Reivindicação do denunciante
Em trecho de seu livro 'Eterna Vigilância', da editora Planeta, ex-analista da NSA que revelou espionagem maciça reflete sobre o valor e a ética daqueles que expõem más práticas de dentro de uma organização
Os EUA nasceram de um ato de traição. A Declaração de Independência foi uma violação ultrajante das leis da Inglaterra e a mais completa expressão do que os Fundadores chamavam de as Leis da Natureza, entre as quais estava o direito de desafiar os poderes do dia e se rebelar por questão de princípios, segundo os ditames da consciência de alguém. Os primeiros estadunidenses a exercer esse direito, os primeiros delatores da história dos Estados Unidos, apareceram um ano depois, em 1777. Esses homens, como muitos homens de minha família, eram oficiais da Marinha Continental, que em defesa de sua nova terra haviam ido para o mar. Durante a Revolução, eles serviram na U.S.S. Warren, uma fragata de 32 canhões sob o comando do comodoro Esek Hopkins, comandante-chefe da Marinha Continental. Hopkins era um líder preguiçoso e intratável que se recusou a levar seu navio a combate. Seus oficiais também alegaram ter testemunhado o comodoro surrando prisioneiros de guerra britânicos e deixando-os morrer de fome. Dez oficiais do Warren —depois de consultar sua consciência e mal pensando em sua carreira— relataram tudo isso à cadeia de comando, escrevendo ao Comitê da Marinha:
Mui respeitados Senhores,
Nós que apresentamos esta petição estamos engajados a bordo do navio Warren com um desejo sincero e a firme expectativa de prestar algum serviço a nosso país. Ainda estamos ansiosos pelo bem-estar dos EUA e nada desejamos mais fervorosamente que a ver em paz e prosperidade. Estamos prontos para arriscar tudo que nos é caro, e, se necessário, sacrificar nossa vida pelo bem-estar de nosso país. Desejamos ser ativos na defesa de nossas liberdades e privilégios constitucionais contra as injustas e cruéis reivindicações de tirania e opressão; mas, em vista das circunstâncias a bordo desta fragata, parece não haver nenhuma perspectiva de sermos úteis em nosso posto atual. Estamos nessa situação há um considerável espaço de tempo. Estamos pessoalmente bem familiarizados com o verdadeiro caráter e a conduta de nosso comandante, comodoro Hopkins, e nos utilizamos deste método não tendo uma oportunidade mais conveniente de solicitar, de forma sincera e humilde, ao honorável Comitê da Marinha que investiguem seu caráter e conduta, pois consideramos que seu caráter é tal, e que ele é culpado de crimes que o tornam inadequado para o departamento público que agora ocupa; crimes esses que nós, aqui subscritos, podemos atestar suficientemente.
Depois de receber essa carta, o Comitê da Marinha investigou o comodoro Hopkins. Sua reação foi demitir seus oficiais e tripulação e, em um ataque de raiva, entrou com uma ação criminal por difamação contra o aspirante Samuel Shaw e o terceiro tenente Richard Marvin, os dois oficiais que admitiram ter sido os autores da petição. O processo foi aberto nos tribunais de Rhode Island, cujo último governador colonial fora Stephen Hopkins, signatário da Declaração de Independência e irmão do comodoro.O caso foi atribuído a um juiz nomeado pelo governador Hopkins, mas, antes que o julgamento começasse, Shaw e Marvin foram salvos por um oficial da Marinha, John Grannis, que se rebelou e apresentou o caso diretamente ao Congresso Continental. O Congresso Continental ficou tão alarmado com o precedente que se estabeleceria ao permitir que queixas militares sobre abandono do dever ficassem sujeitas a acusação criminal de difamação que interveio. Em 30 de julho de 1778, encerrou o comando do comodoro Hopkins, ordenou à Secretaria do Tesouro que pagasse os honorários advocatícios de Shaw e Marvin, e por unanimidade, promulgou a primeira lei de proteção aos delatores dos Estados Unidos. Essa lei declarava “o dever de todas as pessoas a serviço dos Estados Unidos, bem como de todos os seus habitantes, de fornecer as primeiras informações ao Congresso ou a qualquer outra autoridade apropriada sobre qualquer má conduta, fraude ou contravenção cometida por qualquer oficial ou pessoa a serviço dessas instâncias que possam chegar a seu conhecimento”. Essa lei me deu esperança, e ainda dá. Mesmo no momento mais sombrio da Revolução, com a própria existência do país em jogo, o Congresso não apenas acolheu um ato de dissensão por princípios, como também consagrou tais atos como deveres. No segundo semestre de 2012, eu estava decidido a desempenhar esse dever, mas sabia que faria minhas revelações em um momento muito diferente – um tempo mais confortável e mais cínico. Poucos superiores meus da CI teriam sacrificado sua carreira pelos mesmos princípios estadunidenses pelos quais os militares sacrificam regularmente sua vida. E em meu caso, recorrer à cadeia de comando, que a CI prefere chamar de canais apropriados, não era uma opção como foi para os 10 homens que tripulavam o Warren. Meus supe-riores não só estavam cientes do que a agência estava fazendo, como também dirigiam essas atividades; eram cúmplices.
