De João Ramalho ao cacique Tibiriçá, cinco curiosidades sobre a fundação de São Paulo
A fundação tem histórias interessantíssimas, que envolvem a corrida entre Espanha e Portugal pelas riquezas do rio da Prata aos motivos que levaram à escolha do local para erguer o colégio dos jesuítas.
Topa um passeio pela história de São Paulo?
Então se prepare, porque a gente vai fazer uma viagem no tempo em busca de algumas passagens curiosas sobre a fundação da cidade.
Para esquentar a conversa, vamos voltar lá pro dia 25 de janeiro de 1554, quando numa “casinha paupérrima e estreitíssima”, segundo relato de José de Anchieta, acontecia a famosa missa que marcaria o início das atividades do Colégio de São Paulo de Piratininga. Essa ocasião entrou para a história como o ato de fundação de São Paulo.
Mas quantas outras histórias não se escondem por trás da criação da cidade?
São várias —e interessantíssimas. Muitas delas aconteceram bem antes da data que hoje entendemos como a da criação da cidade.
Pensando nisso, selecionei cinco curiosidades sobre a fundação de São Paulo, pinçadas de A Capital da Solidão, do jornalista Roberto Pompeu de Toledo (Editora Objetiva). Fruto de uma pesquisa de quatro anos, o livro reconstitui a história da primeira vila no interior do Brasil, das origens a 1900 —em A Capital da Vertigem, ele conta como São Paulo se transformou em metrópole.
E aí, pronto para viajar no tempo?
Então imagine-se pelas bandas do Triângulo Histórico, lá no século 16, e confira cinco fatos curiosos sobre a fundação de São Paulo.
Tudo começou com a Operação Rio da Prata
Em última análise, a fundação da cidade de São Paulo, em 1554, é decorrência da corrida do ouro travada entre Espanha e Portugal, em episódios que começaram bem antes da data oficial da criação e conhecidos por diferentes nomes, como Operação Brasil, Operação Sul do Brasil, Operação Cone Sul ou, finalmente, Operação Rio da Prata. Como mostra Roberto Pompeu de Toledo em A Capital da Solidão, anos antes de São Paulo existir, Portugal começou a enviar expedições em direção ao Sul do Brasil porque na Europa ouvia-se falar muito de “riquezas fabulosas” na região do rio da Prata.
Uma das notícias, coletadas com os índios que habitavam o território, dava conta de um “rei branco” que reinava sobre um vasto e rico império que tinha uma “serra de prata”. “O rei branco era o Inca. O império, um lugar de sonho tecido em ouro e prata”, escreve o autor.
Assim, em 1530 Portugal envia para o Brasil a expedição de Martim Afonso de Sousa, o primeiro representante oficial do Estado português a subir a Serra do Mar. “São Paulo é subproduto da corrida pelo Prata, e não só São Paulo. Na mesma categoria se incluem Buenos Aires e Assunção, criadas mais ou menos na mesma época”, diz Pompeu de Toledo.
João Ramalho, o português que mandava no pedaço
Martim Afonso de Sousa foi o primeiro enviado do rei de Portugal a subir a serra, mas antes dele outro português já havia se estabelecido no planalto, onde mais tarde seria fundada a cidade de São Paulo: João Ramalho, hoje nome de rua no bairro de Perdizes. Ele era o “dono” do pedaço. Segundo Pompeu de Toledo, sua autoridade era “exercida sobre homens e mulheres, índios e europeus”. Diferentemente de outros compatriotas ilustres da época, como o Barão de Cananéia, que preferira morar no litoral, ele escolheu viver do lado do outro lado da serra.
Tinha qualidades de líder, força moral, espírito empreendedor e era visto pelos padres quase que como um selvagem, pois andava nu e não respeitava preceitos religiosos. Embora tivesse várias mulheres, tinha na índia Bartira a principal delas. Isso evidentemente lhe trouxe muitas vantagens, pois ela era filha do cacique mais importante da região, Tibiriçá, o verdadeiro “senhor dos campos de Piratininga”. “Alguns textos do período afirmam que João Ramalho possuía uma “força”. Ou seja, um pequeno exército, bem provido de homens como de armamentos, fortificações defensivas e capacidade ofensiva”, diz o livro.
