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Autocuidado não era um creme. Foi um ato político de uma ativista negra e lésbica

Setor de cosméticos usa ideias nascidas no ativismo social para seduzir o consumidor da geração Z

Industria de la belleza
Loja de maquiagem em Shangai no último dia 13 de maio.Lyu Liang (GETTY IMAGES)

Chega de “loção de hidratante para pele normal” ou “shampoo para cabelos normais” nas prateleiras dos supermercados. A gigante britânica Unilever (dona de marcas como Dove e Axe) anunciou em março que retirará a palavra “normal” de seus produtos de higiene pessoal depois de consultar 10.000 pessoas de nove países em um estudo em que 56% dos entrevistados revelaram que se sentiam excluídos pela indústria da beleza e 6 em cada 10 identificaram efeitos negativos na palavra “normal”. A multinacional, que com seu compromisso “com a beleza real” da Dove tocou fundo no léxico popular, continua assim a capitalizar o movimento da “beleza positiva” em resposta às novas demandas de consumo.

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Por que a palavra “normal” fere estes consumidores? Porque é estridente e dissonante em relação aos tempos que correm, como já aconteceu com os termos “anti-idade” ou “clareador”. A associação de saúde pública do Reino Unido (RHSP) e a revista Allure –com a atriz septuagenária Helen Mirren na capa– pediram a erradicação do primeiro da linguagem publicitária em 2017. O último, junto com “branco” ou “claro” foi banido por várias marcas no verão passado, quando a ascensão do movimento #BlackLivesMatter apontou para a indústria da beleza por denunciar o racismo em suas redes sociais enquanto a perfeição continuava associada à tez clara. Uma situação especialmente premente no mercado asiático, onde os cremes de clareamento são algo básico em todo estojo de beleza e os estereótipos racistas estão normalizados no jargão popular: na China, existe a pele bai fu mei (“branca-rica-bonita”) e a hei chou qiong (“negra-feia-pobre”).

Nova biopolítica

A terceira onda do feminismo dos anos noventa e ensaios como O Mito da Beleza, de Naomi Wolf, fizeram pedagogia ao converter as mulheres em sujeitos, e não em objetos escravos do olhar masculino. Superada essa questão (ao menos no Ocidente), em um panorama de ansiedade, polarização e precarização, a quarta onda ativista do século XXI apela ao autocuidado e à autoestima como eixos da resistência política. A geração Z prioriza marcas com as quais comunga em mensagens positivas, sustentabilidade e inclusão, diz o último relatório da empresa de previsão de tendências de consumo WSGN. André Spicer, professor da Universidade de Londres, autor de Business Bullshit (2017), define esta inter-relação entre ativismo global e cultura do bem-estar pessoal como “biopolítica”. Para ele, o ativismo sempre esteve intrinsecamente relacionado à estética: “Os movimentos sociais muitas vezes têm um aspecto particular ou promovem uma forma particular de cuidar do corpo e regular a alimentação. Inclusive Gandhi tinha uma rígida disciplina corporal e uma forma de vestir e viver relacionada à causa da independência indiana e ao processo não violento: é aí onde o corpo (bio) se encontra com a política”.

A última década foi definida pela filosofia da beleza positiva, encapsulada no lema “Todos os corpos são belos”. Muitos o criticam como reducionista e isolacionista. “Enquanto o movimento se centra singularmente na moda e na venda de produtos, vetos às pessoas trans são aprovados, as companhias aéreas dificultam a viagem de pessoas de porte avantajado”, escreve a jornalista Evette Dione em seu festejado ensaio A Fragilidade do Corpo Positivo. Algo muito distante, sublinha, da política radical de aceitação da gordura que deu origem à positividade corporal. Para Spicer, o processo de apropriação é um preço a pagar: “Por um lado, a indústria satisfaz uma nova necessidade criada por um movimento que mudou os gostos populares e pode-se inclusive dizer que ajuda que a mensagem chegue aos consumidores principais. Mas, no processo, diluem-se aspectos do ativismo para alcançar o consumidor convencional”.

É que a lógica que rege as empresas é a do capital, não a da justiça social. “A indústria da beleza existe para nos oferecer conforto, não para nos salvar”, lembra Arabelle Sicardi, jornalista norte-americana de ascendência taiwanesa especializada na correlação entre beleza e poder político, tema de seu ensaio The House of Beauty, que será publicado em breve pela W.W. Norton. “As respostas para problemas estruturais como o racismo ou a crise ambiental não serão dadas comprando produtos que prometem doar 5% para uma ONG”, comenta.

“Imagine Audre Lorde misturada com Gwyneth Paltrow vendendo-se para uma geração Z muito envolvida no ativismo e que se identifica com o pronome ‘ele’: aí está o futuro da indústria do cuidado pessoal”, prevê Spicer. Explicar o presente juntando uma ativista lésbica e negra com a empresária mais famosa da indústria do bem-estar tem lógica. Na semana posterior à vitória de Donald Trump em 2016, as buscas por “selfcare” (autocuidado em inglês) atingiram picos históricos no Google. “Cuidar de mim não é autocomplacência, é autopreservação, e isso é um ato de guerra política”, escreveu Lorde em A Burst of Light (1988) sobre por que se refugiar no amor por si mesma diante de um mundo hostil para mulheres lésbicas, pobres e negras. Tal como aconteceu com a deriva comercial de “empoderamento” há meia década, o “autocuidado” de Lorde se transformou em palavra coringa. “Vincula a beleza à autenticidade e ao desenvolvimento pessoal em vez do narcisismo, e inclusive lhe dá um caráter espiritual em vez de puramente comercial”, explica Spicer.

Não parecerá negócio por apelar ao bem-estar, mas daquela resistência política que Lorde defendia restou um clássico pote de creme e velas detox nos anúncios segmentados pelo algoritmo do Instagram. “A ideia de que podemos cuidar de nós mesmas com banhos e máscaras para nos recuperarmos de ataques racistas ou de abusos policiais é uma fantasia neoliberal. É claro que às vezes é um mecanismo de sobrevivência, mas um mecanismo de sobrevivência não é uma solução”, sentencia a jornalista Arabelle Sicardi.

Em 2021, a mulher urbana ocidental não usa cremes para caçar um marido, como recomendava a publicidade dos anos cinquenta, mas ela o faz para si mesma. Repetem-se gestos de avós e mães porque os medos de que o negócio se alimenta (por que acho que estou gorda, por que tenho rugas, por que não durmo bem) continuam igualmente ligados ao mito da mulher ideal, apesar do dicionário inclusivo e das palavras proibidas. Nome diferente, mesmo ritual.

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