Professoras driblam o apagão da educação para dar sentido à escola pública na pandemia
Elas trocaram a frustração com as câmeras desligadas nas aulas remotas por diários, vídeos e “bailes de máscaras”. O EL PAÍS ouviu histórias de docentes de língua portuguesa em cinco Estados
A professora Ísis Catherine trocou a frustração diante das câmeras desligadas nas suas aulas por uma ideia que mobilizasse seus alunos do Centro de Ensino Fundamental 03 do Paranoá, uma das regiões de maior pobreza do Distrito Federal. Em vez de concluir que o ensino remoto, um método incontornável na pandemia, daria poucos resultados, ela procurou um meio de trazer os alunos para o novo modelo de aula, atentando para uma constatação: ninguém está bem diante do cotidiano imposto pela crise sanitária. “As câmaras estavam fechadas para o conteúdo, mas principalmente para a integração dos alunos”, avaliou Ísis, de 30 anos.
Diante dos quadrados pretos na tela, a professora percebeu um indicativo dos obstáculos descritos por especialistas em educação desde o ano passado. Por trás da falta de engajamento estavam também a dificuldade de acesso às tecnologias e a pobreza. Muitos alunos não têm ambiente de estudo em casa ou aparelho de celular e internet com velocidade suficiente para comportar as aulas em vídeo. Foi aí que Ísis lançou aos alunos do 6º ano, de 11 ou 12 anos, a proposta de escreverem um diário. Na sua visão, era um modo de conciliar a preocupação com a saúde mental dos alunos com os tópicos que devem ser abordados naquele ciclo, como a escrita de textos em primeira pessoa, como cartas e diários.
A proposta fez uma curva no ano dos alunos, do fracasso ao envolvimento nas aulas online. A partir de quatro ações ―empurrar, puxar, acolher e carregar―, a professora lançou as perguntas que direcionariam os textos dos meninos e meninas: “Qual desses movimentos você mais faz em sua vida com as pessoas que estão a sua volta?” “E você... qual dessas ações recebe mais?”. Os diários fizeram uma ponte entre a sala de aula e a casa dos alunos. “No começo eles escreviam quatro, cinco linhas e depois se soltaram e a participação nas aulas aumentou”, contou Ísis. Os textos escritos ao longo do ano letivo foram reunidos e diagramados pela própria professora e serão publicados e distribuídos entre os alunos ainda neste ano.
O EL PAÍS escutou histórias como a da professora do Paranoá em mais quatro Estados, uma janela para as experiências positivas de valorização do ensino de língua portuguesa e de aproximação dos alunos num dos cenários mais devastadores para educação pública nas últimas décadas. Desde o começo da pandemia, com o cancelamento de aulas presenciais e as incertezas sobre o seu retorno, um dos desafios das professoras dos diferentes ciclos e das pedagogas, especialmente nas séries iniciais do ensino fundamental (1º ao 5º ano), é garantir que os alunos se envolvam com as atividades escolares. Como lançá-los no mundo da leitura e da escrita em meio a um apagão educacional?
Ísis Catherine enfrentou essa pergunta de diferentes maneiras. Mesmo na turma de 8º ano, com alunos um pouco mais velhos, entre 13 e 14 anos, ela viu problemas comuns aos estudantes menores. Do total de 190 alunos, a professora explica que aproximadamente 100 frequentam a aula semanal de 45 minutos e realizam as atividades distribuídas nos outros dias da semana. Com essa frequência escassa e o acúmulo de contratempos, a pressão sobre os professores escala em situações como essa. “A gente precisa se fortalecer porque a inconstância das aulas, a sensação de que algumas não são tão produtivas frustram a nossa produção”, desabafa Ísis, que defende a importância de acompanhamento psicológico e outros suportes que ajudem os professores a atravessar o momento. Para os alunos do 8º ano, em vez de cartas, a professora trabalha com a produção autoral de contos de terror e ficção científica, associando mais uma vez escrita e imaginação, as duas armas usadas diante de um futuro incerto também para a escola.
Além da aula em tempo real, às terças-feiras a professora do Paranoá grava um vídeo de uma hora, que pode ser acessado pelos alunos nos grupos de Telegram e WhatsApp. Ela também produz formulários com atividades e exercícios que substituem os livros e são entregues na escola a pais e mães de alunos sem acesso à internet. Para esse público, não existe mais horário comercial, porque muitas vezes o estudante só consegue usar o celular do pai já tarde da noite. De acordo com dados da pesquisa PNAD Covid de outubro de 2020 realizada pelo Unicef, 3,8% das crianças e dos adolescentes de 6 a 17 anos (1,38 milhão) não frequentavam mais a escola no Brasil, seja na modalidade remota ou presencial. O dado supera a média nacional de 2019, que ficou em 2%. A entidade estima que 5,5 milhões de crianças e adolescentes não tiveram acesso à educação em 2020.
