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Glauco Arbix: “Declínio da indústria brasileira é profundo e acelerado”

Para o coordenador do Observatório da Inovação da USP, Brasil enfrenta um processo de desindustrialização mais rápido que em países desenvolvidos. Professor critica ausência de políticas públicas e cita a dependência externa da indústria farmacêutica na corrida pela vacina anti-covid-19

O sociólogo Glauco Arbix, coordenador do Observatório da Inovação da Universidade de São Paulo (USP).
O sociólogo Glauco Arbix, coordenador do Observatório da Inovação da Universidade de São Paulo (USP).Arquivo Pessoal

O anúncio, no início do ano, de que a montadora norte-americana Ford irá deixar de fabricar veículos no Brasil é apenas mais um episódio do declínio acelerado que a indústria brasileira vem enfrentando nos últimos anos, segundo Glauco Arbix, coordenador do Observatório da Inovação da Universidade de São Paulo. Para o professor de Sociologia da USP, o processo de desindustrialização que nações desenvolvidas, como França e Inglaterra, vivenciaram em 30 anos, o Brasil experimentou em meia década. Na avaliação de Arbix, em termos de política pública para o setor não há praticamente nada e o Governo de Jair Bolsonaro ainda possui “um viés ideológico forte anti indústria”, “que fala que o Brasil não precisa inovar, que a gente não precisa de tecnologia, que podemos comprar.” Ainda na avaliação do professor, as consequências da falta de investimento em inovação são sentidas também durante a pandemia do novo coronavírus. “Não temos uma indústria farmacêutica de ponta e temos que esperar para tentar comprar vacinas.”

Pergunta. Por que o país passa por um processo rápido de desindustrialização?

Resposta. O movimento de declínio da indústria do Brasil não vem de hoje, já é profundo. E é mais acelerado do que nos países avançados, esse é uma das características da indústria brasileira. A desindustrialização é maior aqui do que na França, na Inglaterra... O que eles viveram em 30 anos, nós estamos vivendo em 5, 6 anos. Isso aumenta a dramaticidade da defasagem que se cria na economia. Ela se esvazia do ponto de vista industrial mais rapidamente, perde capacidade de produzir, os trabalhadores ficam defasados, então você tem todo um processo atabalhoado, que é um dos motivos fortes para a gente pensar na baixa produtividade brasileira.

P. Que leitura faz da saída da Ford do país?

R. A saída da Ford do Brasil tem um componente brasileiro em relação à economia, mas também tem a ver com planos internacionais. O enxugamento da Ford não é apenas brasileiro. Fábricas da Ford foram fechadas em vários países, inclusive nos Estados Unidos. A empresa está reduzindo o número de carros de passeio, se concentrando na área de utilitários, porque é uma área mais lucrativa, onde a marca é mais consolidada. Houve um enxugamento de 12 bilhões de dólares. Eu não acredito que a saída da Ford tenha sido determinada por problemas brasileiros. Claro que a situação econômica do país pesa, em um contexto de um Governo que é muito difícil de ter qualquer grau de previsibilidade. Um Governo que é contra a indústria, que acredita que a indústria brasileira só vive de benefícios, que só quer diminuição de imposto. Você tem uma situação institucional, política e econômica que é adversa. Mas a decisão não foi tomada só por conta disso, porque o mercado brasileiro é grande e não pode ser desprezado.

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P. Acredita que mais empresas podem seguir o caminho da montadora?

R. Acho difícil porque as que vão ficar aqui estarão disputando a herança dela. O setor automobilístico é muito grande, pega toda uma área de fornecedores que se estende pela borracharia, plástico, que não atende só o setor automobilístico. Elas fazem para várias empresas. O impacto é grande porque a indústria automobilística é a cereja do bolo de qualquer Governo. Eles querem dar incentivo, ter uma resposta rápida, dão subsídio, diminui o preço, porque carro é um bem que todo mundo quer. Por mil motivos. Então não acredito que vai ter uma debandada, a não ser o movimento de declínio que a gente já vinha vivendo. Eu avalio inclusive que a Ford deve ter hesitado em tomar a decisão dela. Mas os produtos que ela pode vender aqui ela faz em outras fábricas, como Argentina e Uruguai. Ela pode suprir com uma articulação produtiva na América do Sul, ela não precisa ter uma fábrica num país com economia ruim, que as verbas são ruins, que o trabalhador é caro, que o custo Brasil é alto. Tem sindicato forte, é uma série de empecilhos.

