“Pisei, dei murro na cara”, a confissão de maus-tratos de um gestor de 14 presídios de Goiás

EL PAÍS obtém gravação em que coordenador penitenciário comenta agressões contra presos e faz ameaças. Defensoria Pública disse que enviará material às autoridades e Diretoria-geral da Administração Penitenciária afirma que agente é investigado. Josimar Nascimento nega as acusações

O coordenador da 1° Regional Prisional de Goiás, Josimar Pires Nicolau do Nascimento, ao lado de um detento.DGAP

“Vocês acham que eu fiz o que lá no Pátio 2? Pisei. Pisei, pisei. Dei murro na cara e peguei 95 celulares. Se eu tivesse beijado a boca deles, eles não tinham entregado, ou tinham?”, se vangloria, sem que soubesse que estava sendo gravado, o coordenador da 1° Regional Prisional de Goiás, Josimar Pires Nicolau do Nascimento, que tem sob seu comando 14 presídios, com 5.988 presos. Sentado em uma das camas do alojamento dos servidores da Penitenciária Odenir Guimarães (POG), em Aparecida de Goiânia, na região metropolitana da capital goiana, ele não imagina que aquilo que descreve como sendo seu modus operandi no sistema prisional está sendo documentado.

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Nascimento faz as confissões em um áudio a que a reportagem do EL PAÍS teve acesso. A gravação foi feita durante uma reunião improvisada entre o coordenador, que é policial penal de carreira, e pelo menos outros 15 servidores da unidade. Era sábado, 12 de novembro de 2020. Os policiais penais que estavam de plantão, de acordo com o servidor que gravou a reunião e pediu anonimato, receberam a convocação do coordenador em um aplicativo de celular. Em trechos do encontro que durou uma hora e quarenta minutos, o servidor repassa sua carreira no sistema e confessa que, para manter os detentos disciplinados, já chegou a agredi-los com blocos de concreto e pedras. “O preso, se quiser me filmar, é simples. Se quiser me foder, é simples. Quando eu descer para uma ala dessas, você pode pegar um telefone e filmar. Eu vou chutar o preso”, afirma, irritado com pelo menos 127 denúncias feitas contra ele no Disque 100, canal de denúncias de violação de direitos humanos mantido pelo Governo Federal. O coordenador também é flagrado fazendo ameaças de morte servidores que o denunciarem. “Eu sou candidato a matar um agente no sistema. Já falei isso muitas vezes. Sou candidato. Só vai parar aqui o dia que um [policial penal] for lá e dar 30 tiros na cara do outro porque o cara vai lá e faz essas patifarias, de jogar o vídeo do outro na internet, de ir lá e denunciar o próprio colega. Só vai parar o dia que um matar o outro.”

O áudio do servidor vêm à tona no contexto de uma pandemia que convulsiona ainda mais o superlotado sistema prisional brasileiro. Um relatório da Pastoral Carcerária divulgado em janeiro deste ano denuncia que torturas em presídios aumentaram 70% durante a contaminação da covid-19, quando as visitas familiares e até de advogados foram restringidas durante boa parte do ano. O estudo é baseado em 90 relatos de violações de direitos em todo o país coletados entre 15 de março e 31 de outubro de 2020. No mesmo período de 2019, foram 53 denúncias. Em todo o país, mesmo com uma esperada subnotificação, Goiás fica em terceiro lugar na quantidade de casos, 9 denúncias ao todo. São Paulo é o campeão da lista, com 18 casos, e em segundo lugar vem Minas, com 12.

“Jogava bloco na cabeça [de preso]”

Josimar Nascimento não ocupa um cargo qualquer. Nomeado coordenador da 1° Coordenação Regional no dia 26 de outubro do ano passado, tem autonomia de atuação nas 14 unidades prisionais, inclusive no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, com seis presídios, o maior do Estado. Tem tanta influência na cúpula do sistema prisional que foi, em 2018, um dos designados pela gestão do ex-governador de Goiás José Eliton (PSDB) para elaborar o Procedimento Operacional Padrão da Diretoria-geral da Administração Penitenciária.

