Bolsonaro emula Trump, escala retórica pela polarização e colhe críticas
Presidente volta a apostar no negacionismo histórico sobre a ditadura e questiona Comissão Nacional da Verdade. Aliado de campanha, governador de São Paulo marca distância
O saudosismo pela ditadura é uma constante na longa carreira política do ultradireitista Jair Bolsonaro, mas ele agora é presidente do Brasil. O mandatário questionou abertamente nesta terça-feira a Comissão Nacional da Verdade que documentou as violações de direitos humanos especialmente entre 1964 e 1985. Ele estava sendo perguntado por jornalistas sobre comentários agressivos que fizera na véspera com relação a um militante – pai do atual presidente da OAB ( Ordem dos Advogados do Brasil) – que desapareceu nas mãos dos militares, na década de 1970. Foi então que provocou um jornalista: “Você acredita na Comissão da Verdade? Foram sete pessoas nomeadas pela Dilma”. A presidenta Dilma Rousseff – presa e torturada por pertencer à luta armada contra a ditadura – criou o órgão que estabeleceu a verdade oficial sobre aquele período.
O militar reformado é o representante mais poderoso de um movimento de negacionismo histórico cada vez mais visível. Há alguns meses, ele estimulou os militares da ativa a comemorarem o golpe de Estado de 1964. As últimas declarações têm sua origem em umas palavras que pronunciou na segunda-feira. Bolsonaro afirmou na ocasião que “poderia contar a verdade” sobre o destino do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, que desapareceu após ser detido por agentes durante o regime militar. Entre as personalidades e instituições que questionaram sua atitude destaca-se a Procuradoria dos Direitos do Cidadão, órgão do Ministério Público Federal, que recordou que “o chefe do Estado não pode manter em sigilo informações sobre o paradeiro de um desaparecido político”. “Essa responsabilidade adquire ainda maior relevância no caso de Fernando Santa Cruz, pois o presidente afirma ter informações sobre um crime internacional que o direito considera em andamento”, segue a nota, citando o desaparecimento.
Com as declarações, Bolsonaro recupera agora o tom que o tornou conhecido. Um tom que tinha suavizado ligeiramente desde que assumiu o poder. No momento, parece em uma corrida para imitar seu homólogo norte-americano, Donald Trump, que transformou o insulto racista em uma estratégia de sua campanha para a reeleição. Nesta terça-feira, aliás, o republicano elogiou Bolsonaro chamando-o de “um grande cavalheiro”, com quem pretende “trabalhar em um acordo de livre comércio”. Trump elogiou ainda a indicação do deputado Eduardo Bolsonaro como embaixador nos EUA.
A escalada retórica de Bolsonaro dos últimos dias — o questionamento à Comissão da Verdade é apenas o último dos comentários ofensivos, ameaçadores, enganosos ou simplesmente falsos feitos sobre assuntos diversos— acontece justamente depois de uma série de críticas, até mesmo entre seu seguidores mais fiéis nas redes, à indicação de seu filho deputado para o posto de Washington. A nomeação ainda depende de uma votação do Senado brasileiro que pode ser tornar um termômetro do mau humor até de aliados diante da metralhadora verbal do Planalto. O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que se apressou em marcar distância dos moderados de seu partido de centro-direita e se aproximou de Bolsonaro na campanha eleitoral, fez questão de dizer que a declaração sobre Santa Cruz era "inaceitável".
Só na última quinzena, Bolsonaro mentiu ao acusar a jornalista Miriam Leitão, da Globo, de ter inventado que foi torturada – sendo que de fato foi, quando estava grávida – e insultou os governadores do Nordeste, descrevendo-os genericamente como “governadores de Paraíba”, um termo pejorativo. Também questionou recentemente os dados oficiais sobre desmatamento.
No fim de semana, o presidente sugeriu que o jornalista Glenn Greenwald, cofundador do The Intercept Brasil, o veículo que publicou as mensagens vazadas do ex-juiz Sergio Moro, poderia “pegar uma cana”. Neste último caso, ele recebeu uma crítica indireta inclusive do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, nesta terça-feira. Maia gravou um vídeo pró-Greenwald que foi exibido em um ato no Rio de Janeiro que reuniu militantes e personalidades, como Chico Buarque, em defesa do jornalista do The Intercept. O presidente da Câmara diz nas imagens que Greenwald tem direito ao sigilo de fonte, mesmo se comprovado que o conteúdo a que teve acesso foi fruto de uma ação de um hacker. "Não a favor do Glenn, mas é a favor da nossa liberdade de expressão", disse o deputado.
Debate sobre a ditadura passa pelo Supremo
Nesta terça-feira, Jair Bolsonaro disse que os documentos oficiais da Comissão da Verdade são "balela" e acrescentou que "respeita a Lei da Anistia de 1979", uma norma que libertou milhares de presos políticos, mas eximiu os repressores de serem levados ao banco dos réus. Já há duas decisões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da qual o Brasil faz parte, que obrigam o país a desconsiderar a Lei da Anistia por se tratar de crimes imprescritíveis. Depende do Supremo Tribunal Federal, que reafirmou a lei em 2010 e tem na fila de espera reanálise do caso, a decisão final.
Um dos gestos mais abjetos de sua carreira política foi possivelmente dedicar seu voto no impeachment de Rousseff ao coronel Brilhante Ustra, o torturador da então presidenta. O ódio visceral ao Partido dos Trabalhadores foi um combustível essencial da campanha que o levou a ganhar as eleições.
A Comissão da verdade do Brasil encerrou seus trabalhos há cinco anos com um relatório que ocupa 1.300 páginas, documentando 443 mortos ou desaparecidos, além de apontar 377 responsáveis com nomes e sobrenomes, além dos depoimentos das vítimas. Um dos lugares mais infames da repressão em São Paulo foi transformado em um museu chamado Memorial da Resistência.
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