três semanas da pandemia. Em conjunto, 17 capitais brasileiras responderam por entre 98% e 99% do espalhamento da doença nos primeiros três meses. Isoladamente, as rodovias federais foram responsáveis por 30% dos casos, merecendo o apelido de “rodovias da morte” do pesquisador. Todo o estudo foi feito usando o sistema oficial DataSUS e dados de mobilidade (rastreamento de celulares) obtidos por meio da parceria entre o Departamento de Matemática Aplicada da USP e a empresa InLoco/Incognia.

Nicolelis e seus colegas argumentam que a restrição de circulação, ao menos nesses pontos “super espalhadores”, poderia ter, no mínimo, postergado a velocidade da primeira onda. Mas nem o Governo Federal, em primeiro lugar, nem os governadores, se dispuseram a endurecer as regras. “A pandemia escancarou o despreparo da classe política brasileira para lidar com as crises do século XXI″, diz Nicolelis.

O artigo científico acaba jogando luz também na profunda desigualdade na distribuição de UTIs no Brasil ―concentradas nas capitais e raras ou inexistentes fora delas. Os pesquisadores apontam que o panorama provocou o que eles nomeiam como “efeito bumerangue”, com os pacientes mais graves de covid-19 sendo atendidos nos grandes centros. São Paulo, a rede de saúde mais robusta do país, recebeu pacientes de um total de 464 outras cidades brasileiras, por exemplo. Eles argumentam que sem o SUS a tragédia teria sido muito maior. Mas também fica evidente que não houve nenhuma política no sentido de usar a pandemia como oportunidade para corrigir as distorções da distribuição de UTIs. Também fica claro que, onda após onda de contágios e novas cepas, o Brasil não melhorou suas práticas de contenção da pandemia e a falta de coordenação nacional só trouxe mais problemas.

“Se um lockdown tivesse sido imposto mais cedo nas capitais, se barreiras sanitárias tivessem sido instaladas nas rodovias e se houvesse uma distribuição geográfica mais equitativa das UTIs, o impacto da covid-19 no Brasil teria sido significativamente menor”, conclui o artigo.

Para Nicolelis, o estudo traz evidências concretas de omissões e erros da autoridades no manejo da crise sanitária e poderia, sim, ser arrolado como elemento de prova na CPI da Pandemia. Sem lições aprendidas, o neurocientista argumenta que o Brasil parte para seu novo marco vergonhoso: deve se transformar no país com mais mortes no mundo em até 90 dias. “Entre 60 a 90 dias, vamos passar os Estados Unidos em número de óbitos.” Nesta terça-feira, o Brasil registrou 2.131 novas mortes pela covid-19, totalizando 504.717 óbitos desde o início da pandemia. O número de casos segue altíssimo: quase 90.0000. Nos EUA, o índice de mortos diários pela covid-19 caiu abaixo de 300 por dia pela primeira vez desde março de 2020. No total, mais de 600.000 norte-americanos morreram.

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