Caminhos para fazer de São Paulo uma cidade mais justa e melhor para todos
São essenciais o compromisso público com o enfrentamento das desigualdades, inversão de prioridades, direcionamento eficaz de recursos, monitoramento e repactuação social
O que têm em comum, na cidade de São Paulo, uma jovem negra desempregada moradora do Jardim Ângela e um idoso branco rico que vive no Jardim Paulista? Muito provavelmente só o gentílico de “paulistanos” (ou nem isso), porque suas realidades diárias e qualidade de vida são muito distintas e distantes. Esse é só um exemplo que ilustra as profun...
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O que têm em comum, na cidade de São Paulo, uma jovem negra desempregada moradora do Jardim Ângela e um idoso branco rico que vive no Jardim Paulista? Muito provavelmente só o gentílico de “paulistanos” (ou nem isso), porque suas realidades diárias e qualidade de vida são muito distintas e distantes. Esse é só um exemplo que ilustra as profundas desigualdades de oportunidades presentes na maior, mais rica e mais populosa cidade do Brasil, que em novembro elege um novo prefeito para quatro anos no poder.
Tais desigualdades ferem o direito de todos à cidade e mostram a existência, na mesma metrópole, de bairros muito bem servidos, com arborização, mobilidade, creches, postos de saúde, hospitais, ruas bem pavimentadas e de outros, na outra ponta, bastante desprovidos de políticas públicas e serviços, com muitas precariedades. No Jardim Ângela, por exemplo, a média de idade de morte é de 58,3 anos, ao passo que no Jardim Paulista a população morre em média com 81,5 anos, segundo o Mapa da Desigualdade da Rede Nossa São Paulo.
Existem ainda realidades injustas e antigas como essas: diferença na taxa de empregos por habitante chegando a 247 vezes na comparação entre um distrito central e uma área periférica; salário da população negra quase 35% inferior ao da população não negra; distritos com até 49% de sua população vivendo em favelas, enquanto em 11 distritos não há nenhuma habitação nessas condições. Há também grande concentração de postos de trabalho nas áreas mais centrais da cidade, e a discriminação baseada em gênero e raça se cruza com essas desigualdades regionais, agravando assim a situação desfavorável já vivida pela população mais pobre. Essas desigualdades somadas fizeram com que desde março deste ano as milhares de mortes pelo coronavírus nos 96 distritos tenham endereço e cor de pele muito específicos.
São tantos os tipos de desigualdades sobrepostos atingindo milhões de moradores todos os dias que se pode pensar ser inviável gerir adequadamente uma capital desse porte e complexidade, com territórios internos tão diversos. A boa notícia é que já há instrumentos de gestão, baseados em estudos e pesquisas, que permitem reduzir essas desigualdades históricas e que podem ser adotados por prefeitos comprometidos com uma cidade melhor para se viver — para todos os mais de 12 milhões de habitantes, e não só para uma seleta minoria.
Essencialmente, é urgente que a gestão coloque em primeiro lugar no planejamento, no orçamento público e na participação da população as áreas mais vulneráveis e seus moradores. Para tanto, é fundamental que ela reverta a lógica de administração só por secretarias ou pastas isoladas, passando a considerar as principais necessidades específicas de cada CEP e destinando, a partir de objetivos de médio e longo prazos, mais recursos e políticas às regiões e às pessoas que de fato mais precisam deles, como a jovem negra desempregada do início deste texto.
A fim de contribuir com essa mudança de paradigma na gestão pública municipal, a Rede Nossa São Paulo e a Fundação Tide Setubal criaram o projeto (Re)age SP – Virando o jogo das desigualdades na cidade. Ele apresenta 50 metas palpáveis e atingíveis pela capital paulista até 2030, com a centralidade clara na redução das desigualdades estruturantes. No intuito de monitorar o progresso até o objetivo de longo prazo, as 50 metas apontam ainda resultados de médio prazo para o ano de 2024, fim da próxima gestão.
