Juízo sobre estupro repete fórmula de humilhar vítima para desqualificá-la, e juiz pode ter sentença anulada
CNJ e CNMP irão investigar atuação de magistrado e promotor que permitiram ataques grosseiros e misóginos de advogado em audiência sobre caso Mariana Ferrer
Fotos sensuais em posições ”ginecológicas.” “Choro e lábia de crocodilo.” “Peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher como você.” “É seu ganha pão a desgraça dos outros. Manipular essa história de virgem.” As frases grosseiras e humilhantes saíram da boca do advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho dirigindo-se a Mariana Borges Ferreira, conhecida como Mari Ferrer, em pleno julgamento online sobre a acusação feita pela jovem de 23 anos contra o empresário André de Camargo Aranha. Mariana foi à delegacia denunciar Aranha por estupro. O caso teria ocorrido dentro de uma boate em que ela trabalhava como promotora de eventos em Florianópolis, em 15 de dezembro de 2018. Mariana era virgem até então.
O caso foi para o tribunal. É durante essa audiência que Rosa Filho destilou o rosário corrosivo para descaracterizar a jovem, seguindo a inércia conhecida por todas as mulheres. A cena do tribunal, divulgada pelo The Intercept Brasil, fica ainda mais grotesca ao se perceber que Mariana estava só diante de dois outros representantes do Judiciário que podiam, ao menos, ter protestado para que o advogado se ativesse aos autos. Palavras amenas do promotor de Justiça Thiago Carriço de Oliveira e o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, completaram o quadro do julgamento cujo desfecho ficou previsível: Aranha foi considerado inocente.
O caso de Mari Ferrer ganhou repercussão após o site The Intercept Brasil publicar o trecho da audiência em que ela era humilhada pelo defensor de Aranha. Na audiência em que ela é a única pessoa do gênero feminino, seu pedido de ajuda não é atendido pelos demais homens que a assistem. “Estou implorando por respeito, no mínimo. Nem os acusados, nem os assassinos são tratados da forma que eu estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente.” O juiz do caso, só lhe oferece um tempo para tomar um copo de água.
A cena trazida a público nesta terça levou o Conselho Nacional de Justiça a abrir uma apuração que pode, em último caso, resultar na anulação da sentença que absolveu o empresário. Em tese, ao não impedir que Mariana fosse tratada com dignidade, o juiz do processo Rudson Marcos infringiu a resolução 253 do CNJ. Em seu artigo primeiro, essa regra prevê: “O Poder Judiciário deverá, no exercício de suas competências, adotar as providências necessárias para garantir que as vítimas de crimes e de atos infracionais sejam tratadas com equidade, dignidade e respeito pelos órgãos judiciários e de seus serviços auxiliares”. Essa anulação, caso ocorra, se daria no âmbito da Justiça estadual de Santa Catarina.
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Inicialmente, o empresário André Aranha era acusado de estupro de vulnerável. Essa tipificação criminal ocorre quando a vítima tem menos de 14 anos de idade, tem alguma doença mental ou estava sob efeito de álcool ou drogas ao ponto de não ter condições de se apresentar qualquer reação. A investigação da Polícia Civil e a denúncia apresentada pelo Ministério Público de Santa Catarina eram de que, em 15 de dezembro de 2018, ele teria mantido relação sexual com Mariana, sem o consentimento dela e que ela estaria sob efeito de drogas. O laudo do Instituto Médico Legal constatou que ela tinha consumido álcool, mas não encontrou sinal de qualquer outro entorpecente, embora tenha reconhecido que houve ato sexual, e rompimento recente do hímen. A vítima afirmou que tinha sido dopada e não se recorda de alguns momentos daquele dia. Só teria notado que fora estuprada quando, em casa, sua mãe notou que havia sangue, decorrente do rompimento de seu hímen, e esperma em sua calcinha.
Em setembro deste ano, André Aranha foi absolvido do crime de estupro de vulnerável. O juiz Rudson Marcos atendeu ao pedido de absolvição formulado pelo promotor Oliveira, que substituiu o primeiro colega, Alexandre Piazza, e entendeu que não havia provas de que a jovem não teria o discernimento necessário para deixar de apresentar resistência. Recorreu à lógica “in dubio, pro reo”. Diz a sentença que para se configurar a acusação contra Aranha “é necessário que a vítima, por qualquer motivo, não tenha condições físicas ou psicológicas de oferecer resistência à investida do agente criminoso, bem como haja dolo na conduta do agressor e ciência da vulnerabilidade que acomete a vítima.” Os defensores de Mariana recorreram da decisão pois sustentam que ela foi, sim, estuprada. Foi Piazza quem apresentou a denúncia contra o empresário inicialmente, mas depois se saiu do caso.
