Bolsonaristas insuflam tensão na PM da Bahia após morte de soldado que atirou contra colegas
Parlamentares, entre eles filho de presidente, politizam caso de Wesley Soares Góes, que teve surto segundo comando. Ação causa consternação e temor de motins em uma categoria sob pressão na pandemia
A morte do policial militar Wesley Soares Góes, baleado por equipes de sua corporação após passar horas gritando palavras de ordem e atirando para o alto e contra agentes em Salvador, provocou consternação na PM baiana e uma reação política imediata. Logo após o soldado, que segundo a PM estava em surto psicótico, ser atingido pelos tiros que o mataram, o deputado estadual Soldado Prisco (PSC), que liderou motins policiais no passado, conclamava, em vídeo publicado nas redes sociais, os militares a paralisarem as atividades, em solidariedade ao colega de farda. Na frente do hospital para onde Wesley foi levado ainda com vida, policiais gritavam “a PM parou”. Nas redes sociais, parlamentares bolsonaristas incitavam os agentes a descumprirem ordens do governador Rui Costa (PT), parte da campanha dos apoiadores do presidente contra as medidas de isolamento social determinadas pelo Governo estadual para conter a pandemia. As ações coordenadas acenderam o temor de que a Bahia revisite as cenas vistas em fevereiro do ano passado, no Ceará, quando um motim da Polícia Militar deixou, em 13 dias, um rastro de 312 mortes, entre homicídios e latrocínios.
Nesta segunda, perfis bolsonaristas seguiram politizando a morte de Wesley, que tinha 38 anos. Em postagens que tentam dar conotação de heroísmo à atitude do policial, políticos ligados ao presidente compartilharam um vídeo no qual o soldado aparece gritando palavras de ordem como “Eu não vou permitir que violem a dignidade humana de um trabalhador” ou “Venha ver a desmoralização da Polícia Militar da Bahia”. O trecho, no entanto, omite os tiros dados por ele para o alto ou que o soldado, que tinha o rosto pintado de verde e amarelo, jogou uma bicicleta e material de trabalho de ambulantes do mar. “Soldado da PM da Bahia abatido por seus companheiros. Morreu porque se recusou a prender trabalhadores. Disse não às ordens ilegais do governador Rui Costa da Bahia. Esse soldado é um herói. Agora a PM da Bahia parou. Chega de cumprir ordem ilegal!”, escreveu a presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, deputada Bia Kicis (PSL-DF) no Twitter. Criticada por colegas de Casa, a parlamentar apagou a postagem, para “aguardar as investigações”.
Ao postar o mesmo vídeo, a deputada Carla Zambelli (PSL-SP) escreveu: “Sinto muito a morte do PM-BA. É muito difícil aguentar tanta pressão”. O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) afirmou que, “aos vocacionados em combater o crime, prender trabalhador é a maior punição”. “Esse sistema ditatorial vai mudar. Protestos pipocam pelo mundo e a imprensa já não consegue abafar. Estão brincando de democracia achando que o povo é otário. Que Deus conforte os familiares do PM-BA”, disse o filho do presidente Jair Bolsonaro.
Presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo afirmou em uma rede social que pretende incluir Wesley na lista de Personalidades Negras da instituição. “As palavras dele, antes de ser baleado, expressam a indignação dos trabalhadores brasileiros ante a truculência e o autoritarismo”, escreveu. Ao EL PAÍS o deputado estadual bolsonarista Capitão Alden (PSL) relatou que Camargo ligou para ele e confirmou que faria a inclusão.
Um policial até então pacato
O comandante-geral da PM da Bahia, coronel Paulo Coutinho, afirmou que os tiros dados contra Wesley foram para revidar disparos feitos pelo soldado contra as equipes. Vídeo feito por cinegrafista da TV Band Bahia mostra que o policial é quem dá o primeiro tiro. Em resposta, PMs efetuam disparos em Wesley, que cai. No chão, segundo Coutinho, o policial continuou com as rajadas e foi novamente atingido.
Conforme o comandante, na ação foi usado armamento não letal, como balas de borracha (munição de elastômero) e granadas, mas isso não foi suficiente para conter o policial. “Infelizmente tínhamos um provocador de evento crítico, transtornado mentalmente, utilizando arma de grande letalidade e que, em determinado momento, não obstante todos os recursos que nós utilizamos de isolamento e contenção, ele direcionou essa arma para a tropa e efetuou disparos que poderiam ter atingido mortalmente não só policiais militares, mas também a comunidade naquele local que reside”, defendeu-se Coutinho. Ainda segundo o comandante, não há relatos de que Wesley tenha demonstrado que estava passando por problemas de saúde mental ou que tenha procurado suporte psicológico da PM.
A ação do policial surpreendeu a corporação. Lotado em uma companhia na cidade de Itacaré, sul baiano, o soldado foi trabalhar normalmente no domingo pela manhã. Então pegou três armas do trabalho, entrou no próprio carro e fez uma viagem de quase cinco horas até a capital baiana, onde tudo aconteceu. Policiais que tiveram contato com colegas de Wesley afirmam que o soldado vinha se queixando de perseguição por parte do comandante da companhia, o que pode ter desencadeado o surto. Questionado sobre o assunto, Paulo Coutinho disse desconhecer qualquer tipo de conflito.
O presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, afirmou que o caso de Wesley é “complexo” e não pode ser transformado em uma “batalha de narrativas entre bem e mal”. “Muito perigoso politizar um episódio tão complexo como o que envolve alguém em surto psicótico, sempre uma operação complexa. Ainda mais quando envolve alguém armado. Podemos criticar os protocolos. Não podemos transformar o caso em uma batalha de narrativas entre bem e mal”, avaliou Lima, no Twitter.
Um dia após a morte de Wesley, o governador petista Rui Costa se pronunciou sobre o caso. Em vídeo publicado nas redes sociais, o petista prestou solidariedade à família do PM e criticou os ataques que recebeu. “O final de semana foi de ataque a mim e a governadores e prefeitos do Brasil inteiro, mas não iremos nos intimidar com mentiras, ameaças, calúnia e difamação”, disse Costa, que assinou nesta segunda-feira uma carta com colegas de 16 Estados pedindo ação conjunta dos poderes contra a disseminação de fake news por agentes políticos. Os governadores, que tentam impor medidas de restrição social por causa da pandemia, temem que os bolsonaristas insuflem a insubordinação dos soldados em várias partes do país.
Tensão na PM da Bahia
O clima geral na PM baiana com o desfecho do caso Wesley é de consternação e o alto comando da corporação monitora possíveis reações mais enérgicas por parte de alguns setores. A avaliação é de que os praças estão com os ânimos mais inflamados, enquanto os oficiais pregam cautela. Nesta manhã, enquanto bolsonaristas deixavam a hashtag #RuiCostaGenocida entre os assuntos mais comentados no Twitter e aumentavam a temperatura da situação, os discursos se modulavam.
Para uma massa inflamada durante ato com PMs nesta manhã no Farol da Barra, mesmo lugar onde Wesley foi morto, Prisco deixou de falar em greve, mas sugeriu que os militares adotassem uma “operação padrão”: deixariam de prender ou entrar em confronto para apenas fazer patrulhamento preventivo e ostensivo. Apesar da inflexão no discurso, incitou os manifestantes contra o comando da corporação. Perguntou aos presentes quem queria a saída do comandante-geral, coronel Paulo Coutinho, a quem chama de “ditador”. Recebeu como resposta gritos de “Fora, Coutinho”.
Mas as reivindicações extrapolaram também o caso Wesley. Os policiais pedem melhores condições de trabalho na pandemia. Se dizem sobrecarregados, com medo da exposição ao coronavírus. Segundo a Associação de Policiais e Bombeiros e de seus Familiares (Aspra), 70 policiais militares morreram por covid-19 desde o início da crise sanitária. A situação tem levado a saúde mental dos agentes ao limite. “O que Wesley fez foi um grito de socorro que muito policial não consegue fazer e, no auge do sofrimento, se trancam em seu quarto, colocam uma arma na boca e se matam”, lamentou um manifestante.
Também presidente da Aspra, Prisco é um conhecido agitador e articulador de greves da PM-BA, sendo o principal responsável pelos motins mais recentes, em 2012 e 2014 ―foi preso nas duas ocasiões. No movimento de 2012, foi flagrado em interceptações telefônicas nas quais combinava a realização de atos de vandalismo na capital baiana. Com a visibilidade que ganhou, lançou-se na vida pública e está atualmente no segundo mandato na Assembleia Legislativa da Bahia, onde faz oposição a Rui Costa.
Questionado pela reportagem sobre se estaria incitando motim na Polícia Militar, o parlamentar negou e disse que o objetivo do movimento é esclarecer “quem matou e quem mandou matar” o soldado Wesley Góes. “Toda sociedade que estava ali viu que ele foi assassinado, executado de forma brutal pelo Governo do estado. O que nós queremos, além da saída do comandante, é uma investigação independente, pois não acreditamos na investigação do Estado. Vamos pagar uma perícia particular. Vamos pegar essas reivindicações, colocar numa pauta e entregar ao governador Rui Costa”, disse.
Capitão Alden também negou a possibilidade de motim porque a ação é inconstitucional. “Não existe possibilidade jurídica de motim. No ordenamento jurídico, prevê responsabilidade direta de quem deixa de cumprir com suas obrigações. Para nós, não cabe. A gente não quer se negar a cumprir ordens, mas queremos cumprir apenas com as nossas obrigações.” Alden ainda afirmou ter pedido ajuda a Eduardo Bolsonaro para que articule junto ao STF um entendimento jurídico que limitasse as reais atribuições da PM no cumprimento de medidas restritivas adotadas por Estados e municípios na pandemia. Presidente da Associação dos Oficiais Militares Estaduais da Bahia (Força Invicta), o tenente coronel Copérnico não vê possibilidade de greve, mas prega cautela nos ânimos para evitar uma conflagração. “A gente não vê nenhuma sinalização de efetividade disso e esperamos que entidades e Governo tenham equilíbrio para lidar com a situação. Esperamos que a evolução dessa manifestação não chegue a esse ponto [de greve].”
Wesley Soares Góes foi enterrado em Itabuna, no sul do Estado, nesta segunda-feira. Amigos, familiares e centenas de policiais participaram do sepultamento. Policiais carregaram o caixão.
Apoie nosso jornalismo. Assine o EL PAÍS clicando aqui
Inscreva-se aqui para receber a newsletter diária do EL PAÍS Brasil: reportagens, análises, entrevistas exclusivas e as principais informações do dia no seu e-mail, de segunda a sexta. Inscreva-se também para receber nossa newsletter semanal aos sábados, com os destaques da cobertura na semana.