Em organizações como a NSA —onde a desonestidade se tornou estrutural a ponto de não ser uma iniciativa particular, e sim uma ideologia—, os canais apropriados podem ser uma armadilha para capturar os hereges e os contrários. Eu já havia experimentado o fracasso do comando em Warrenton, e de novo em Genebra, onde, no curso normal de minhas funções, havia descoberto uma vulnerabilidade de segurança em um programa crítico. Eu relatei a vulnerabilidade e, como nada foi feito, relatei isso também. Meus supervisores não ficaram felizes com minha atitude, porque seus supervisores também não estavam contentes. A cadeia de comando é realmente uma cadeia que amarra, e os elos inferiores só podem ser erguidos pelo mais alto.
Proveniente de uma família que serviu na Guarda Costeira, eu sempre fui fascinado pela quantidade de palavras inglesas do vocabulário referente a uma revelação que têm influência náutica. Desde antes da época do U.S.S. Warren, ocorriam vazamentos (leaks) nas empresas, assim como nos navios. Quando o vapor substituiu o vento como propulsor, passou-se a usar apitos (whistles) para sinalizar intenções e emergências: 1 apito para passar pelo porto, 2 para passar a estibordo, 5 para um alerta.
Já os mesmos termos nas línguas europeias com frequência têm valências políticas carregadas, condicionadas pelo contexto histórico. Os franceses usaram denonciateur durante a maior parte do século XX, até que a associação da palavra com denouncer ou informant dos alemães na Segunda Guerra Mundial levou a uma preferência por lanceur d’alerte (aquele que lança um alerta). O alemão, uma língua que tem lutado com o passado nazista e Stasi de sua cultura, evoluiu de seu próprio denunziant e informant e decidiu pelo insatisfatório hinweisgeber (aquele que dá dicas), enthueller (revelador), skandalaufdecker (revelador de escândalo), e inclusive o decididamente político ethische dissidenten (dissidente ético).
Mas o alemão usa pouco essas palavras on-line; no que diz respeito às revelações de hoje na internet, o idioma simplesmente pegou emprestado o substantivo whistleblower (delator) e o verbo leaken (vazar). As línguas de regimes como o da Rússia e o da China, por sua vez, empregam termos que carregam o sentido pejorativo de informante e traidor. Seria necessária a existência de uma imprensa livre forte nessas sociedades para imbuir essas palavras de uma conotação mais positiva, ou para cunhar novas que enquadrariam esse tipo de revelação não como uma traição, e sim como um dever honroso.
Em última análise, todas as línguas, incluindo o inglês, demonstram a relação de sua cultura com o poder pelo modo como escolhem definir o ato de fazer uma denúncia. Até as palavras náuticas inglesas que parecem neutras e benignas enquadram o ato na perspectiva da instituição que se percebe prejudicada, e não do público com quem a instituição falhou. Quando uma instituição denuncia um vazamento, deixa implícito que o vazador prejudicou ou sabotou algo.