Essas metas foram construídas já levando em conta os orçamentos necessários para sua implementação e os planos setoriais de políticas públicas existentes, como o Plano Municipal de Habitação, o de Educação e o de Cultura. Também consideram práticas inspiradoras nacionais e internacionais e a participação ativa da sociedade na definição das prioridades nos territórios, a partir das vocações, características únicas e aspirações de cada distrito.
As metas estão agrupadas em três grandes eixos: 1) criar oportunidades e construir uma nova economia; 2) cuidar e educar; e 3) conviver e aproximar. Os eixos representam visões para o futuro da cidade e consolidam a vocação intersetorial das intervenções propostas. No eixo criar oportunidades e construir uma nova economia, há metas como: diminuir pela metade a desigualdade na taxa de emprego formal por habitante entre o pior e o melhor distrito da cidade; aumentar a cobertura de internet banda larga; garantir maiores investimentos nas regiões mais vulneráveis.
Já no eixo cuidar e educar, tem-se metas como: reduzir a gravidez na adolescência, que é díspare entre os distritos; reduzir a desigualdade educacional entre os diversos grupos sociais; ampliar a cobertura da Estratégia Saúde da Família, sobretudo nos distritos mais vulneráveis. E, por fim, no de conviver e aproximar: reduzir o número de famílias vivendo em moradias insalubres; reduzir o tempo de deslocamento em transporte motorizado; zerar o número de distritos sem equipamento municipal de cultura.
Tudo isso pode melhorar claramente a qualidade de vida da população: menos horas gastas para chegar ao trabalho todo dia significam, na prática, mais horas de convivência do pai ou mãe com o seu filho, ou mais tempo de lazer e descanso; menos partículas de poluentes no ar resultam em menos adoecimentos e mortes por problemas respiratórios; mais empregos nas regiões periféricas evitam horas de locomoção do cidadão até o Centro.
“O projeto de muitas cidades modernas costuma ser definido pelo imperativo da economia de tempo. Ainda assim perde-se muito tempo no deslocamento, em engarrafamentos”, afirma o urbanista radicado na França Carlos Moreno. Para combater esse problema, Moreno é um dos defensores do conceito da “cidade de 15 minutos”, na qual os habitantes têm acesso a todos os serviços de que precisam para viver e se desenvolver em seu bairro de residência. Para chegarmos lá, é necessário investir para que cada bairro de São Paulo seja um território vivo, com emprego e opções de serviços públicos e privados, saúde, educação, cultura e lazer.
As metas citadas são só um pedaço do caminho. Com relação à distribuição dos recursos necessários para a implementação desses objetivos, os técnicos do (Re)age SP conceberam o Índice de (Re)distribuição Territorial do Orçamento Público Municipal. Ele traz um novo modelo de planejamento no qual as subprefeituras com maior déficit de infraestrutura urbana e com mais habitantes vivendo em condições de vulnerabilidade recebem a maior parte do orçamento municipal, em oposição a outras regiões já mais desenvolvidas.
Pela estimativa do (Re)age SP, a cidade de São Paulo terá R$ 11,59 bilhões disponíveis para novos investimentos nos próximos quatro anos (2021-2024). Rearranjando-se a lógica de distribuição, Cidade Tiradentes, na Zona Leste, receberia, por exemplo, três vezes (mais de R$ 290 milhões) o aporte da Vila Mariana (R$ 96 milhões), na Zona Sul. Considerando uma cidade desigual como a capital paulista, faz apenas sentido pensar na distribuição orçamentária tendo como critérios e indicadores as faltas e as precariedades dos territórios. A Cidade do México avança bem nesse sentido, e foi com isso em mente que o (Re)age SP se inspirou para mudar o jogo das desigualdades. Assim, o Índice de (Re)distribuição pauta-se em componentes como infraestrutura urbana (acesso à rede de esgoto, quantidade de domicílios em favelas e tempo de deslocamento casa-trabalho), vulnerabilidade social (Índice Paulista de Vulnerabilidade Social, homicídios e acidentes), área e população de cada localidade.