Na reunião em que é gravado, o coordenador, que dispara conselhos ilegais, não soa como um servidor destacado para fazer os protocolos de procedimento de todo o Estado. Em determinados momentos, com fala agitada, dá dicas de como manter o bom comportamento dos custodiados pelo Estado. “Era pintadinha, tinha biblioteca, tinha escola, tinha computador. Só que eu pegava a cara do preso e batia no teclado do computador se ele não fizesse o que eu estava mandando”, conta o coordenador no áudio, rememorando sua passagem pela Penitenciária Masculina de Luziânia, sob sua supervisão na época em que era coordenador da 3° Regional do Entorno de Brasília, no final de 2019. Sobre a unidade, que tinha uma fábrica de blocos de concreto, o coordenador regional segue: “Jogava bloco na cabeça [de preso]. Só não tinha horta porque eu não gosto de horta, não. Jogava pedra neles se não fizessem o que eu estava mandando.” A ironia é que Josimar Nascimento deu uma entrevista na ocasião da formatura de presos matriculados em um curso de pedreiro da penitenciária, em dezembro de 2019: “Esta qualificação profissional desenvolvida em Luziânia é importantíssima para o processo de ressocialização do apenado”.

Josimar Pires Nicolau do Nascimento participa de uma reunião com integrantes da OAB.OAB

No áudio em que descreve seu comportamento, o coordenador recebe apoio de alguns policiais penais. Outros, ficam calados. “O preso vai ressocializar? Não vai. O que vai acontecer com ele? Ele vai ficar com medo de voltar.” O coordenador prega, ainda, que só têm dois tipos de presos. “Quais são?”, ele pergunta, sem ouvir resposta dos servidores, para em seguida responder: “O presepeiro e o oprimido. Não tem outro, não tem o bonzinho. Se você acha que tem o terceiro, eu desminto. Ou ele fica oprimindo ou fica presepando.” O “presepeiro”, contaram servidores ouvidos pela reportagem, são presos mais barulhentos, que denunciam, que não temem os castigos impostos pelos servidores. “Principalmente do Josimar”, comenta um policial penal, que foi transferido de uma das unidades do Complexo Prisional, segundo ele, por se negar a “bater em preso”. Sem dar nomes, Josimar exemplifica: “Igual o outro lá... agora ele tá oprimido. Vai lá pra você ver como é melhor trabalhar com ele oprimido, com a mãozinha na nuca, ‘sim, senhor’. Acha que ele tá te respeitando? Não, ele tá com medo. É só assim que funciona.”

O coordenador parece não temer as denúncias, pelo contrário. Menos de dois meses antes de ser gravado confessando práticas de maus-tratos, Josimar Nascimento foi citado em uma denúncia redigida por seis advogados. O documento, datado de 21 de setembro de 2020, traz relatos de torturas sofridas por detentos do presídio de Formosa, onde ele exercia o cargo de coordenador regional. Em público, ele sempre nega as acusações. Sobre o episódio descrito da apreensão de 95 celulares, em 5 de novembro do ano passado, ele ironiza: “Se eu tivesse beijado na boca deles [presos] eles não teriam entregado ―ou tinham?”. Em seguida, faz um alerta aos servidores que o ouvem, antes do almoço daquele sábado. “Se um polícia penal ir lá e denunciar o outro aí fodeu tudo. Quem denuncia isso é Petra [coordenadora nacional da Pastoral Carcerária], Celestino [promotor Marcelo Celestino, de Goiânia]. Eles denunciam. Aqui tem preso mandando agente [penal] ir lá denunciar”, reclama o servidor.

“Agora que ele reconhece assim num áudio. Uma ótima prova”, afirma Petra, da Pastoral Carcerária, após ouvir o teor da reunião. “O conteúdo das denúncias diz respeito a diversos tipos de violência, tais como agressão física, agressão psicológica, ameaças, uso de instrumentos torturantes, uso de armamento, bala de borracha, spray de pimenta, etc”, enumera ela, que critica a falta de assistência médica aos presos durante a pandemia. A coordenadora da Pastoral disse que repassará o arquivo de áudio ao Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.