P. Por que ela manteve a fábrica por tantos anos já que os empecilhos eram grandes?

R. Eu fiz estudos sobre o tema mostrando que a Ford ia receber incentivos vultosos do Governo Federal, do Governo estadual e municipal de Camaçari [na Bahia] por 10 anos basicamente. Tem outros que vão além de 10 anos. E o grande problema, quando ela saiu do Rio Grande do Sul, era se aproveitar desses subsídios e, quando acabasse, sair. Imagina o que é construir uma fábrica na Bahia, mão de obra, a questão de logística é complicado, tem que usar vários modais. Você tem uma rede de fornecedores muito grande e outro problema é que as indústrias indiretas mais importantes da Ford estão em São Paulo, elas não iam ser transferidas. Governo dava incentivo, mas havia um impacto grande no Sudeste. A elite do Nordeste dá muito incentivo e quem se beneficia são os paulistas.

P. O Brasil está ficando para trás por não investir em novas tecnologias?

R. A indústria brasileira é muito diversificada, empresas muito avançadas. A indústria automobilística vive uma situação muito especial e a Ford também. Porque o setor está sendo invadido por novos players que nem são do setor. Carro sem motorista, carro elétrico e o risco é que as grandes fiquem com a lataria, não com a inteligência do carro. Isso é um desastre e elas estão correndo atrás. A GM e a Ford estão tentando entrar nessa área. E é uma guerra porque não sabem e precisam aprender a fazer isso rapidamente.

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P. E na indústria em geral?

R. A indústria brasileira não é avançada, não é de ponta, tem uma defasagem com as melhores práticas e ela precisa viver uma remodelagem de fundo. O problema é que não vai conseguir fazer isso sozinha, assim como nenhuma indústria do mundo conseguiu. A indústria 4.0 que nasce na Alemanha em 2011, nasce da iniciativa privada dos empresários, mas depois o Governo entra com tudo. Depois há um comitê público público-privado para coordenar as estratégias de competitividade. Nos EUA a mesma coisa. O Governo Barack Obama investiu milhões nos grandes institutos industriais de inteligência artificial, mecatrônica e energia. Sempre há dinheiro público para iniciativa privada para conseguir acompanhar a marcha acelerada das mudanças. O Brasil tem chance de investir em indústria limpa, mas é difícil fazer sozinho. Existem algumas iniciativas, uma indústria de ponta, como Marcopolo, Natura e Embraer.

P. São algumas exceções...

R. Com certeza são exceções, mas é importante frisar, pois são elas que diferenciam o Brasil da esmagadora maioria dos países em desenvolvimento , que não contam nem com um núcleo desse nível. Comparemos, por exemplo, com a Argentina. Esse núcleo é dez vezes maior que o da Argentina. Mesmo com o México, o núcleo também é forte, é dinâmico. Mostra um pouco o que a indústria pode ser no futuro. A indústria vai declinar no mundo inteiro, não quer dizer que ela vai desaparecer ou irá existir um mundo só de serviços sem indústria. Nada disso, isso é insustentável. A indústria vai continuar sendo pequena e mais compacta, e altamente moderna e inovadora.

P. Mas o Brasil vai participar desse novo modelo?

R. É uma dúvida, está em aberto.

P. Olhando para o tipo de política pública que temos para onde estamos caminhando?

R. Hoje em termos de política pública não temos praticamente nada. Inclusive você tem o Carlos da Costa [secretário especial de Produtividade, Emprego e Competitividade] dentro do ministério da Economia, que faz o discurso anti indústria. Que fala que o Brasil não precisa inovar, que a gente não precisa de tecnologia, que podemos comprar. Acho que ele não sabe o que diz. Ele tem um viés ideológico forte anti indústria que é muito ruim. Você acha que comprando tecnologia de fora você está atualizado e não está. Você não define as regras nem o padrão. Não define as referências industriais, significa que você fica eternamente dependendo da indústria de fora. Sempre com uma indústria de segunda classe, se tornando apenas comprador. Alguma parte dos industriais entraram nesse tipo de jogada. Transformaram-se em importadores e passaram a revender. Isso aconteceu na área de eletrônica, em várias áreas. Eles passaram a revender o que era da China e Índia, esse tipo de resposta do empresariado deixa o Brasil desamparado.

