Os efeitos do golpismo às claras de Bolsonaro e de seus generais

“Calma, não vai ter tanque”, dizem os relativistas. Na ponta, a degradação democrática mata por covid-19, por violência policial. Se depender dos militares, vai tudo para debaixo do tapete

Jair Bolsonaro durante a posse do general Fernando Azevedo e Silva como ministro da Defesa.RICARDO MORAES (REUTERS)

Foi mais uma sexta regular no Brasil de Jair Bolsonaro, com debates sobre golpes, autogolpes e ameaças de intervenção militar em pleno 2020. Bolsonaro tem um Governo coalhado de militares, muitos deles generais da reserva, que dizem falar como civis, mas, sempre que questionados, se comportam como se fossem porta-vozes das Forças Armadas. Um dos mais recentes participantes desse balé retórico perigoso e debilitador da democraci...

Foi mais uma sexta regular no Brasil de Jair Bolsonaro, com debates sobre golpes, autogolpes e ameaças de intervenção militar em pleno 2020. Bolsonaro tem um Governo coalhado de militares, muitos deles generais da reserva, que dizem falar como civis, mas, sempre que questionados, se comportam como se fossem porta-vozes das Forças Armadas. Um dos mais recentes participantes desse balé retórico perigoso e debilitador da democracia (que deu até no New York Times e no Financial Times, se fizer falta uma chancela mainstream) foi o ministro da Secretaria de Governo, o general Luiz Eduardo Ramos.

Em entrevista à revista Veja, publicada nesta sexta, Ramos declarou que o presidente nunca defendeu um golpe militar no país. Trata-se de uma afirmação fácil de rebater, contando vezes mais explícitas e menos explícitas. Juristas ouvidos pelo EL PAÍS viram com especial preocupação a postagem feita pelo presidente no Twitter, faz algumas semanas. Era uma análise jurídica do artigo 142 da Constituição, sobre o papel das Forças Armadas, toda ela feita sob medida para dar um verniz supostamente legal e constitucional a uma possível “intervenção militar” no país. Isso sem falar nas múltiplas aparições do presidente, inclusive a cavalo, para endossar atos antidemocráticos (não se trata de um adjetivo, e sim de uma descrição, quando seus participantes carregam faixas pedindo o fechamento dos demais poderes e Bolsonaro aparece para gritar uns “bastas” para excitá-los).

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Num dos sinais do nosso aterrorizante “novo normal”, o magistrado do Supremo Tribunal Federal, Luis Roberto Barroso, teve de esclarecer na última semana em uma decisão: não, o famigerado artigo 142 da Constituição, não permite uma “intervenção militar”. Depois, nesta própria sexta, Luiz Fux concedeu uma liminar no mesmos termos. O artigo é, como já se pronunciaram historiadores e especialistas e o próprio ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que participou de sua redação, um entulho da nossa transição tutelada, mas deixemos para aprofundar esse debate outra hora. O ponto principal é que nem Bolsonaro nem seus militares se mostram dispostos a seguir o Supremo. É explícita a adesão ao “terraplanismo constitucional”, como disse Barroso.

Não bastasse o cinismo da negativa de Ramos que “o próprio presidente nunca pregou o golpe”, houve ainda a audácia de fazer uma nova ameaça, reforçando aquela feita por outro general-ministro, Augusto Heleno: “Agora o outro lado tem de entender também o seguinte: não estica (sic) a corda”, disse o ministro. Com razão, a oposição cobrava na sexta-feira que Ramos esclarecesse melhor o que os nossos generais generalíssimos estão dispostos ou não a permitir. Pode investigar o presidente da República? Tem que autorizá-los a comemorar um golpe todos os anos em quartéis no primeiro de abril ou, do contrário, estaremos, como sociedade, esticando a corda?

Não foi preciso esperar muito. Horas depois, o golpismo às claras apareceria de novo, na nota assinada pelo capitão da reserva Bolsonaro, pelo vice Hamilton Mourão (general da reserva) e pelo ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva. Eles advertiram: as “Forças Armadas” não estão dispostas a aceitar uma “tomada de poder” ao arrepio da lei ou “julgamentos políticos” que eles não concordem, tá ok? Ou seja, esticar a corda, é o julgamento contra a chapa Bolsonaro-Mourão no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), é um eventual impeachment, é o inquérito contra o presidente.

