Execução sádica de tio e sobrinho em Salvador atrela, outra vez, um hipermercado a racismo que mata
Flagrados roubando carne no Atakadão Atakarejo, Bruno e Yan foram entregues a traficantes e executados após tortura. “Foi errado o que eles fizeram? Foi. Mas para que ter polícia se eles mandam matar a pessoa?”, diz mãe de Yan
Quatro pacotes com 5 quilos de carne condenaram à morte Bruno Barros, de 29 anos, e Yan Barros, 19. Flagrados enquanto tentavam furtar os produtos em uma loja do Atakadão Atakarejo em Salvador, tio e sobrinho foram vítimas de um tribunal do crime patrocinado pelo próprio supermercado. O gerente e seguranças do estabelecimento entregaram Yan e Bruno a traficantes, que torturaram, assassinaram e depois deixaram os corpos dos dois no porta-malas de um carro.
O caso, ocorrido na última segunda-feira (26) na comunidade do Nordeste de Amaralina, mostra como supermercados no Brasil podem ser cenários de atos de violência praticados por seus próprios funcionários. Casos assim não são incomuns, como os de João Alberto e Pedro Gonzaga, asfixiados até a morte por seguranças do Carrefour e do Extra, respectivamente. Em comum, um marcador racial: todas as vítimas eram negras. Mas no Atakarejo, entretanto, a situação ganha um novo componente: a associação entre a empresa e o tráfico de drogas. Um poder paralelo, no qual parece não haver espaço para defesa e onde impera a pena de morte. Uma história que mostra que, como Elza Soares cantou em 2001 no disco “Do Cóccix ao Pescoço”, a carne mais barata do mercado é a carne negra.
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Familiares e amigos não sabem por que Yan e Bruno saíram do bairro de Fazenda Coutos, onde viviam, e foram para o Nordeste de Amaralina na segunda. Mas o primeiro sinal de que algo de errado estava acontecendo veio por volta de 13h30. Bruno enviou um áudio no WhatsApp para uma amiga, que ele considera como irmã de criação (o nome não será mencionado por questões de segurança), e pede 700 reais para pagar as carnes que tinha pego no Atakarejo. Em um salão de beleza, ela não consegue perceber que a mensagem havia chegado.
Sem resposta, Bruno faz uma chamada de áudio às 13h46 e consegue falar com a amiga. Conta que ele e o sobrinho foram flagrados tentando furtar a carne e que foram levados para o estacionamento pelo gerente e seguranças do supermercado, onde foram agredidos. Os funcionários exigem o pagamento de 700 reais, valor que seria referente ao produto, para libertá-los. Caso o dinheiro não seja depositado, ameaçam entregá-los a traficantes da região, dominada pelo Comando da Paz. A facção estaria associada ao Comando Vermelho, do Rio de Janeiro, o que a Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) nega.
A amiga de Bruno inicia uma operação junto a parentes e amigos para levantar o dinheiro. Consegue, inicialmente, 250 reais. “Liguei para ele e pedi para um dos seguranças mandar o Pix, que eu fazia a transferência, enquanto a gente tentava levantar a outra parte do dinheiro. Ia ser uma garantia de que a gente ia pagar. Os funcionários não aceitaram, queriam tudo de vez”, relata ela.
Bruno se desespera e faz contatos com outras pessoas para pedir dinheiro. Um áudio enviado para a reportagem mostra ele dizendo a alguém: “Ela já tem 200 reais lá, vê se você arranja esse dinheiro aí”. “Ele dizia ‘o tempo tá passando, eles vão me entregar, eles não estão brincando, não. Se eles me entregarem, eu vou morrer’”, lembra a amiga.
Apesar do esforço, não deu tempo de levantar o valor. Às 14h02, ela recebe uma ligação em que Bruno conta que os funcionários tinham decidido entregar Yan e ele aos traficantes. Foi a última vez em que se falaram. “Ele pediu ‘chame a polícia para me prender, o segurança está me entregando pelo estacionamento aos traficantes. Eu vou morrer’. Cheguei a ligar para o 190, dei queixa que tinham homens armados no supermercado, mas não teve jeito.”