Dos diários no Paranoá ao humor em Messejana, no Ceará
O receio de como será a volta às aulas presenciais diante da diferença de aproveitamento dos alunos une a professora do Distrito Federal e Laryssa Queiroz, de 31 anos, docente do 6º ano em uma escola de tempo integral em Messejana, na região metropolitana de Fortaleza. A professora do colégio do Ceará explica que o simples fato de estar à frente do primeiro dos anos finais do ensino fundamental já traz por si só um desafio específico: é no 6º ano quando os alunos passam a ter vários professores, em vez de apenas um que dominava todos os conteúdos curriculares. “Além de que tinham apenas um professor, meus alunos vêm de uma escola regular, o que exige uma adaptação”, explicou. “A leitura é muito difícil pelo ensino à distância. Sem contar que eles têm em média 11 anos e a maioria nunca usou as plataformas digitais de ensino”, acrescentou. A orientação da escola, explica a docente, é dar aula como se fosse presencial, flexibilizando o horário de atendimentos dos alunos. Na prática, no entanto, todo professor é ciente de que o presencial não pode ser reproduzido fielmente. Laryssa destaca ainda a dificuldade de trabalhar as aulas de gramática. “São conteúdos difíceis de entender na sala física, imagina no remoto”, opina.
Na contramão das imposições da pandemia, no entanto, a professora também recorre à literatura e à imaginação para animar os alunos. Uma das atividades que tem mantido a atenção das turmas é a reprodução das histórias do livro Diário de Pilar, de Flávia Lins e Silva, que também virou série na internet. Os alunos são orientados a fazer maquetes, desenhos e pinturas com materiais de fácil acesso em casa, para não precisarem sair de suas residências.
Ativa nas redes sociais, Laryssa pesquisou como os vídeos do grupo humorístico Porta dos Fundos são recebidos pela audiência no doutorado em Linguística Aplicada na Universidade Estadual do Ceará. Não à toa ela utiliza recursos tecnológicos e humor em sala de aula. No ano passado, com turmas do 9º ano de uma escola no Mucuripe, uma região vulnerável na capital cearense, a estratégia usada para envolver os alunos nas aulas de revisão para uma prova de avaliação de rendimento escolar estadual foi lançar um baile de máscaras de proteção contra a covid-19 customizadas. A professora pediu que os alunos mandassem fotos das suas produções e, ao final da aula de intensivo, realizou uma votação no Instagram. “As dificuldades são muitas. A pobreza acaba se sobressaindo mais do que a doença, então tive de me letrar de novo, no mundo tecnológico, para me aproximar dos meus alunos”, contou.
“Tive de me inventar. Não é reinventar, é inventar mesmo”
A poesia de Alberto Caeiro saltou das páginas para vídeos animados pelos próprios alunos. Neles, ganhou cor, imagem, trilha sonora e narração digna de profissionais de comunicação. A ideia de juntar a literatura debatida nas aulas remoto com a tecnologia foi uma das formas que a professora Denise de Abreu, 50 anos, encontrou para envolver os alunos do 3º ano de ensino médio de uma escola estadual na zona leste de São Paulo. A suspensão das aulas presenciais em um ano decisivo para os alunos exigiu que a professora, com 33 anos de experiência docente, revisse sua própria carreira. “É o maior desafio profissional da minha vida”, conta.
Assim como Denise, muitos outros professores têm encarado o ensino remoto como uma experiência de superação. A nova realidade de aulas em tempo real pelo computador, o atendimento dos alunos por WhatsApp em horários imprevistos e a necessidade de acolhimento das turmas não só mudaram a rotina como trouxeram novos sentimentos sobre o trabalho. “Estou há 25 anos na mesma escola, tenho uma forte relação afetiva com ela, mas há uma parte triste da pandemia que é não conhecer os alunos, é a falta do contato físico”, explicou.
Além dos vídeos inspirados em textos literários, a professora também incentivou a produção de podcasts com temas dos livros abordados nas provas da Fuvest. Eles produziram programas de 15 minutos divididos entre a obra, o autor e o período literário estudados em sala. Os vídeos e áudios talvez façam pensar que a professora é alguém muito familiarizado com a tecnologia, impressão que ela refuta rindo. “Tive colegas mais novos que largaram na frente. Eu tinha muitas ressalvas com a tecnologia, mas tive de me inventar. Não é reinventar, é inventar mesmo”, afirmou.
O Governo do Estado de São Paulo tenta minimizar o impacto da pandemia com a distribuição de 500.000 chips de celular e aulas em tempo real e gravadas disponíveis por meio da multiplataforma do Centro de Mídias da Educação de SP, criada em abril do ano passado e acessível em qualquer lugar e a qualquer hora. Sem desanimar com o cenário adverso, a professora segue aperfeiçoando seus conhecimentos sobre mídias e lançando os alunos nessa missão conjunta. Agora, eles preparam adaptações do conto Pai contra mãe, de Machado de Assis, que trata de temas como família e escravidão, para o gênero quadrinhos. “Ainda assim é preciso voltar muito no conteúdo. Não é exagerado dizer que foi um apagão na educação, porque os alunos progridem pouco”, opina Denise.