É preciso desenhar: em nenhuma democracia estável do mundo o ministro da Defesa sai assinando notas sobre política interna e dizendo que os militares são os últimos juízes do que é legítimo ou não fazer, num recado ao Judiciário e ao Supremo. “Ah, mas isso é retórica, a ativa não cai nessa, veja bem, não vai ter tanque”. Esse tipo de resposta só pode ser autoengano ou cinismo. Não fomos nós que esquecemos que estamos em 2020 e que, dado nossos mais de 30 anos de democracia, ameaças pretensamente endossadas por militares não fazem parte mais do menu. Tudo já é bastante complexo num Brasil com polícias militares politizadas, com o discurso do presidente seduzindo os mandos médios castrenses com a imagem de salvador da pátria e a alta hierarquia, com cargos e poder. Mas, obviamente, não precisa ter tanque, golpe clássico para ser ameaça democrática. No entanto, no caso do Governo Bolsonaro, são os militares que lhe dão sustentação para que ele avance na degradação da democracia. Com Venezuela, Hungria e Turquia no noticiário todos os dias, é um pouco desconcertante ter que escrever isso.

A marcha da normalização do golpismo e das ameaças é diária. Há uma semana, o general Ramos ( um general da ativa) se pôs nesta posição de defesa de um presidente que ele mesmo trata como semicapaz, que precisa ser tratado com “cuidado”, caso contrário, estaremos fritos. Em entrevista à CNN Brasil, o general saiu-se com essa: “Não o ataquem, e ele será uma pessoa normal”. É uma frase absurda que embute outra ameaça.

Não, general, ele não é um presidente normal. Ponto. Ninguém exercendo com decoro (não digo nem com competência) o cargo que ocupa fala aos seus seguidores, como Bolsonaro fez na quinta-feira, isso: invadam hospitais, vamos ver se essa gripezinha já matou 41.000 mil mesmo. Não é apenas um ato covarde, é um desrespeito ao luto e a angústia das famílias. É também uma apologia ao crime previsto no Código Penal, nos artigos 286 e 287. Na sexta, enquanto escrevia isso, para surpresa de ninguém, um grupo invadiu um hospital no Rio de Janeiro.

O caso do Rio é só mais um exemplo de quem defende que é só retórica. Não se trata apenas de agitar seguidores fazendo ameaças autoritárias e jogar seus fiéis ao risco. Há ameaças aos pilares democráticos bastante concretas em curso. É preciso recorrer à Justiça para tentar ter uma estatística mínima da pandemia. Descobre-se, no susto, que o Governo decidiu varrer para debaixo do tapete, bem ao gosto dos militares saudosos de 1964, os números de violência policial num relatório. É urgente acionar de novo a toga para não se despedir da autonomia universitária. Isso é o que está na superfície, o que a imprensa ainda consegue ver. Mas, como fomos advertidos nos últimos dias, não sabemos até quando nossos militares vão tolerar isso ou vão passar a considerar uma “provocação”. Vamos ver até quando nos permitem brincar de democracia liberal.

O mais desolador é que o projeto de Bolsonaro segue tendo sócios poderosos, para além da importante fatia de apoio popular do Planalto. Já na eleição se sabia que que a elite que optou pelo bolsonarismo aceitou sujar as mãos de sangue. Pensava-se nas minorias achincalhadas, nos pobres das favelas nas mãos da polícia. Nem no pior pesadelo imaginamos uma pandemia. Seja como for, as novas valas nos cemitérios não aguardam os integrantes desse establishment econômico e financeiro. No máximo, eles vão ter que aguentar o confinamento em mansões nacionais enquanto seguirmos banidos de viajar pelo mundo por causa do vírus. A eles segue não interessando parar nem Bolsonaro nem seus generais. Por isso, é mandatório citar Eliane Brum: “Não são os militares que precisam ‘enquadrar’ Bolsonaro, algo que já ficou provado que não podem nem querem fazer. São as instituições democráticas que precisam enquadrar os militares e botá-los no seu lugar”. Teremos como?


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