Os jesuítas e a chegada ao planalto
O padre Manuel da Nóbrega havia se estabelecido em São Vicente, mas não gostava de lá —considera as pessoas da vila litorânea de “má criação” e capazes “de grandes maldades”. Contraditório, irrequieto e irascível —além de gago—, ele era movido por uma utopia: criar uma sociedade devotada ao reino de Deus, longe da vida pecadora. Ele já havia se decepcionado com as povoações em São Vicente, na Bahia e em outros lugares.
Fixou então a ideia de que a doutrinação dos índios (“essas páginas brancas”, onde tudo se podia escrever) deveria ser longe das influências malignas. “O impulso de fugir dos brancos conduziu à decisão de transferir o colégio para o planalto”, escreve Pompeu de Toledo, referindo-se ao colégio que os jesuítas mantinham em São Vicente.
Escolheu o planalto porque, se a intenção era ficar longe dos brancos, não dava para ir para em Santo André, área de influência de João Ramalho, que representava tudo aquilo que o padre via como coisas do diabo. Assim, em outubro de 1553, Manuel da Nóbrega já estava reunindo um “fermosa povoação” no planalto, a partir da junção de tribos esparsas da região. “Era o embrião daquela que viria a ser São Paulo. Para ajudá-lo, já estava a caminho aquele que seria seu principal parceiro nessa obra”, escreve o autor de Capital da Solidão, em menção a José de Anchieta, de apenas 19 anos e ainda não ordenado padre.
A escolha do local do colégio dos jesuítas
O local escolhido por Manuel da Nóbrega para fundar uma nova sociedade ficava numa elevação, na confluência dos rios Tamanduateí e Anhangabaú, e oferecia várias vantagens, como água, bom clima e segurança —por ser um lugar alto, permitia avistar a chegada de possíveis inimigos.
Num ponto do lado da colina que se debruçava sobre o Tamanduateí, o padre construiu uma casinha, que serviria de moradia aos jesuítas e sede do colégio. Nos primeiros dias de janeiro de 1554, Nóbrega ordenou que José de Anchieta, que estava havia poucos dias em São Vicente, vindo de Portugal, subisse a serra (“um caminho mui áspero”, o “pior lugar que há no mundo”, relatou Anchieta em seus escritos). Mais tarde, junto com os demais religiosos, entre “paredes paupérrimas e estreitíssima casinha”, o jovem jesuíta participou de uma missa, a famosa missa que marcou o início das atividades do Colégio São Paulo de Piratininga. Era 25 de janeiro, dia que entrou para a história como o da fundação de São Paulo.
Cacique Tibiriçá, o salvador da São Paulo de Piratininga
Naqueles primeiros anos depois da fundação, o que se tinha na região era, na verdade, um colégio de padres rodeado de habitações indígenas. O índio mais importante do território o cacique Tibiriçá, que Manuel da Nóbrega havia conseguido recrutar para sua nova sociedade. Pai da índia Bartira, Tibiriçá era visto pelos padres como um “índio bom”, porque era amigo e defensor dos jesuítas. Consta que morava onde mais tarde seria construído o convento e a igreja de São Bento, e ele próprio ajudou a erguer o colégio.
Sua principal colaboração durante todo o processo de consolidação da São Paulo de Piratininga, no entanto, se deu em 1562. Tiribiçá liderou o povoado na defesa diante do maior ataque sofrido naqueles primeiros anos. Os inimigos eram grupos de índios das redondezas, alguns deles tinham até mesmo morado na aldeia dos padres e depois se revoltaram.
O cacique articulou o apoio de habitantes de três aldeias vizinhas para formar seu exército e defender a todo custo a aldeia. Foi uma briga sangrenta, e Tibiriçá saiu vitorioso. “Tibiriçá morreu naquele mesmo ano, de doença, e foi enterrado com honras na igreja dos jesuítas. Para Anchieta, ele não mereceria apenas o título de benfeitor, mas ainda o de ‘fundador e conservador da Casa de Piratininga”, escreveu Pompeu de Toledo.
Clayton Melo é jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero e MBA em Marketing pela FGV, é analista de tendências, com formação na Escola Panamericana de Artes, e curador cultural. É palestrante em temas como futuro das cidades, tendências urbanas, inovação e jornalismo digital em instituições como Facebook, Mackenzie, ESPM, Cásper Líbero, Campus Party e Festival Path. Escreve sobre tendências urbanas, futuro das cidades, inovação e cultura.
Este texto foi originalmente publicado no site A Vida no Centro.