Doria anuncia vacinação contra covid-19 em janeiro e joga pressão sobre a Anvisa, que tem de autorizar aplicação

Governo de São Paulo diz que imunização começa em 25 de janeiro, mas fármaco da chinesa Sinovac sequer apresentou dados da última fase dos estudos. Anvisa não deve sofrer pressão, diz especialista

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O governador do Estado de São Paulo, João Doria (PSDB), anunciou nesta segunda-feira que o programa estadual de vacinação contra o novo coronavírus terá início em 25 de janeiro, mesmo sem ter uma vacina registrada na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o que é um pré-requisito para a aplicação de qualquer imunizante no Brasil. Se autorizada, a Coronavac, desenvolvida pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac, será aplicada de forma gratuita inicialmente em profissionais de saúde, pessoas com mais de 60 anos, indígenas e quilombolas, totalizando mais de 9 milhões de pessoas, que deverão receber duas doses cada. Para especialistas, o anúncio do governador, o primeiro do gênero na América Latina, joga pressão sobre a Anvisa, que sequer recebeu ainda os dados de segurança e eficácia da fase 3 das pesquisas da vacina chinesa —a última etapa do estudo, cujas informações devem ser apresentadas pelo Governo paulista até o dia 15 de dezembro.

Horas após o anúncio de Doria, a Anvisa divulgou nota afirmando não ter recebido nenhum material da fase 3, e detalhando o processo de registro da Coronavac: até o presente momento apenas os dados da fase 1 foram analisados completamente. A fase 2, cujos relatórios foram enviados ao órgão em 20 de novembro, ainda está sob análise, o que indica que o cronograma fast track defendido pelo governador para contar com o imunizante aprovado em 25 de janeiro pode não corresponder aos procedimentos internos da Anvisa. Bolsonaro também se manifestou nas redes sociais, dizendo apenas que “havendo certificação da Anvisa (orientações científicas e os preceitos legais) o Governo brasileiro ofertará a vacina a toda a população de forma gratuita e não obrigatória”.

O governador tucano fez questão de frisar que “o Brasil tem pressa (...) pessoas estão morrendo todos os dias”. “Não estamos virando as costas para o plano nacional de imunização [que deve começar em março], mas precisamos ser mais ágeis”, afirmou durante entrevista no Palácio dos Bandeirantes. “O anúncio do Doria pode ser encarado como uma pressão sobre a Anvisa para que ela ofereça uma resposta rápida a respeito de algo que ainda nem foi submetido”, afirma a microbiologista Natalia Pasternak. Ela defende que o órgão “não seja pressionado nem pelo Governo Federal nem Estadual”, para que possa “tomar uma decisão técnica e sem afobamento”. Indagada se o prazo de pouco mais de um mês é o suficiente para a análise dos resultados da Coronavac, a pesquisadora afirma que tudo depende “do tamanho da equipe disponível na Anvisa para avaliar os dados”.

Os próximos dias serão definitivos para o futuro da Coronavac e do programa de vacinação paulista. “Se os dados que eles fornecerem para o órgão regulador no dia 15 forem robustos e sólidos, no sentido de garantir uma eficácia comprovada boa, é possível manter esse calendário e iniciar a campanha em janeiro”, afirma Mellanie Fontes-Dutra, coordenadora da Rede Análise covid-19. Caso os resultados não sejam satisfatórios e o órgão regulador negue a autorização, os planos de Doria podem fazer água —restará a judicialização do caso. Ela destaca que “não existe imunização sem aval da Anvisa”. “É importante que essa questão seja analisada sempre do ponto de vista técnico e científico”, afirmou.

Dados preliminares apresentados por Doria —citando a reviste médica The Lancet— dão conta de resposta imune em 97% das pessoas (o que não é o mesmo que proteção contra o vírus). Segundo a legislação referente à pandemia do coronavírus, um fármaco sem registro pode ser usado em caráter experimental para imunizar a população caso ele receba a aprovação de órgãos de regulação nos EUA, União Europeia ou Ásia. Neste caso, a Anvisa poderia conceder uma autorização de emergência, sem o aval final. De qualquer forma, até o momento não há caminho legal de aplicar uma vacina no Brasil o sinal verde da agência.

A questão é que movimentos recentes de Bolsonaro colocam em xeque a transparência das decisões da Anvisa. Ele indicou o tenente-coronel reformado do Exército Jorge Luiz Kormann para uma das diretorias da entidade —o nome ainda precisa ser aprovado pelo Senado. O objetivo é ter mais controle sobre a política de vacinas do órgão, colocando mais pessoas “de confiança” do presidente na agência. Segundo reportagem da Reuters, em junho, quando o Ministério da Saúde parou de divulgar os dados completos da pandemia, o militar (que trabalha na pasta) agiu para ocultar essas estatísticas. Esta não é a primeira vez que a lisura nos procedimentos da Anvisa é questionada. No início de novembro a agência chegou a suspender os testes da Coronavac após um “evento adverso” não relacionado aos testes, e sem consultar o Butatan sobre o ocorrido, o que também provocou críticas de uma possível politização do órgão. À época, o presidente comemorou a pausa nas pesquisas do imunizante nas redes sociais.

Desafio logístico

Indagado sobre a participação de clínicas privadas no calendário da vacinação, Doria informou que elas podem participar, mas de forma gratuita e com atendimento universal. “Não existe possibilidade do uso dessa vacina de forma particular ou com cobrança”, afirmou João Gabbardo, coordenador-executivo do centro de contingência contra a covid-19.