O Índice de (Re)distribuição é, portanto, um instrumento concreto para a prefeitura melhorar sua capacidade de planejamento e execução, pela integração dos sistemas de planejamento urbano, setorial e orçamentário e, com isso, garantir que as políticas públicas levem à melhoria da qualidade de vida nas regiões mais vulneráveis. Grandes cidades como a citada Cidade do México já preveem em seus orçamentos anuais a distribuição de recursos por região de acordo com indicadores sociais do território, como o nível de pobreza.
Além disso, se forem realizados de modo mais coordenado e planejado, os investimentos de infraestrutura, novos equipamentos sociais e ampliação de serviços urbanos podem criar um reforço positivo entre si, uma sinergia, tornando-se menos custosos para os cofres públicos e mais efetivos justamente porque são feitos em articulação. Como explica Mariana Almeida, docente do Programa Avançado em Gestão Pública do Insper e doutora em Economia do Desenvolvimento pela FEA-USP, “a decisão do gestor público sobre o uso dos recursos disponíveis, com uma intencionalidade e uma direção claras, promove um resultado, que é o de induzir e estimular melhorias nos territórios mais vulneráveis”. Ela ressalta que, muito mais do que uma peça restritiva, o orçamento público, dentro de um bom planejamento, pode e deve ser propulsor e indutor de políticas públicas eficazes.
Ao mesmo tempo, toda essa engrenagem só faz sentido com a participação popular e o controle social efetivo dos moradores, principal alvo e razão de ser das políticas. Por isso, o (Re)age SP propõe, em parceria com o coletivo Delibera Brasil, a realização de mini públicos, uma metodologia inovadora de deliberação cidadã. A partir de cenários de futuro, produzidos com dados reais do planejamento da Prefeitura Municipal de São Paulo, 30 pessoas selecionadas de forma aleatória para representar as características demográficas de cada subprefeitura decidirão sobre uma proposta de aplicação dos recursos públicos previstos para investimento em sua região.
A deliberação no mini público só acontece após encontros formativos com especialistas e discussões em grupo, de modo a assegurar aos moradores escolhas realmente realizáveis. A voz do morador é algo fundamental porque todo esse planejamento só faz sentido quando o conhecimento do território é combinado com os anseios e desejos de quem ali vive. A partir das lições da deliberação cidadã, o mecanismo pode e dever ser reaplicado em outros territórios como instrumento de deliberação participativa baseada em conhecimento técnico e orçamentário.
Considerando que já conhecemos nosso contexto e já sabemos dos instrumentos possíveis e da necessidade de mudança, a São Paulo mais justa é possível. Para que seja realmente a cidade das oportunidades, estas precisam ser efetivadas para todos seus moradores, e não apenas para alguns com determinado CEP. Momentos de eleição são vitais para se revisar a agenda urbana e para se levar ânimo a um início de gestão. É importante conhecer esses possíveis caminhos e participar porque Política se constrói com todos e com vários. O paulistano merece uma cidade com mais igualdade na oferta de oportunidades, com gestão compromissada e atenta às injustiças, e não reprodutora do mero status quo engessado que há décadas exclui milhões de moradores de uma boa qualidade de vida. A urgência está posta. O chamado está feito. É tempo de agir.
Pedro Marin é mestre em gestão e políticas públicas e doutor em administração pública e governo pela Fundação Getulio Vargas-SP, é coordenador do programa de orçamento público, transparência e planejamento na Fundação Tide Setubal.
Carolina Guimarães é mestre em cooperação internacional e desenvolvimento urbano pela Universidade de Darmstadt (Alemanha) e bacharel em economia e ciências políticas pela Universidade da Columbia Britânica (Canadá), é coordenadora da Rede Nossa São Paulo.