Não seja cínico; o cinismo é causa e ao mesmo tempo efeito da saúde frágil
Não o faz ser mais intelectual, irônico e satírico, e pode tirar anos de sua vida
Você é dos que pensam que seu animal de estimação só gosta de você porque o alimenta e seus filhos porque paga seus caprichos. Não confia nas ONGs, diz que todos os que pedem esmola irão gastá-la em drogas e quando seu colega de trabalho desabafa contigo falando da doença de seu pai, simplesmente vê um homem que quer causar dó para mudar de turno. Além disso, não acredita que vegetais e frutas são fontes de saúde porque imagina que por trás há um poderoso grupo de pressão que paga para que essas informações surjam e, evidentemente, o vizinho tem tanta intimidade com sua mulher porque na realidade ela deve estar te traindo.
Você acha que os ricos são ricos porque roubaram, os bonitos são burros e nem sequer quer continuar lendo isso porque certamente por trás desse artigo se esconde uma conspiração para forçar você a pensar como os outros. Se você se identificou com a maioria dessas afirmações, parabéns!, é um autêntico cínico. Mas não fique contente porque não há nada a comemorar. Ser um cínico pode prejudicar seriamente a saúde. Se é um deles, provavelmente não acreditará em nada do que ler aqui, mas, ainda assim, é preciso alertar: pensar com toda naturalidade que o egoísmo é o verdadeiro motor que guia o comportamento humano pode causar doenças tanto físicas como mentais (que nem sempre sabemos como mencionar).
Maior risco de mortalidade e menor poder aquisitivo
Ao longo dos anos, várias pesquisas projetaram um futuro um tanto pessimista em termos de saúde aos cínicos, pois associaram essa visão negativa da natureza humana com um maior risco de mortalidade, menor bem-estar psicológico, diminuição da autoestima e até menor poder aquisitivo. Tudo isso confirma que a maneira como vemos o mundo definitivamente afeta a nós mesmos, e se o olhamos sempre com hostilidade, isso no final se volta contra nós.
Agora uma recente pesquisa nos traz novos dados. É um estudo feito por dois psicólogos sociais, Daniel Ehlebracht, da Universidade de Colônia, e Olga Stavrova, da Universidade de Tilburg. Após analisar dados de 40.000 pessoas, os pesquisadores concluíram que o cinismo não só é a causa da saúde frágil, como também pode ser a consequência. Esse trabalho mostra como a deterioração da saúde leva a limitações na vida cotidiana, a uma maior dependência dos outros e a uma sensação de não ter controle sobre a própria vida. Tudo isso faz com que as pessoas que sofrem com isso aprendam a criar estratégias de autoproteção, como a desconfiança e a hostilidade, dando lugar a uma visão cínica do mundo.
A psicóloga Mercedes Bermejo explica dessa forma: “A má saúde física gera um mal-estar na pessoa que lhe afeta em sua percepção da vida, sendo essa menos otimista, adquirindo uma atitude de desprezo em relação às convicções sociais, as normas e os valores morais. Mas é preciso matizar. Um episódio depressivo transitório não é a mesma coisa que uma doença crônica e grave. Essa última gera uma sensação de indefensibilidade, desespero e falta de esperança, que passa a outras situações da vida que não têm a ver com a doença. Por exemplo, pensar que, se tive essa doença incurável certamente também podem me ocorrer outras coisas ruins e, para me defender dessa sensação o melhor a fazer é me proteger e pensar que nada de bom pode acontecer comigo. É um mecanismo de defesa ou, melhor dizendo, de sobrevivência”.
Chama a atenção como, na introdução do mencionado estudo, os psicólogos lembram das grandes mudanças de caráter sofridas por Henrique VIII após o grave acidente durante um torneio de justas. Alguns neurologistas ao longo da história ligaram seu tirano e paranoico comportamento ao profundo traumatismo cranioencefálico que sofreu. Esses dois especialistas, entretanto, apontam a possibilidade de que seu cruel e sádico cinismo foi consequência de viver em estado perpétuo de dor, após as sequelas físicas e as graves dores sofridas após o acidente. É possível, no final das contas teria seu lado romântico. Não é a primeira vez que se associa o cinismo a personagens históricos, e às vezes o cinismo aparece envolto em um halo de certa intelectualidade, já que é associado a pessoas com muito talento à sátira e com uma irônica acidez em seu discurso, algo que acaba por se tornar atrativo. Pelo menos são personagens que, mesmo sendo evidente que desprezam os outros, acabam agradando. Mas é uma miragem.
Intelectuais? É o que alguns deles acham
Por mais que personagens como Bernard Shaw definissem o cinismo como “um poder de observação precisa”, que o filósofo e economista Stuart Mill considerasse que “era essencial para um homem que tem algum conhecimento do mundo ter uma opinião extremamente ruim dele” e que um bom roteiro nos faça simpatizar com Frank Underwood, de House of Cards, um estudo mostrou como os indivíduos menos competentes academicamente eram os que mostravam uma visão mais cínica do mundo.
Talvez agora você esteja um pouco confuso, porque não é a primeira vez que alguém te diz “é um cínico”, mas, entretanto, você não se identifica com todas essas características. O motivo é que hoje em dia muitas vezes se confunde o termo cínico com hipócrita, mas não é a mesma coisa. Um hipócrita na verdade não acredita no que está dizendo e quando é pego na mentira (não se deve dizer mais de duas por dia), se envergonha. Além disso, normalmente aceita os convencionalismos sociais. O cínico não sente essa vergonha e em seu discurso sempre tenta destruir todo convencionalismo, para ele baseado em mentiras. Nesse sentido, se aproxima mais da definição original do cínico, que eram aqueles gregos, em sua maioria filósofos, que optaram por levar uma vida demonstrando no que acreditavam, que as coisas materiais não eram importantes. E o levavam à risca, como Diógenes, o principal expoente dessa filosofia, que vivia nas ruas e se alimentava do que lhe davam, mas com a soberba de saber que levava uma vida que para ele era superior à dos outros, desprezando o restante dos indivíduos.
E o que faz uma pessoa se comportar assim? Por acaso essa atitude é herdada? “Esse tipo de atitude se aprende, se cria através das aprendizagens da vida. Seja pela falta de confiança e segurança, seja como mecanismo de defesa diante de situações que podem ser vividas como hostis quando na verdade não são. Crescer em um entorno hostil, de violência, falta de contenção e segurança altera e distorce as crenças sobre a vida. Não ter um pensamento positivo sobre o que vai acontecer, falta de confiança nas outras pessoas, pode efetivamente ser aprendido através dos pais, porque são as referências primárias na infância, mas também pode ser gerado por um trauma, um acidente e doenças subsequentes, viver em países em guerra e em plena sobrevivência, e a um nível menor ter vivido situações de crise não resolvidas e lutos não elaborados adequadamente”, diz Bermejo. E isso não é totalmente ruim; significa que sempre se está em tempo de mudar essa atitude.
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