Hoje, vazamento e delação são frequentemente tratados como intercambiáveis. Mas, em minha opinião, o termo vazamento deveria ser usado de forma diferente do que normalmente é. Deveria ser usado para descrever revelações feitas não pelo interesse público, e sim por interesse próprio, ou em busca de objetivos institucionais ou políticos. Para ser mais preciso, eu entendo um vazamento como algo mais próximo de uma planta, ou uma semeadura de propaganda; ou seja, a liberação seletiva de informações protegidas para influenciar a opinião popular ou afetar o curso da tomada de decisões. É raro que se passe um dia sequer sem que um alto funcionário do governo sem nome ou anônimo vaze, por meio de uma sugestão ou dica para um jornalista, algum item confidencial que alavanque seus próprios interesses ou os esforços de sua agência ou partido.
Essa dinâmica talvez seja mais descaradamente exemplificada por um incidente ocorrido em 2013, em que oficiais da CI, provavelmente tentando inflar a ameaça de terrorismo e desviar das críticas à vigilância em massa, vazaram para alguns sites de notícias relatos extraordinariamente detalhados de uma teleconferência entre o líder do Al Qaeda, Ayman a-Zawahiri e seus afiliados globais. Nessa chamada teleconferência da morte, al-Zawahiri supostamente discutia a cooperação organizacional com Nasser al-Wuhayshi, líder do Al Qaeda no Iêmen, e representantes do Talibã e do Boko Haram. Ao revelar a capacidade de interceptar essa teleconferência —isso se acreditarmos nesse vazamento, que consistia em uma descrição da chamada, não em uma gravação—, a CI irrevogavelmente queimou um meio extraordinário de se informar sobre os planos e as intenções dos mais altos escalões da liderança terrorista, puramente por uma vantagem política momentânea no ciclo de notícias. Nem uma única pessoa foi processada por causa desse truque publicitário, embora certamente fosse ilegal, e custou aos estadunidenses a capacidade de continuar escutando a suposta linha direta do Al Qaeda.
De tempos em tempos, a classe política dos EUA se mostra disposta a tolerar, inclusive a gerar, vazamentos que atendam a seus próprios objetivos. A CI frequentemente anuncia seus sucessos, independentemente de sua confidencialidade e das consequências. Em nenhum lugar na história recente isso foi mais aparente que nos vazamentos relacionados ao assassinato extrajudicial do clérigo extremista estadunidense Anwar al-Aulaqi no Iêmen. Ao divulgar ao The Washington Post e ao The New York Times, esbaforido, seu ataque com drones a al-Aulaqi, o governo Obama admitiu tacitamente a existência do programa de drones da CIA e sua disposition matrix, ou lista de mortes, sendo que ambos eram oficialmente ultrassecretos. Além disso, o governo estava implicitamente confirmando que se envolvia não apenas em assassinatos direcionados, mas em assassinatos direcionados de cidadãos estadunidenses. Esses vazamentos, realizados na forma coordenada de uma campanha de mídia, foram chocantes demonstrações da abordagem situacional do Estado ao sigilo: algo que deve ser mantido para que o governo aja com impunidade, mas que pode ser quebrado sempre que ele pretenda reivindicar créditos.
É só nesse contexto que a relação latitudinal do governo dos EUA com os vazamentos pode ser totalmente compreendida. Ele perdoou vazamentos não autorizados quando resultaram em benefícios inesperados, e esqueceu vazamentos autorizados quando causaram danos. Mas se a nocividade e a falta de autorização de um vazamento, para não dizer sua ilegalidade essencial, faz pouca diferença na reação do governo, o que conta? O que torna uma revelação permissível e outra não?
A resposta é poder. A resposta é controle. Uma revelação é conside-rada aceitável somente se não desafiar as prerrogativas fundamentais de uma instituição. Se todos os componentes díspares de uma organização, desde sua sala de correspondência até sua suíte executiva, supostamente têm o mesmo poder para discutir questões internas, seus executivos terão entregado o controle das informações, e o funcionamento contínuo da organização estará em risco. Apropriar-se dessa igualdade de voz, qualquer que seja a hierarquia administrativa ou a tomada de decisão de uma organização, é o que propriamente a CI entende por delação —um ato particularmente ameaçador para ela, que opera por estrita compartimentagem sob um véu de sigilo legalmente codificado.