Testemunhas relataram a familiares que os jovens foram arrastados por ruas do Nordeste de Amaralina enquanto apanhavam. Enquanto isso, fotos das vítimas circulavam por grupos de WhatsApp e chegavam até os parentes. Sem notícias, a família precisava assistir ao sofrimento espetacularizado dos dois. Imagens que circulam nas redes sociais mostram tio e sobrinho em três momentos. O primeiro logo após eles terem sido flagrados furtando carnes na rede de supermercado. Os dois estão agachados numa área interna do estabelecimento, ao lado dos produtos que teriam sido furtados e de um homem, apontado como segurança da loja. O segundo momento mostra tio e sobrinho sentados, já com os traficantes. As últimas imagens mostram os corpos, ambos com os rostos deformados por conta dos disparos.
Mortos no Nordeste, os jovens tiveram os corpos colocados no porta-malas de um carro, deixado pelos traficantes na região da Polêmica, localidade do bairro de Brotas. Elaine Costa Silva, mãe de Yan, conta que os primeiros rumores de que os dois tinham sido assassinados surgiram nas redes sociais. Aí começou a busca para confirmar o desfecho trágico. O pai de Yan é irmão do seu tio Bruno. “Primeiro a gente ligou para o DPT [Departamento de Polícia Técnica], mas eles não estavam achando nenhum corpo no IML. Eu consegui o número do DHPP [Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa], e eles disseram que não tinha nenhuma ocorrência no Nordeste de Amaralina, mas que tinham dois corpos achados no porta-malas de um carro na Polêmica”, relata. Elaine só conseguiu reconhecer o corpo do filho por causa das roupas que ele usava. Já Bruno foi reconhecido por uma cicatriz que tinha na barriga. O velório dos dois ocorreu com caixões fechados, por causa do estado de desfiguração dos rostos.
Comida para comprar comida
A amiga de Bruno acredita que ele venderia as carnes para comprar comida. Desempregado, o rapaz passava por dificuldades financeiras e não tinha como se manter. Pedia dinheiro emprestado a amigos para pagar contas. Não conseguia depositar a pensão alimentícia da filha de 12 anos. Se fazia refeições diariamente, era por causa da mãe, que sempre mandava tudo o que cozinhava. Era de dona Dionésia Barros da Silva, também avó de Yan, a casa onde vivia desde que se separou da ex-mulher. Para deixar o filho no local, Dionésia se mudou para um imóvel alugado.
As duas passagens anteriores de Bruno pela polícia, também por furtos de alimentos, diminuíam as chances de conseguir emprego. Com a pandemia da covid-19, ficou ainda mais difícil. Uma esperança de melhorar a situação era o auxílio emergencial de 600 reais do Governo federal, mas o rapaz não conseguiu o benefício.
Elaine ainda não entende por que Yan participou do furto e nem sabe dizer o que seria feito com a carne porque nunca teve notícia de envolvimento do filho com qualquer tipo de crime. Mas a situação financeira da família também é difícil. Elaine vive em uma casa construída com madeirite e materiais recicláveis, em uma área de ocupação na Fazenda Coutos. Sua principal renda vem da venda de materiais de limpeza nos semáforos, mas o trabalho ficou prejudicado com a pandemia. Sem ajuda dos pais, Elaine precisou sustentar os quatro filhos sozinha.
Yan não trabalhava. Era integrante do Projeto Axé, ONG internacionalmente reconhecida pelo trabalho na área da educação e na defesa dos direitos das crianças e adolescentes, e estava concluindo o 9º ano do Ensino Fundamental. Chegou a vender amendoim no transporte coletivo para reforçar a renda da família, mas precisou parar por causa da covid-19. A mãe conta que o filho também tinha dificuldades para conseguir o que comer. “Ele ficava me mandando mensagem sempre para saber se eu tinha feito comida, quando é que a comida ficava pronta. Eu mandava quentinhas para ele. A avó também ajudava.”
O jovem estava vivendo com o tio e o irmão mais velho na casa de Dionésia, uma moradia de condições precárias com cinco cômodos e poucos móveis. A pintura das paredes é consumida pela umidade e falta de manutenção. O cheiro de mofo pode ser sentido em toda a casa. Elaine entra em um dos quartos e mostra duas bermudas, colocadas em cima de um colchão manchado pela ação da umidade e desgastado pelo tempo, onde Bruno dormia. Explica que Yan e o irmão mais velho revezavam o uso das peças.
