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Fotografia latino-americana, quando as imagens gritam

A cidade serve de cenário para o desenvolvimento de uma arte renovadora e cúmplice na luta contra os regimes autoritários

Calle Alameda, Santiago, Chile, 1983.
Calle Alameda, Santiago, Chile, 1983.Álvaro Hoppe
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Indo além dos clichês e estereótipos que forjam a identidade da América Latina nas diferentes partes do mundo, existe uma realidade tão diversa quanto contraditória e que, expressa através de sua fotografia, poderia refletir duas características que contribuem para defini-la: sua luta contra os regimes autoritários e seu afã pelo experimental. Sob estas duas particularidades se articula Urban Impulses, uma exposição em Londres que percorre meio século do desenvolvimento da fotografia latino-americana e que inclui figuras relevantes como Graciela Iturbide, Alberto Korda e Sergio Larrain, junto a artistas emergentes como Beatriz Jaramillo e Eduardo Longoni — são quatro os brasileiro da exposição: Luiz Alphonsus, Ayrton de Magalhães, Mario Cravo Neto e Miguel Rio Branco.

Os curadores da exposição, María Wills e Alexis Fabry, quiseram demarcar esta definição centrando-se nos espaços urbanos. Desta forma são 73 os artistas — pertencentes à coleção de Leticia e Stanislas Poniatowski, e representados em 200 imagens — que capturaram esse instante destinado a passar despercebido ou encontraram inspiração para sua obra na frenética coreografia da cidade. “A experiência das ruas urbanas, das luzes piscantes, do fluxo dos transeuntes, o ritmo da atividade, seu som e aroma, sua atmosfera, tudo isso se transforma no objeto do olhar fotográfico”, escrevem os curadores no catálogo que acompanha a mostra.

Dividida em dois capítulos que dialogam entre si, Shouts (gritos) e Pop-ular, a exposição começa em 1959, com a Revolução Cubana, e vai até 2016. “Na América Latina, a fotografia funcionou como testemunho e como forma de afirmar posições políticas para combater os regimes autoritários”, observa Alexis Fabry. “Citemos como exemplo o Chile, onde na época de Pinochet houve toda uma geração de fotógrafos que optaram pela fotografia como meio de expressão devido ao contexto político que os cercava. Claudio Pérez e os irmãos Montecino provavelmente nunca teriam sido fotógrafos se não fosse por essa conjuntura. Há pouquíssimos casos de contextos que geraram fotógrafos, e este é um deles”. Da mesma forma, a mostra põe ênfase “no fecundo diálogo estabelecido desde o modernismo entre a vanguarda e a cultura popular. Em ambos os capítulos fica claro o aspecto experimental do meio. Assim, propusemos uma definição da fotografia ampla e pouco ortodoxa, que inclui outros formatos, como a colagem e a serigrafia”.

Diego Levy capta a violência das manifestações de 2003 na Cidade do México; Jaime Rázuri reflete o lamento do povo peruano expresso em um grafite; Álvaro Hoppe documenta a tensão vivida nas ruas de Santiago nos anos setenta e oitenta; nas colagens de Enrique Bostelmann, os líderes revolucionários se misturam a crianças e camponeses; e Agustín Martínez Castro nos conduz à intimidade dos camarins de travestis pouco antes do seu show. “Desde a Revolução Cubana se estabeleceu uma espécie de tradição pela qual para denunciar era necessário mostrar. Era necessário refletir a agressão, o medo e o sofrimento de forma realista. Entretanto, a partir dos anos noventa, os fotógrafos começam claramente a estabelecer estratégias oblíquas. Assim, encontramos a colombiana María Elvira Escallón, que evoca de forma metafórica a grande violência que sacudiu a Colômbia nos anos cinquenta.”

“A América Latina é um pastiche do passado e do presente, do local e do internacional”, escrevem os curadores. As obras são, portanto, o resultado desta condição híbrida, “desgarrada entre o mundo pré-hispânico, a experiência pós-colonial e os incorporadores capitalistas que implacavelmente invadiram o processo de consolidação das cidades. O caos atua como uma força de emancipação”. Desta forma, embora a iconografia pop tenha sido assimilada no comércio e na publicidade marcando a identidade visual das cidades, o popular não é um reflexo direto de um modelo consumista, mantendo, em vez disso, um significado adaptado a seu contexto, mediante uma constante simbiose entre o vernáculo e o externo.

“A experimentação é chave por muitos motivos”, afirma Fabry. “O primeiro é a escassez de meios. A isto se soma que não existe o peso de uma fotografia ortodoxa, como ocorre nos Estados Unidos, onde há um cânone de como ela deve ser composta, iluminada etc.. A colagem e a fotocópia se tornam opções mais realistas para trabalhar. Para muitos artistas, como o Grupo Suma do México, a materialidade da obra se torna uma zona de combate, o suporte se transforma num território de confronto, e os raspões, as massas de pintura e outras alterações viram parte dessa obra.” A liberdade na hora de criar também vem dada pelo aspecto autodidata da maioria dos artistas. “Inclusive Miguel Ángel Rojas, cuja obra foi muito celebrada nos anos setenta, não teve uma formação de fotógrafo, e quando registrava os encontros homossexuais no teatro Faenza de Bogotá o fazia com uma pequena câmera escondida no casaco. Todo o acidental que isto gera se torna obra”, aponta o curador.

A fotografia vernácula tem uma presença importante na exposição. Inclui a obra do peruano Nicolás Torres, que nos anos noventa trabalhava como pedreiro e que é parte de uma geração que foge do campo para a cidade. Fotografava as festas noturnas e no dia seguinte expunha as fotos na sua casa, penduradas com alfinetes, deixando-as à disposição dos retratados. “Ele ficava com as fotos que as pessoas não queriam”, conta Fabry, “justamente as mais interessantes, as mais comprometidas. Isto é um reflexo da escassez de meios em comparação à Europa, onde nessa época já era muito raro que alguém tivesse que comprar um retrato de um profissional”. A mudança do analógico para o digital e a Internet fizeram que, “em termos fotográficos, a sintaxe latino-americana se tornasse cada vez menos específica e o caráter experimental tenha diminuído, embora nem por isso deixem de ser bons fotógrafos”.

E quanto à presença da mulher? “Os fotógrafos com mais exposição hoje em dia na América Latina talvez sejam Paz Errázuriz e Graciela Iturbide”, observa o curador. “Não acredito que isto realmente reflita a situação real da mulher na fotografia latino-americana, onde evidentemente há mais homens que mulheres, mas quero pensar que é um bom sinal.”

É algo recente que a América Latina se veja incluída na grande historia da fotografia escrita sob o cânone europeu e norte-americano. “Eu comparo este apetite atual por parte das instituições norte-americanas ao que ocorreu há duas décadas com o Japão”, observa Fabry. “De repente, toma-se consciência de uma fotografia diversificada e de enorme riqueza, com um caráter experimental forte. Mas acredito que em alguns anos este apetite pela novidade será menor, embora a fotografia latino-americana deva encontrar um espaço mais confortável.”

Urban Impulses: Latin American Photography from 1959-2016. The Photographer's Gallery, Londres, até 16 de outubro.

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