Um delator, em minha definição, é uma pessoa que por meio da dura experiência concluiu que sua vida dentro de uma instituição se tornou incompatível com os princípios desenvolvidos na —e com a lealdade devida à— sociedade maior fora dela, à qual essa instituição deveria responder. Essa pessoa sabe que não pode permanecer na instituição e sabe que esta não pode ser ou não será desmantelada. Reformar a instituição pode ser possível; portanto, ele faz a revelação para fazer pressão pública.
Essa é uma descrição adequada de minha situação, com um acréscimo crucial: todas as informações que eu pretendia divulgar eram classificadas como ultrassecretas. Para revelar programas secretos, eu também teria que revelar o sistema maior de sigilo, expô-lo não como a prerrogativa absoluta de Estado que a CI alegava que era, mas sim como um privilégio ocasional do qual ela abusava para subverter a supervisão democrática. Sem trazer à luz todo o escopo desse sigilo sistêmico, não haveria esperança de restabelecer um equilíbrio de poder entre os cidadãos e sua governança. Esse motivo de restauração é o que considero essencial à denúncia: marca a revelação não como um ato radical de dissensão ou resistência, e sim como um ato convencional de sinalização de que o navio está voltando ao porto, onde será desmanchado, reformado e seus vazamentos serão remendados antes que possa começar de novo.
Uma exposição total do aparato de vigilância em massa —não por mim, mas pela mídia, o quarto ramo de facto do governo dos EUA, protegido pela Declaração de Direitos: essa era a única resposta apropriada à escala do crime. Afinal, não seria suficiente revelar apenas um abuso ou um conjunto de abusos em particular, que a agência poderia interromper (ou fingir interromper) enquanto preservaria intacto o resto do aparato sombrio. Por isso, resolvi trazer à luz um fato único e abrangente: meu governo havia desenvolvido e implantado um sistema global de vigilância em massa sem o conhecimento ou consentimento de seus cidadãos.
Os delatores podem ser eleitos por circunstâncias em qualquer nível de operação de uma instituição. Mas a tecnologia digital nos trouxe a uma era na qual, pela primeira vez na história registrada, os mais eficazes virão de baixo, das fileiras tradicionalmente menos incentivadas a manter o status quo. Na CI, como em praticamente todas as outras instituições descentralizadas que dependem de computadores, essas camadas mais baixas estão cheias de tecnólogos como eu, cujo acesso legítimo a infraestruturas vitais é totalmente desproporcional à autoridade formal de influenciar decisões institucionais. Em outras palavras, geralmente, há um desequilíbrio entre o que pessoas como eu pretendem saber e o que temos capacidade de saber, e entre o pequeno poder que temos para mudar a cultura institucional e o vasto poder que temos para mostrar nossas preocupações à cultura em geral. Embora seja possível abusar desses privilégios tecnológicos —afinal, a maioria dos tecnólogos no nível de sistemas tem acesso a tudo—, o maior exercício desse privilégio está nos casos que envolvem a própria tecnologia. Habilidades especializadas implicam maiores responsabilidades. Os tecnólogos que buscam informar sobre o mau uso sistêmico da tecnologia devem fazer mais que apenas levar suas descobertas a público, se o significado dessas descobertas for compreendido. Eles têm o dever de contextualizar e explicar; de desmistificar.
Algumas dezenas de pessoas mais bem posicionadas para fazer isso no mundo todo estavam ali, sentadas ao meu redor no Túnel. Meus colegas tecnólogos chegavam todos os dias, sentavam-se diante de seus terminais e promoviam o trabalho do Estado. Não eram apenas alheios a seus abusos, tinham dúvidas sobre eles, e essa falta de curiosidade não fez deles pessoas más, e sim trágicas. Não importava se haviam chegado à CI por patriotismo ou oportunismo: uma vez que entravam na máquina, eles próprios se tornavam máquinas.
Este texto é um extrato do livro de memórias de Edward Snowden, Eterna vigilância, lançado no Brasil pela editora Planeta.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.