O plano de governador paulista já vem despertando temor em alguns prefeitos do Estado, que dizem não contar com a infraestrutura ou recursos para começar a vacinar tão cedo, de acordo com reportagem do jornal Folha de S.Paulo. Segundo Geraldo Sobrinho, presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde de São Paulo, existe o temor de filas e falta de verba para pagamento de hora extra para as equipes vacinadora (uma vez que esta atividade ocorre fora do horário normal de trabalho). Para dar conta da demanda, o governador anunciou que irá dobrar o número de postos de vacinação, de 5.200 no Estado para 10.000, com o uso de farmácias, quartéis da polícia, escolas e o sistema de drive thru.

Confira a primeira fase do plano de vacinação previsto pelo Governo do Estado de São Paulo.Divulgação (Governo de São Paulo)

Doria também afirmou que “todo brasileiro que estiver em São Paulo poderá ser vacinado, não terá que comprovar residência”. “São Paulo faz parte do Brasil, não pode dar as costas a nenhum brasileiro”, disse. Isso levanta o temor de que haja uma corrida de pessoas de outros Estados para receber o imunizante aqui, o turismo de vacina. De acordo com o governador, “oito Estados e várias prefeituras [dentre elas Rio de Janeiro e Curitiba] já pediram a Coronavac ao Butantan, e devem receber 4 milhões de doses”. Nem tudo é um caminho simples. Há regras específicas para que vacinas entrem na rede nacional do SUS. Seja como for, a aposta de Doria e o aceno aos demais Estados, se se concretizar, cacifam o tucano para alçar voos mais altos em 2022, quando ele deve disputar a presidência da República.

É esse o pano de fundo da disputa política do tucano com Jair Bolsonaro em torno da vacina. O presidente já criticou por diversas vezes o que chamou preconceituosamente de “vacina chinesa” —o tucano se refere a ela como “a vacina do Brasil”. Durante a fase mais aguda desta guerra das vacinas, o ministro da Saúde, Eduardo Pazzuelo, foi alvejado. Em outubro ele firmou compromisso de compra de 46 milhões de doses da Coronavac, e disse que ela seria incluída no Programa Nacional de Imunização. Horas depois foi desmentido por Bolsonaro em uma rede social: “A vacina chinesa de João Doria, qualquer vacina antes de ser disponibilizada à população, deve ser comprovada cientificamente pelo Ministério da Saúde e certificada pela Anvisa. O povo brasileiro não será cobaia de ninguém. Minha decisão é a de não adquirir a referida vacina.”

De fato, até o momento não existe nenhuma perspectiva da inclusão da Coronavac no calendário nacional de vacinação, mas sum uma crescente pressão dos secretários estaduais de saúde para que isso seja feito. “O que tivemos foram tratativas [com o Ministério da Saúde], sem acordo formal, de aquisição da Coronavac para o programa nacional de imunização”, afirmou Jean Gorinchteyn, secretário estadual de Saúde.

Em meio à controvérsia, a aposta de Doria sofreu um revés no exterior. A Sinovac Biotech se viu imersa em um escândalo de subornos recentemente. Reportagem do The Washington Post publicada no início do mês apontou que o então gerente da farmacêutica, Yin Weidong, pagou 83.000 dólares de propina para responsáveis pelo órgão regulatório chinês com o objetivo de acelerar a liberação de medicamentos —no período dos pagamentos, de 2002 a 2011, a empresa conseguiu o registro de vacinas como a da gripe H1N1 e a de hepatite.

O plano do Governo Federal

Enquanto Doria se acelera, o plano do Governo Federal prevê a aplicação “dos imunizantes já garantidos pelo Ministério da Saúde – Fiocruz/AstraZeneca e por meio da aliança Covax Facility”, a partir de março, segundo o secretário de Vigilância Sanitária, Arnaldo Medeiros. A vacina da Pfizer seria excluída do programa devido à dificuldade de armazenamento: as doses precisam ficar guardadas em ambiente refrigerado abaixo de -70°C.

O cronograma Federal prevê que os primeiros a serem vacinados serão trabalhadores da saúde, idosos com mais de 75 anos ou pessoas acima de 60 que vivam em asilos e população indígena. O próximo grupo prioritário será de pessoas entre 60 a 74 anos, e em seguida portadores de comorbidades (doenças renais crônicas e cardiovasculares). A última fase inclui professores, forças de segurança e salvamento, funcionários do sistema prisional e população privada de liberdade, e posteriormente a população em geral que não tenha sido contemplada.

O prazo do Governo Federal, de iniciar um programa nacional em março, foi alvo de críticas por parte do estafe de Doria. “Estamos todos perplexos com a previsão do Ministério da Saúde de iniciar a vacinação só em março. Teremos em janeiro milhares de pessoas que vão ficar doentes, que vão se internar, que irão a óbito”, ressaltou João Gabbardo, o coordenador executivo do Centro de Contingência do coronavírus em São Paulo e ex-secretário do Ministério. A expectativa é de que com as festas de fim de ano o contágio aumente drasticamente nas próximas semanas.

Mas nem todos acreditam que é possível acelerar o cronograma federal. Wanderson de Oliveira, ex-secretário de Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde que ganhou destaque durante a gestão do hoje ex-titular da pasta Luiz Henrique Mandetta, se mostra pessimista quanto aos prazos propostos. “Não é possível uma grande campanha de vacinação no Brasil já a partir do primeiro semestre”, afirmou em entrevista à repórter Beatriz Jucá. Ele aposta em um programa “robusto” apenas a partir de maio ou junho.

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