Embora a própria sentença reconheça que houve uma relação sexual, ela teria acontecido sem “dolo”, ou seja, sem violar a lei. Seria o tal do “estupro culposo”, expressão que descreve um ato sem intenção de que ele aconteça, quase sem querer. A expressão foi usada no texto da reportagem do Intercept e viralizou nas redes em protesto contras as cenas misóginas do tribunal.
Desestímulo à denúncia
Da esfera das redes sociais, onde figurou como um dos assuntos mais comentados ao longo da terça-feira, o caso chegou ao Conselho Nacional de Justiça. O caso já estava no Conselho Nacional do Ministério Público, que determinou no mês passado a abertura de investigações contra o magistrado e o promotor a pedido do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. “Alguns se manifestaram hoje sobre o julgamento da acusação de estupro em SC, após verem o vídeo, mas nós já pedíamos apuração das condutas quando saiu a sentença”, escreveu a ministra Damares Alves no Twitter nesta terça. Não há uma data para que o CNJ ou o TJ de Santa Catarina analisem o caso.
O assunto também percorreu o Senado Federal, que aprovou um voto de repúdio contra todos os envolvidos nesta audiência. Indiretamente, também circulou entre representantes do Supremo Tribunal Federal. Em sua conta no Twitter, o ministro do STF e ex-presidente do CNJ Gilmar Mendes disse que as imagens eram estarrecedoras. “O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram”, disse.
Para três especialistas ouvidas pela reportagem, a forma que a vítima foi tratada na audiência desestimula a denúncia de crimes. “É o clássico caso de ‘revitimização’, em que a mulher é vítima de um crime, tem de revivê-lo ao relatá-lo para a polícia ou para o juiz e ainda acaba humilhada”, disse a procuradora da República aposentada Deborah Duprat, que até maio deste ano era procuradora federal dos Direitos do Cidadão, um cargo-chave na estrutura do Ministério Público para monitorar o respeito aos direitos humanos pelo próprio Estado. Para ela, todos os atores em questão falharam. “Casos como esse revelam a incapacidade do nosso sistema de proteger as pessoas”, afirmou.
Para a advogada criminalista Geórgia Laranja, especialista em ciências criminais, o Poder Público tem falhado no atendimento e na proteção de mulheres vítimas de crimes e o caso de Mariana Ferrer é um exemplo dessa inércia. “Muitas vítimas nem sequer denunciam o crime, por esse medo de ser julgada e tratada de forma humilhante. A vítima é atendida muitas vezes por homens que não são preparados para atendê-las”.
É um discurso semelhante ao da Associação dos Juízes Federais. Em nota, a instituição afirmou que o que pode estar em jogo é todo o trabalho do Poder Judiciário. “A invocação, em juízo, de estereótipos sexistas e que buscam estigmatizar a pessoa, traduz discriminação com graves repercussões institucionais, capaz de atingir a credibilidade de todo o sistema de Justiça”.
A advogada criminalista Ana Carolina Bettini entende que tanto o juiz quanto o promotor do caso poderiam ter freado os ímpetos do advogado do acusado. “Poderiam ter pedido para ele baixar o tom, manter as boas maneiras.” No entanto, ela diz que a sentença de absolvição parece ter sido bem fundamentada. “Diante das provas apresentadas, ela foi proporcional.” Na sua avaliação, não ficou comprovado que a jovem estaria embriagada ou sob efeito de drogas, tampouco de que ela teria sido forçada a se relacionar com o empresário.
A sentença, porém, mostra pontos contraditórios no depoimento do empresário. Segundo ele, não houve penetração no ato, nem teria chegado ao clímax, muito embora o laudo do IML “confirmou a prática de conjunção carnal e ruptura himenal [do hímen, uma vez que era virgem]”. Aranha, que depois da noite em que esteve com Mariana voltou a São Paulo, relata em seu depoimento que escutou uma história “estranha” sobre algo que teria acontecido na boate e que enviara um advogado no dia 18 de dezembro, ou seja, apenas três dias depois do ocorrido, para entender o que estava acontecendo. “Seu advogado veio para Florianópolis 3 dias depois dos fatos, deixou o telefone para um Delegado”, diz. A rigidez da Justiça para com Mariana não valeu para ele.