Um contexto explosivo

A gravação de Nascimento foi entregue à reportagem dois dias depois de um motim na Penitenciária Odenir Guimarães, uma das que estão sob responsabilidade do coordenador. Segundo o EL PAÍS apurou, no dia do episódio, o servidor entrou nas celas com um grupo de policiais penais que costumam fazer sua escolta dentro da unidade e determinou a retirada de cigarros no dia 19 de fevereiro. A medida seria uma resposta à execução do policial penal Elias de Souza Silva, 38 anos, e da esposa dele, Ana Paula Dutra Sousa, de 32, no dia anterior. Ela havia ido buscar o marido depois do plantão de 24 horas dele quando foram surpreendidos por homens armados.

“Qualquer tipo de ilegalidades e abusos devem ser investigados e apurados pela Polícia Judiciária e pelo Ministério Público. O Sindicato não comunga com nenhum tipo de irregularidades e espera que os servidores cumpram suas funções dentro das leis e com muito profissionalismo”, disse à reportagem o presidente do Sindicato do Sistema de Execução Penal do Estado de Goiás (Sinsep-GO), Maxsuell Miranda das Neves, sobre a gravação. Ele afirmou que pedirá ao jurídico da entidade que tome providências.

O EL PAÍS também repassou o áudio à Defensoria Pública do Estado de Goiás, mas os defensores optaram por não comentar o conteúdo. Redigiram uma nota em que informam que vão encaminhar o arquivo às “instituições e autoridades competentes para providências pertinentes”. A Defensoria reclama que tem tido dificuldades, principalmente desde o início da pandemia, em março de 2020, para acompanhar a situação. “As medidas, compreensíveis, de restrição de ingresso aos estabelecimentos penais acabaram gerando a incomunicabilidade dos presos, que não recebem mais atendimento jurídico, religioso e visitas de familiares de forma regular”, destacaram.

Eduardo Mota, membro do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), concorda que a situação piorou no último ano. “O conteúdo revelado pelas gravações corrobora denúncias feitas por familiares de maus-tratos e torturas. Mas os familiares se calam porque temem pelos presos. São situações graves que precisam ser investigadas urgentemente. Nós vamos levar o conteúdo ao Conselho Nacional dos Direitos Humanos para que sejam tomadas medidas urgentes”, afirma.

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Ao EL PAÍS, Josimar Nascimento negou ter dito qualquer uma das falas transcritas. “Vou passar seu contato para a assessoria de imprensa”, disse. Após ter acesso a um dos trechos da gravação e à transcrição da reunião descrita nesta reportagem, a Diretoria-geral da Administração Penitenciária do Estado informou que “todas as denúncias que tratam de maus tratos, protocoladas nos canais oficiais da administração penitenciária, são devidamente apurados pela Corregedoria Setorial do órgão”. A diretoria-geral esclareceu, ainda, que já instaurou procedimento administrativo disciplinar, “nos termos da lei, para apuração sobre o mencionado servidor”. Não respondeu, no entanto, se o procedimento diz respeito ao conteúdo enviado pelo EL PAÍS ou a outras denúncias.

A diretoria tampouco comentou a ameaça feita pelo coordenador de matar colegas que o delatem. “Eu sou candidato a matar. Já falei isso, falei pro coronel. Prepare um lugar para prender polícia porque logo o Josimar vai estar preso. O dia que o cara for lá e queimar meu nome desse jeito aí, eu vou atirar nele. Se eu descobrir quem é vou atirar nele, tô nem aí. E com arma do Estado”, disse ainda Josimar Nascimento na gravação.

Segundo fontes de dentro da unidade, o coordenador trabalha além do expediente e, ameaçado de morte, anda escoltado e quase não sai da unidade. Dorme no próprio gabinete. “Ele coloca um colchão perto da mesa”, conta um servidor. Em 7 de maio de 2020, ele escapou de uma emboscada quando dirigia pela rodovia DF-290 e foi emparedado por dois homens em uma motocicleta. Trocou tiros com a dupla. O tiroteio deixou o carro do servidor cravado de balas. À época, ele administrava 12 unidades prisionais no entorno do Distrito Federal.

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