Nunca uma CPI começou com tantos sinais de crime
Quase 400.000 mortos depois, incontáveis frases de deboche e omissões, o Governo Bolsonaro é obrigado a responder sobre a pandemia
Os vivos e os mortos assombram Brasília neste início dos trabalhos da CPI da Covid-19. Os vivos com suas perguntas incômodas; os mortos recentes despertam nos seus familiares a sensação de que estariam entre nós se o Ministério da Saúde tivesse ...
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Os vivos e os mortos assombram Brasília neste início dos trabalhos da CPI da Covid-19. Os vivos com suas perguntas incômodas; os mortos recentes despertam nos seus familiares a sensação de que estariam entre nós se o Ministério da Saúde tivesse comprado a tempo as vacinas oferecidas ao Governo.
Nunca o país deu início a uma Comissão Parlamentar de Inquérito, nem mesmo no escândalo do Collorgate (1992), com tantas evidências e rastros de culpa espalhados pelos labirintos do poder na capital federal.
O medo dos vivos e dos mortos se manifestou logo de véspera. O presidente Jair Bolsonaro, sem resposta diante de uma indagação de Driele Vargas (Tv Aratu), no município de Conceição do Jacuípe (BA), apelou para o cafajestismo. A jornalista perguntou sobre a foto do ex-capitão com o cartaz “CPF cancelado”, expressão usada por criminosos para louvar a morte. “Você não tem o que perguntar, não? Deixa de ser idiota”, insultou.
O Governo se pela de medo. E tem 23 motivos para isso, como revelou o repórter Rubens Valente (UOL). Uma tabela distribuída pela Casa Civil da Presidência listou 23 acusações fatais para o Planalto. O documento inclui até a possibilidade de genocídio no descuido com os indígenas. É forte e faz todo sentido do planeta. Some-se a isso, em uma edição que está no imaginário nacional, as frases da “gripezinha” e os deboches de rotina, como o “e daí?” e o “eu não sou coveiro” etc.
Até encontrar o cheque —da compra de uma perua Fiat Elba— que ligou o ex-presidente Collor ao tesoureiro PC Farias, a CPI que derrubou o ex-presidente alagoano teve que ouvir motoristas, secretárias, empresários e quebrar uma penca de sigilos bancários. Na CPI instalada nesta semana no Senado, basta ouvir uma das famílias que perderam seus parentes por falta de oxigênio em Manaus que teremos um roteiro completo do pandemônio vivido sob a gestão do ministro Pazuello. O mesmo general da ativa que desfilava no final de semana sem máscara em um shopping da capital amazonense.
Flagrado em delito, o ex-titular da equipe bolsonarista perguntou, ironicamente, onde compraria uma proteção contra o coronavírus. Os caras são abusados, abusadíssimos.
Dois dias antes, talvez movido por razões conscientes ou inconscientes de quem volta ao local do crime, o próprio Bolsonaro havia feito um desagravo a Pazuello e recebido um título de cidadão amazonense arranjado às pressas na Assembleia Legislativa pelo deputado estadual Delegado Péricles (sem partido). Vale tudo em busca de um álibi, como diria a dama do crime, a escritora Agatha Christie.
Os vivos e os mortos assombram um Governo que zombou da “gripezinha” e se omitiu nos momentos em que mais precisávamos de ações firmes pela vida.
Depois das valas comuns abertas em Manaus, alguns cemitérios —como previu o cientista Miguel Nicolelis, colunista deste jornal— estão exumando restos mortais para que as vítimas da covid-19 tenham vagas. Caso de Camaragibe, na região metropolitana do Recife. Na Vila Formosa, Zona Leste de São Paulo, a prefeitura acaba de abrir pelo menos 300 novas covas para evitar o o colapso funerário.
O problema não é somente falta de leitos em alguns hospitais. É também onde enterrar os que partiram desta para outra. Xingar de idiota uma mulher que faz uma pergunta jornalística sobre uma foto (com pose explícita de fanfarrão) não responde nada. Nem aos mortos. Nem aos vivos.
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de Big Jato (Companhia das Letras), entre outros livros.
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