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Coluna
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Irmã Dulce, símbolo de um Brasil que está se esquecendo dos pobres

Nunca teve escrúpulos em bater à porta dos políticos importantes do seu tempo, mas sempre para suplicar recursos para os mais abandonados

Juan Arias
Irmã Dulce está na primeira tapeçaria à esquerda na Basílica de São Pedro.
Irmã Dulce está na primeira tapeçaria à esquerda na Basílica de São Pedro.Andrew Medichini (AP)
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Irmã Dulce será canonizada no próximo domingo em Roma pelo papa Francisco. Trata-se de um acontecimento duplamente importante e significativo não só para os católicos, já que a religiosa se apresenta como uma série de símbolos do momento que este país vive nos aspectos político, religioso e social. É a primeira Santa do Brasil que não só viveu como também nasceu aqui, em Salvador.

Conhecida popularmente como a “mãe dos pobres”, Irmã Dulce será canonizada por Francisco, o papa de vida mais austera da época moderna. Eleito sucessor de Pedro, despojou-se dos ouropéis do poder, até em sua vestimenta, e preferiu viver em um quarto de hotel em vez dos luxuosos palácios pontifícios. Talvez a isso se deva que a nova santa brasileira seja canonizada tão poucos anos depois da sua morte. A Igreja esperou às vezes séculos antes de declarar alguém como santo.

O Brasil verá Irmã Dulce na glória dos altares em um momento quase de cruzada religiosa no país, onde a intolerância de alguns grupos de evangélicos extremistas perseguem outras religiões, sobretudo de origem africana. Irmã Dulce nasceu e atuou justamente na cidade com mais negros fora da África e a que melhor mantém suas tradições culturais e religiosas.

Será canonizada durante o Sínodo de bispos sobre os problemas da Amazônia, em plena polêmica do presidente Jair Bolsonaro, católico e rebatizado na Igreja evangélica, com o papa Francisco, a quem o governo brasileiro de extrema direita acusa de intromissão nos assuntos internos do Brasil, por criticar a queima das florestas e o abandono dos indígenas.

A nova Santa da Bahia estará rodeada por políticos brasileiros de todas as tendências neste domingo, na Basílica de São Pedro. A religiosa, intrépida e obcecada com os mais marginalizados da sociedade, dizia: “Meu partido é a pobreza”. Nunca teve escrúpulos em bater à porta dos políticos importantes do seu tempo, mas sempre para suplicar recursos para os mais abandonados, aos quais dedicou sua vida, e às obras por ela criadas exclusivamente para aliviar a dor e a pobreza.

O Brasil terá uma nova Santa que ainda adolescente, órfã de mãe, levava os doentes abandonados nas ruas para a sua própria casa, de família bem de vida, para lhes socorrer. Sua figura de mulher forte e doce ao mesmo tempo, e sua vida dedicada a ajudar a todos os abandonados, é o que faz que hoje, sobretudo os pobres, de qualquer fé, vejam na Irmã Dulce alguém, como me disseram na rua, “que parece que se preocupava com os que mais sofriam”. Pois são esses abandonados pelo poder à margem da sociedade que mais sensibilidade têm para analisar a verdadeira santidade de uma pessoa.

Nos primórdios do cristianismo, não era a Igreja, o Papa, que canonizava as pessoas. Era a própria comunidade cristã que decidia, às vezes já em vida, quem era santo e exemplo para os outros. Consta-me que o papa Francisco gostaria de voltar a essas origens e deixar que sejam as comunidades cristãs que decidam quem teve uma vida que mereça ser exaltada depois da sua morte.

Irmã Dulce, que como religiosa manteve sua visão moderna da mulher liberada que deve participar ativamente na vida pública, é canonizada justo neste momento em que a reivindicação da mulher por seus direitos e peculiaridades, sem discriminações, representa uma das grandes batalhas no mundo e particularmente no Brasil, um dos países com maior número de feminicídios, e que vive um momento de machismo e obscurantismo cultural e religioso.

Os símbolos são uma das grandes criações da inteligência humana. Foram eles que moveram o mundo para o bem ou para o mal. Do Brasil, hoje, onde o poder transformou os pobres e desassistidos em invisíveis, a nova Santa Irmã Dulce é o símbolo de uma nova resistência para recordar ao mundo e sobretudo aos cristãos em geral que são os pobres que acabam julgando o poder.

Conheci Irmã Dulce em julho de 1980, durante a primeira viagem do papa João Paulo II ao Brasil. Foi em Salvador, durante a missa campal do Pontífice. Eu havia viajado no seu avião como correspondente deste jornal na Itália e Vaticano. O Papa, na frente daquela multidão, chamou a religiosa ao altar onde celebrava a Eucaristia, abraçou-a e a abençoou. Os jornalistas estrangeiros não sabíamos quem era aquela freirinha privilegiada que arrastava visivelmente seu desgaste físico. Dela recordo, sobretudo, seu olhar profundo e grave. Seus olhos mais doces devia reservá-los aos invisíveis.

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