Como fabricar o jogador de futebol perfeito
A Liga espanhola está exportando para o mundo todo um método inspirado em Iniesta para que atletas cheguem ao topo do esporte
A base triunfa no futebol espanhol. A LaLiga Santander, nome comercial do campeonato espanhol, foi nos últimos anos, entre as grande ligas europeias, a mais alimentada por pratas da casa, segundo um estudo do Centro Internacional de Estudos Esportivos (CIES). Entre 2009 e 2017, quase um em cada quatro jogadores do torneio provinha das categorias inferiores de seus clubes (23,6%), superando o que ocorria na Série A italiana (9,1%), na Premier League inglesa (14,1%), na Bundesliga alemã (15,1%) e na Ligue 1 francesa (23,2%). A Espanha virou uma potência na formação de jogadores de futebol, mas qual é o segredo desse sucesso? A La Liga há quatro anos vem estudando o método de trabalho das academias dos clubes espanhóis a fim de desenvolver uma programa básico de aprendizagem que respeite seus modelos de sucesso: os 100 conceitos que os sucessores de Iniesta, Sergio Ramos e Saúl precisarão dominar. “Há alguns anos estávamos preparando atletas que jogassem futebol. Hoje procuramos o jogador de futebol inteligente”, conta Hugo Blanco, diretor de Projetos Esportivos da La Liga, o departamento que analisou o melhor das categorias de base do futebol espanhol.
A equipe do departamento, completado por Juan Florit, Carlos Casal e David García (todos eles profissionais com o título UEFA Pro, a máxima licença concedida a um treinador), analisa de forma contínua as metodologias de desenvolvimento de atletas dos clubes que disputam a LaLiga Santander e LaLiga SmartBank (segunda divisão espanhola). São avaliados os organogramas, as estruturas organizacionais e a qualidade das instalações, entre outros parâmetros, além de dezenas de variáveis na preparação dos treinos – dos mecanismos de acompanhamento dos jogadores até o perfil dos técnicos e o planejamento das sessões. Uma colaboração que deu lugar a uma metodologia própria, com uma centena de lições divididas em seis etapas, respeitando o desenvolvimento dos jogadores, e quatro blocos temáticos: tática, técnica, preparação física e um capítulo psicológico-afetivo, que tem cada vez mais peso: “O aspecto mental é uma das nossas grandes preocupações, e também para os clubes. Cada vez é mais habitual que tenham um departamento de apoio psicológico”, conta Blanco.
A metodologia, afirma ele, é o reflexo da evolução do futebol espanhol. “A conquista da Copa de 2010 nos deu uma identidade. Ficou para trás a Fúria e chegaram jogadores com muita inteligência, com visão tática e bom domínio de bola. O que procuramos é isso. Não o mais forte nem o mais rápido, e sim o que decida melhor”. Eduardo Covelo, diretor da base do RC Celta, uma das equipes que colaboraram no projeto, confirma a impressão do diretor de Projetos Esportivos: “Antes buscávamos só executores. O treinador ia com o joystick e ordenava tudo. Hoje é preciso entender o jogo. Busca-se o jogador autônomo, que sabe que ação escolhe e por quê”.
Por enquanto, este método já foi aplicado por 600 treinadores que a La Liga distribuiu em seus projetos na Ásia, África, América do Norte e Oriente Médio. Neles, se exporta um sistema que se sustenta em quatro pilares, segundo Blanco: “Técnicos com boa formação, uma boa estrutura competitiva, boas instalações e uma grande cultura futebolística”. Embora seja cedo para avaliar o resultado de uma iniciativa que não tem nem cinco anos, os primeiros frutos já estão aparecendo: uma dezena de juvenis da academia dos Emirados Árabes Unidos foi incorporada a clubes profissionais da região.
Do mesmo modo, o objetivo da experiência é que os clubes estejam cada vez menos isolados e se abram para compartilhar seu conhecimento. Um salto que a instituição incentiva através de encontros periódicos entre os responsáveis pelas categorias dos principais clubes do país, convidando especialistas de clubes e federações de outros países ou desenvolvendo ferramentas de trabalho como a Plataforma do Gestão de Academias, um sistema que permite controlar, de forma contínua e imediata, a metodologia de treinamento de técnicos e jogadores em qualquer parte do mundo. “Acreditamos na inteligência coletiva para crescer de forma conjunta e posicionar o futebol espanhol ainda mais como a máxima referência no trabalho de categorias de base. Não temos nenhuma dúvida de que nossas categorias de base fazem a diferença”, afirma uma fonte do Departamento de Projetos Esportivos.
“Não acredito que faça sentido esconder informação, porque não existe uma fórmula mágica para criar jogadores. É uma equação complexa”, explica o diretor esportivo do Celta. “Nós estudamos isso, e há um fator não esportivo que é muito importante: que os jogadores de 12 a 15 ou 16 anos não saiam de seu entorno e tenham uma infância totalmente normal”, observa. O clube galego – o time da LaLiga Santander que mais colocou atletas da base em campo nesta temporada, segundo dados do CIES, é todo elogios a essa colaboração. “Nós do Celta fomos aprender com mais de uma dezena de equipes, e aqui temos as portas abertas a todo mundo.”
Dos mais de 900.000 garotos que cada a fim de semana enchem de esforço e empenho os gramados de toda a Espanha, só entre 1% e 3% chegarão ao futebol profissional. “Nós dizemos que cada jogador de futebol é um projeto. A única coisa que podemos fazer por eles é dar as ferramentas para otimizar seu potencial ao máximo”, conclui Blanco. O resto é uma mistura de talento, esforço e sorte.