“Atakarejo assassino”
O celular virou a principal forma de contato entre Yan e Elaine. Ela revira as conversas com o filho no WhatsApp, em busca de áudios, fotos e vídeos dele. “Agora, para ver o sorriso dele, eu tenho que usar isso”, diz, apontando para o aparelho. Por volta de 18h, ela conversa com a reportagem do EL PAÍS, após um longo dia de entrevistas para cobrar justiça e denunciar a tragédia pessoal que vive desde que perdeu o filho de maneira brutal e inexplicável. A mãe de Bruno não conseguiu dar entrevista. Está sob efeito de remédios após a brutal execução do seu filho, humilhada pela exposição sádica das imagens de Bruno.
A sexta-feira foi de protestos pela morte dos jovens. Um deles aconteceu em Fazenda Coutos, organizado pela própria comunidade. Com gritos de “Atakarejo assassino”, manifestantes fecharam uma rua até o fim da tarde e reivindicaram que o crime seja solucionado logo. À tarde, movimentos sociais fizeram ato na frente do Atakarejo do Nordeste de Amaralina, onde começou o calvário de Yan e Bruno.
Elaine se alterna entre dor e revolta. Diz que os funcionários do supermercado não deram chance para que os rapazes pudessem pagar a carne. Não consegue mais chorar porque está indignada. “Foi errado o que eles fizeram? Foi. Ninguém pode fazer isso. Mas para que ter polícia se eles mandam matar a pessoa? Eles condenam uma pessoa à morte? Meu filho perdeu a vida, com 19 anos, por quatro pacotes de carne.”
Ela prossegue: “A cara do meu filho em pânico, a mão de meu filho toda ensanguentada é uma imagem que nunca vai sair da minha mente. Eu não consigo mais chorar de revolta. De segunda para cá, acabaram com meus dias de vida. Eles me destruíram”. Elaine reclama também que, até o momento, não recebeu nenhum tipo de auxílio do Atakarejo, seja financeiro ou psicológico. Volta de novo ao WhatsApp e mostra vídeos do filho fazendo piada na última festa de aniversário dele, em 4 de abril. Lembra do jeito debochado de Yan. “Nunca mais vou ver isso”, lamenta.
Em nota, o Atakarejo diz não compactuar com “qualquer tipo de violência” e que tem “compromisso com a observância dos direitos humanos e com a defesa da vida humana digna”. O grupo informa ainda que está colaborando com as investigações e entregou todos os documentos e imagens do sistema de segurança à polícia. A nota não diz, no entanto, se os funcionários envolvidos no caso foram afastados. “O Atakarejo é uma empresa séria, sólida e cumpridora das normas legais, que possui rigorosa política de compliance e que não compactua com qualquer ação criminosa. [...] A empresa ressalta que repudia veementemente qualquer tipo de violência e se solidariza com a família das vítimas neste momento tão difícil. O grupo aguarda o encerramento das investigações para a elucidação do caso e espera a punição de todos os culpados”, diz trecho do posicionamento.
O Atakarejo pertence a Teobaldo Costa, empresário que se candidatou a prefeito da cidade de Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador pelo DEM, nas eleições passadas. À Justiça Eleitoral, declarou ter 341.286.567,60 de reais em bens. Teobaldo ficou conhecido também por se tornar uma espécie de garoto-propaganda do supermercado, ao aparecer anunciando ofertas da rede em anúncios na televisão.
Há indicativo de autoria, diz polícia
A Polícia Civil informa em nota que testemunhas do crime foram ouvidas e que as investigações estão avançadas, com “indicativo de autoria”. Ainda conforme a polícia, as equipes estão realizando diligências e mais detalhes não podem ser divulgados, para não interferir no andamento das apurações. O Ministério Público da Bahia (MP-BA) está acompanhando as investigações e abriu notícia-crime sobre o caso, que foi encaminhada ao Núcleo do Júri da Capital. O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa da Bahia (AL-BA), deputado estadual Jacó (PT), quer que o supermercado explique para a população se tem alguma relação com o tráfico de drogas. “Se o gerente ligou para o tráfico, é porque havia algum ponto de autorização do Atakarejo. Teve um fato, e a direção da empresa tomou uma atitude que é covarde. Se fosse o dono de algum boteco, estaria até preso. É o dono de uma rede que se nega a comentar o caso. O Atakarejo faz de conta que não existe. Quem faz a segurança por fora do Atakarejo é o tráfico?”, questiona. A comissão acompanha o caso e pediu, via ofício, que a SSP-BA designe um delegado especial para conduzir as investigações. Enquanto o crime não é solucionado, Elaine tenta se preparar para outra batalha que virá junto com a tentativa de superar o luto: a da cobrança por justiça. “Quero que cada um daquele Atakarejo pague.”
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