Trabalhadores do Instituto Butantan trabalham na produção da vacina Coronavac, em São Paulo, em 14 de janeiro de 2021. Para especialista, faltam políticas públicas para o setor no Brasil.
Trabalhadores do Instituto Butantan trabalham na produção da vacina Coronavac, em São Paulo, em 14 de janeiro de 2021. Para especialista, faltam políticas públicas para o setor no Brasil. NELSON ALMEIDA (AFP)

P. Quais os maiores riscos dessa dependência?

R. O exemplo mais claro é a dependência que o Brasil tem de vacinas. Não temos uma indústria farmacêutica de ponta. Na época da AIDS, quando o Brasil parcialmente quebrou as patentes, a Índia sim quebrou inteira e construiu uma indústria farmacêutica gigante. E agora tem vacina. O Brasil não conseguiu criar uma indústria farmacêutica, ela parou praticamente nos genéricos, mais recentemente avançou timidamente para área de pesquisa e desenvolvimento e de inovação. É estranho, porque temos laboratório de ponta para fazer a vacina. Temos cientistas bons. A Esther Sabino foi uma das primeiras do mundo a decodificar o genoma do coronavírus. Essas pessoas recebem uma ajuda insignificante do Governo. No Brasil temos muita gente qualificada, mas mesmo se tivesse a vacina, o país teria uma dificuldade enorme de produção porque nossa indústria é muito frágil.

P. Consequência da falta investimento?

R. O Governo de Jair Bolsonaro não investe na pesquisa, não investe na vacina, e não investe na indústria. Você espera e tenta comprar. Somado a incompetência do Governo e do ministro da Saúde você tem uma situação dramática para o Brasil com a covid-19. O que vivemos hoje é um exemplo de como o investimento em inovação e na indústria poderia ter auxiliado nisso. Quando você casa a capacidade dos laboratórios, da universidade e dos cientistas que são muito bons, quando você casa com um trabalho de fortalecimento da indústria farmacêutica, o país produz vacinas. A Argentina que tem uma indústria muito menos inovadora e capacitada que a nossa, está produzindo o ingrediente farmacêutico ativo (IFA) da vacina contra a covid-19, que é o coração do imunizante. Enquanto o Brasil não produz.

P. Acha que a indústria brasileira ainda pode correr atrás para enfrentar a pandemia?

R. Acho difícil. Pode ser que sim. A Fiocruz e o Butantan assinaram com a AstraZeneca e a Sinovac e os dois contratos falam em transferência de tecnologia para produzir o IFA. Espero que as indústrias acordem, até porque o senso de urgência delas também deveria ser de ganhar mais dinheiro. Do ponto de vista industrial o país poderia sair dessa pandemia com pelo menos 2 ou 3 fábricas que avançaram, fizeram um upgrade da sua capacidade de elevar o nível tecnológico, fazendo vacina, sabendo controlar e preparando o Brasil para uma próxima pandemia. Mas do ponto de vista de política pública é um desastre. A política pública atual é liberal, que diz que as empresas precisam se virar. Mas ignoram que no mundo todo elas não fazem sozinha sem uma cooperação intensa entre público e privado porque tem um número enorme de questões. Formação, qualificação, educação, custo de energia, segurança , impostos . O Estado tem obrigação de estar junto. Não é ser mais ou menos estadista.

Atualização: Na sexta-feira, 26 de março, o Instituto Butantan anunciou o desenvolvimento de uma vacina brasileira, numa parceria com um consórcio internacional. Naquele mesmo dia, o Ministério da Ciência e Tecnologia anunciou a criação de um imunizante contra o coronavírus pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP, ainda sem detalhes.

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