Na avaliação de Daniela Segabinazi, da Universidade Federal da Paraíba, apesar dos esforços de professoras como os desta reportagem, os 1º e 2º anos, essenciais para a alfabetização, ficaram na dependência dos pais. São os ciclos mais importantes de alfabetização, consolidados no 3º e 4º ano, e com desdobramentos para os demais conteúdos como matemática e ciências. “Os professores estão se esforçando muito. A pandemia ensina que escola e professor são fundamentais”, avalia.
Em fevereiro de 2020, Daniela e um conjunto de pesquisadores de várias universidades criaram a Rede Nordeste de Ensino de Leitura Literária, com o objetivo de coletar e divulgar experiências de leitura literária nas escolas da região, além de fortalecer a pesquisa acadêmica sobre o tema. Formado no mesmo ano da pandemia, o grupo acaba por coletar também os esforços dos docentes diante da nova realidade. “Ano passado foi um ano de compreender o que estava acontecendo e agora estamos vendo muitos professores tentando criar novos métodos”, afirmou.
Apoie a produção de notícias como esta. Assine o EL PAÍS por 30 dias por 1 US$
Clique aquiUm dos agravantes da situação é a falta de coordenação nacional, apontaram a Human Rights Watch, que atua pelos direitos humanos, e a entidade Todos Pela Educação em documento que reúne recomendações para reduzir os prejuízos causados pela pandemia à educação brasileira. “O Ministério da Educação deixou de gastar o dinheiro já previsto no orçamento para projetos que poderiam ter ajudado a minimizar as consequências da pandemia”, afirmam as entidades num documento lançado na sexta-feira. O texto também cobra vacinação em massa para os profissionais e critérios claros, como por exemplo números de casos e mortes, para o fechamento e a reabertura das escolas.
Zigue-zague entre os três municípios sem vacina
No Rio Grande do Sul, boa parte das escolas voltaram às aulas presenciais no começo de maio. Com elas, Fernanda Duarte de Oliveira, de 42 anos, retomou a rotina de antes da pandemia, apesar da crise sanitária ainda em curso. Sai de casa às 5h30, de van ou Uber até a estação de trem saindo de Nova Santa Rita, uma cidade a 26km de Porto Alegre. Das 7h20 às 11h30 ela ensina em uma escola pública em Nova Hamburgo, a 45 km da capital gaúcha, depois pega um transporte até a cidade vizinha, São Leopoldo, onde ensina em uma escola privada das 13h15 às 17h30. Todo o zigue-zague entre os três municípios começou mesmo antes de a professora tomar a primeira dose da vacina contra covid-19, uma das demandas comuns dos profissionais em todo país para voltar às aulas presenciais.
Na Escola Professora Adolfina J. M. Diefenthäler, a função de Fernanda é apresentar os livros aos alunos, fazer rodas de poesia e incentivá-los a escrever. Mas ela não podia mais contar com o contato olho no olho durante a contação de histórias e visitas à biblioteca, por isso adaptou sua atuação em vídeos e áudios. “Todos os alunos entre 4 e 10 anos passam por mim na escola. É um momento muito esperado por eles”, lembrou. Com a restrição, Fernanda tem ajudado na produção de materiais de outros colegas e feito atendimentos online. À noite, em casa, a professora dá aulas para crianças negras que não conseguiram ser alfabetizadas no ano passado, usando seu próprio computador, no projeto Oorun (sol em iorubá).
Assim como Fernanda, a baiana Taísa de Sousa Ferreira, 37 anos, se ressente de não estar em sala de aula desde o ano passado. Seus alunos, do 3º e 4º anos, não têm sequer aulas em tempo real no digital. Em Salvador, as aulas das séries iniciais do ensino fundamental são gravadas por professores convidados e exibidas na televisão aberta. A Secretaria Municipal de Educação afirma que a decisão de aulas na TV se pautou pela constatação de que menos da metade dos alunos da rede municipal de ensino tem, hoje, acesso livre à rede de computadores. Ainda segundo a secretaria, a aquisição e distribuição de dispositivos de acesso à internet para todos os alunos, bem como chips com pacote de dados, acontecerá no segundo semestre deste ano. O documento da HRW e da ONG Todos pela Educação cita que, antes da pandemia, 4,1 milhões de estudantes no Brasil não tinham acesso à internet. “Há poucas chances de que essa situação melhore sem o apoio federal”, afirmam.
Enquanto isso, Taísa tem produzido jogos online, vídeos com contação de histórias e envio de livros em PDF para os alunos cumprirem o cronograma da escola. São tentativas de preencher a lacuna do presencial. Apesar do desencontro entre a redução salarial e o aumento de gastos com energia, alimentação e internet em casa, a professora pondera: “Não é um ano perdido graças aos esforços das professoras”.
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