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Tribuna
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25 anos do massacre de Eldorado do Carajás: o tempo passou, mas nem tanto

Desde aquele agora longínquo 17 de abril de 1996 não houve nenhum avanço significativo na reforma agrária, e na disputa pela terra continua-se país afora a matar desbragadamente

Eldorado do Carajás
Sebastião Salgado (Arquivo e memória MST)
Eric Nepomuceno

Passados 25 anos do massacre de Eldorado do Carajás – o pior da nossa história – houve mudanças, por certo, mas não para melhor.

Algumas mudanças são dolorosas para mim. Foram embora para sempre importantes personagens do livro que escrevi – O Massacre (editora Record, 2019).

Outras foram surpreendentes, e de forma negativa. Em 2012, depois de dezesseis anos de impunidade, os dois policiais militares que comandaram o massacre, o coronel Mario Colares Pantoja e o major José Maria Pereira de Oliveira, foram finalmente presos.

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Já no ano seguinte o coronel passou a despejar pedidos para cumprir sua pena em regime de prisão domiciliar, por razões de saúde. Chegou a apelar, no final de 2015, ao Supremo Tribunal Federal.

Ouviu uma sequência contundente de negativas. Em 2016, a vinte anos do massacre, conseguiu.

A questão mais inquietante é que, em todo o resto, muito pouco mudou, e sempre para pior.

Nunca mais houve matança semelhante, é verdade. Mas quase: na manhã de uma quarta-feira de breu ―a do dia 24 de maio de 2017― chegou-se bem perto.

Em Pau D’Arco, no sudoeste do sempre sangrado Pará, dez camponeses – nove homens e uma mulher – acampados nas margens da fazenda Santa Lúcia foram assassinados de maneira especialmente brutal por um grupo de 29 policiais civis e militares, entre eles dois delegados e um coronel da Polícia Militar.

Há, no entanto, umas quantas diferenças entre essas duas violências. Mas são diferenças que importam menos: o que mais importa é a macabra repetição dos fatos.

O advogado José Batista Afonso, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), lembra que em meados de 2017 havia mais de 160 acampamentos de sem-terra nas regiões sul e sudeste do Pará.

Ou seja: ao menos 160 focos de tensão permanente, e onde a qualquer momento podem voltar a ocorrer atos de violência das forças de segurança pública que agem como de segurança privada dos grandes proprietários de terras que, em sua imensa maioria, foram adquiridas de maneira ilegal.

Este é apenas mais um retrato de uma realidade que permanece imutável, condenada ao silêncio omisso da opinião pública e ao descaso das autoridades responsáveis pela questão agrária ―dramática questão.

Desde aquele agora longínquo 17 de abril de 1996 não houve nenhum avanço significativo na reforma agrária, e na disputa pela terra continua-se país afora a matar desbragadamente.

Também não mudou a tenebrosa frequência com que se mata no Pará, que continua liderando a lista macabra de assassinatos. Mas agora, o número e a diabólica frequência dessas mortes aumentam em outros estados brasileiros, com destaque para Rondônia e Mato Grosso do Sul.

E se com Michel Temer na presidência houve um palpável retrocesso na questão de legalizar assentamentos de terra, com a chegada de Jair Bolsonaro o quadro apagou de vez.

Se as grandes famílias da época do massacre de Eldorado perderam força e poder, em seu lugar surgiram grandes empresas, principalmente de mineração. A ocupação ilegal de terras públicas, assim, apenas mudou de mãos. E contando com a omissão cúmplice do atual governo, quando não com o mais claro incentivo, o quadro não faz mais que se agravar. Retrocesso na questão da terra, avanço desmesurado na destruição.

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Estudiosos da questão agrária no Brasil coincidem num mesmo ponto: o país tem uma das estruturas fundiárias mais concentradas do planeta. Para Bernardo Mançano, professor da Universidade Estadual Paulista, a UNESP, trata-se de uma clara herança do sistema colonial: ‘Um por centro dos proprietários detém 60% das terras’.

Incansável e obstinado lutador pelas causas dos desfavorecidos, dos abandonados de sempre, o teólogo Leonardo Boff diz que os brasileiros somos herdeiros de quatro sombras que pesam sobre nós e que originaram e originam a violência: nosso passado colonial violento, o genocídio indígena, a escravidão, que segundo ele é a mais nefasta de todas, e a Lei das Terras, que exclui os pobres e negros do acesso à terra e deixou-os à mercê do arbítrio do grande latifúndio.

Pois essas sombras continuam enevoando o horizonte e corroendo qualquer perspectiva de um futuro de justiça e igualdade.

Passados 25 anos do massacre de Eldorado do Carajás, continuam cravadas na alma e na memória dos que lutam pelo direito a um pedaço de terra os mesmos troncos queimados das castanheiras erguidos em círculo, lá na curva do S, entrada da Vila 17 de Abril.

Cravadas na terra que é sua última morada, continuam as mesmas 19 cruzes nos cemitérios de Curionópolis, Parauapebas, Marabá e Eldorado do Carajás.

A sombra dos troncos queimados e das cruzes plantadas na terra do Pará se estende como imensa mancha sobre todo este país.

Como lamento dos injustiçados de sempre.

Eric Nepomuceno é jornalista, escritor, contista, tradutor e autor do livro Massacre - Eldorado do Carajás - uma história de impunidade, da editora Record.

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