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Coluna
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Democracias em chamas

Uma década depois da pior crise do capitalismo, até mesmo o Fórum de Davos admite que o resgate de 10 trilhões de dólares ao sistema econômico foi ineficiente e, agora, a desigualdade ameaça as democracias

Manifestante em frente a barricadas de fogo durante os protestos em Barcelona, em 18 de outubro de 2019.
Manifestante em frente a barricadas de fogo durante os protestos em Barcelona, em 18 de outubro de 2019.David Zorrakino (Europa Press)

Quito, Londres, Barcelona, Beirute, Hong Kong, Santiago e até mesmo Bagdá e Argel. Praticamente nada une essas cidades pelo mundo. Suas populações vivem realidades sociais radicalmente diferentes. São governadas por partidos de ideologias políticas das mais variadas e cada qual conta com uma história única.

Mas algo nas últimas semanas as aproximou de forma surpreendente: a ira de suas populações contra as autoridades.

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Em Santiago, foi o preço do transporte que levou os estudantes a bloquear o maior sistema de metrô da América do Sul, obrigando o governo a declarar “estado de emergência”. Em Beirute, uma taxa sobre o Whatsapp transbordou o copo de uma sociedade empobrecida e com 40% de seus jovens sem trabalho.

Em Barcelona, o movimento independentista aglutinou parte dos cidadãos enfurecidos diante do colapso da ilusão de crescimento e do sentimento de traição de um acordo de autonomia cuidadosamente negociado.

Em Londres, neste sábado, milhares protestaram pela cidade por conta da indefinição sobre o destino do país e do Brexit. Ao tentar sair do prêmio do Parlamento mais tradicional da Europa, deputados tiveram de ser escoltados pela polícia diante da fúria popular.

No Iraque, centenas tomaram as ruas – e morreram - para protestar contra a falácia da democracia num país que, quase duas décadas depois de retirar um ditador sanguinária, ainda não conseguiu encontrar seu destino. Em Argel, a queda do governo de Abdelaziz Bouteflika não foi suficiente para acalmar uma população esgotada.

E, em Hong Kong, o que começou como um protesto contra a ingerência chinesa se transformou num ato de força de uma população que não quer perder seus direitos.

Em cada uma delas, o que ficou claro foi a insatisfação popular diante da descrença em relação ao compromissos dos líderes em servir aos cidadãos. Abusados em suas inteligências, sofrendo para pagar suas contas e fartos de uma elite que insiste em não reconhecer a disparidade de renda cada vez maior na sociedade, esses locais foram tomados por um profundo desgosto em relação à autoridade.

Pelas ruas de Quito, Beirute ou Argel, os cartazes assustadoramente se parecem. Palavras como “traidores”, “democracia” e “poder popular” ganham espaço em diferentes línguas, em diferentes formas.

Certamente, alguém virá para alertar: não há como comparar Lenín Moreno a Boris Johnson. Claro que não. Também existirão aqueles que alertarão sobre o risco de esses movimentos estarem sendo manipulados pela oposição ou por grupos que estariam interessados em promover a instabilidade social. Reconheço que esse elemento pode existir.

Mas há uma pergunta básica que precisa ser feita nesta semana: o que vem levando milhares à ruas ? Como explicar a explosão de raiva contra governos eleitos, autoridades estabelecidas ou constituições ratificadas?

Uma das explicações mais plausíveis seria a constatação do fracasso do sistema em atender aqueles aos quais precisa servir.

Num recente informe, o Fórum Econômico Mundial alertou: a crise econômica que eclodiu em 2008 continua a gerar um impacto negativo, minando as bases da sociedade. Não se trata de uma entidade que quer derrubar o capitalismo. Muito pelo contrário. Mas a realidade é que até mesmo os organizadores de Davos, a Meca do sistema financeiro, entenderam que os 10 trilhões de dólares jogados pelos bancos centrais às economias para socorre-las da crise na última década não funcionaram.

Melhor dizendo: não funcionaram para uma parcela da população, que foi obrigada a viver com menos, trabalhar mais e reajustar até mesmo seus sonhos.

Certamente aberrações como a das contas gregas precisavam passar por uma reforma. Mas quem pagou por elas?

Para sociedades em diferentes partes do mundo, o que se viu foi o estabelecimento de uma década perdida, enquanto a concentração de renda ganhou um novo patamar até hoje inédito.

O exército de desempregados transformou a psicologia de famílias inteiras, levou a um aumento do suicídio, viu a volta de doenças que tinham desaparecido e até reduziu as expectativa de vida em alguns locais.

Uma década depois, os bancos têm seu futuro assegurado. Mas não a renda de milhões de famílias. E, não por acaso, isso tudo se traduziu em um novo comportamento político e social.

No fundo, o capitalismo foi salvo. Mas não necessariamente as sociedades.

Em cada local do mundo, tal crise foi lentamente traduzida de forma diferente nas ruas, nas urnas. Mas um elemento as une: a fúria.

Em seu mais recente livro Rage Becomes Her, a escritora Soraya Chemaly questiona o argumento de que a raiva seja irracional. Para ela, essa ira é, no fundo, o idioma da Justiça. Em sua obra, ela trata de como a desigualdade encarada pelas mulheres começa no nascimento e as acompanha até a morte.

Extrapolando essa avaliação, não seria exatamente esse o sentimento de milhões de marginalizados da sociedade ao entender que seus sonhos serão apenas sonhos? O próprio Fórum de Davos constatou que, hoje, para a camada mais pobre dos brasileiros ou colombianos chegar a ter uma renda média de seus respectivos países, terão de esperar de oito a nove gerações.

Mesmo em alguns locais da Europa, com sua ampla rede social, os mais pobres também terão de esperar quatro ou cinco gerações para serem considerados como classe média. Como não desesperar?

Neste ano, o Electoral Psychology Observatory da London School of Economics (LSE) constatou que metade da sociedade britânica hoje se diz enfurecida contra pessoas que votaram por partidos opostos ao nosso. Um terço dos entrevistados confessa sentir ódio. A mesma pesquisa concluiu que um em cada cinco britânico poderia considerar a possibilidade de uma revolução.

O contexto de nossos dias também levou o professor da Williams College, George Marcus, a pesquisar uma sociedade com medo e com raiva. E suas conclusões são explícitas: sim, tal situação tem um impacto direto nas escolhas políticas de um país. “Ignorar a raiva e o não entender o medo nos deixarão cegos”, alertou.

Quem não está cego é o movimento populista, que já entendeu que pode canalizar toda essa fúria em apoio a seus partidos que governam pelo ódio. Pessoas que instrumentalizam essa ira popular para chegar ao poder, prometendo supostas soluções fáceis.

Basta sair da UE que seremos ricos. Basta fechar nossas fronteiras que estaremos seguros. Basta tirar esse partido do poder que teremos nosso futuro assegurado.

Não é exagero dizer que o mundo dito livre está em uma encruzilhada. Se partidos tradicionais e as elites não ouvirem as ruas e transformarem seus regimes políticos, se não aceitarem que a prioridade é lidar de forma urgente com a desigualdade social, o que está em jogo não é apenas sua permanência no poder. Mas a própria democracia.

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