_
_
_
_

Seleção da Venezuela afaga o coração dos exilados da crise

Blindada contra política, La Vinotinto sonha com triunfo histórico na Copa América em solo brasileiro

Seleção venezuelana estreou contra o Peru na Copa América.
Seleção venezuelana estreou contra o Peru na Copa América.AFP

Eles saíram de Puerto la Cruz, no norte da Venezuela, atravessaram o Brasil e se estabeleceram em São Leopoldo para driblar a convulsão político-econômica que há pelo menos cinco anos abate seu país. Da pequena cidade no Rio Grande do Sul, partiram rumo a Porto Alegre para acompanhar a estreia da seleção venezuelana na Copa América. “É um orgulho vir ao estádio apoiar nossa seleção”, diz o técnico de elevadores José Jaramillo, de 31 anos. “Não poderíamos perder essa oportunidade”, complementa o amigo Daniel Pino, 30. “Somos um povo apaixonado por futebol.”

Mais informações
A gentrificação que explica os estádios vazios
Renda recorde, torcida apática
A seleção que despreza sua gente

Mas a paixão exaltada por Pino nunca foi uma febre nacional como agora. Adversária do Brasil nesta terça-feira, a Venezuela sempre se destacou como “o país do beisebol” na América do Sul. Por lá, o futebol só se tornou um esporte notado no fim da década de 50, mas sem nenhuma devoção. Por décadas, a seleção conhecida como La Vinotinto acostumou-se ao papel de saco de pancadas nas competições continentais. No início dos anos 2000, porém, a chave começou a virar.

Em 2002, pela primeira vez não terminou as Eliminatórias para a Copa do Mundo como última colocada, vencendo quatro jogos na reta final. Os investimentos do governo no futebol aumentaram consideravelmente durante os mandatos de Hugo Chávez. Em 2007, o país gastou mais de 700 milhões de dólares para sediar a Copa América. Viu sua seleção chegar às quartas de final, com estádios superando a média de 40.000 torcedores por partida. O sucesso da competição não serviu para turbinar a liga local, que ainda sofre com infraestrutura precária e equipes semiamadoras, mas ajudou a impulsionar a popularização da modalidade.

Jaramillo atribui à passagem de Richard Páez pelo comando da Vinotinto o divisor de águas para o futebol venezuelano. Ele dirigiu a seleção entre 2001 e 2007. Seu legado, muito além dos resultados, foi ter sistematizado as categorias de base no país e promovido uma renovação com vários jovens jogadores. “A semente plantada”, segundo Pino, seguiu dando frutos. A equipe alcançou suas melhores campanhas nas Eliminatórias para os Mundiais de 2010 e 2014, além de um quarto lugar na Copa América 2011. Porém, a fonte dos petrodólares, que já não era tão generosa quanto no início do chavismo, secou. Os clubes locais ficaram ainda mais fragilizados, e jogadores passaram a buscar destinos internacionais como refúgio à crise no país.

Como não se contaminar pelo turbilhão político, econômico e social que domina o noticiário? A seleção venezuela adquiriu uma espécie de “blindagem anticrise”, como explica o meia Seijas, que jogou duas temporadas no Brasil – por Internacional e Chapecoense – e hoje atua no Santa Fe, da Colômbia. “Deixamos nossas diferenças de lado e trabalhamos unidos por um objetivo. Isso é o que nós queremos transmitir para o nosso país.” Ele é um dos jogadores mais críticos ao regime de Nicolás Maduro. Já manifestou sua contrariedade com o governo boliviariano, que qualifica como “ditadura criminosa”, e não hesita em reivindicar a saída imediata do poder de Maduro e seus apoiadores. “Sempre demonstrei o que eu penso”, disse após o empate com o Peru na Arena do Grêmio, em Porto Alegre. “Nós jogamos para as pessoas, não para o Governo. Não tem como esconder o que acontece lá. É necessária uma mudança, já deu.”

Maior artilheiro da história da seleção, Salomon Rondón também engrossa o coro de jogadores oposicionistas a Maduro, mas adota um discurso mais comedido. “Antes de jogador, sou um ser humano que sente muito a situação do nosso país. Tudo o que queremos é fazer com que as pessoas se esqueçam por algumas horas do que estão vivendo”, afirma o atacante do West Bromwich, da Inglaterra. “Jogar pelos venezuelanos” e “dar alegria ao povo” são respostas mais comuns entre os integrantes da Vinotinto ao falar sobre a crise no país, em especial o técnico Rafael Dudamel.

Daniel Pino e José Jaramillo foram à Arena do Grêmio torcer pela Venezuela.
Daniel Pino e José Jaramillo foram à Arena do Grêmio torcer pela Venezuela.B.P.

Ex-goleiro da seleção, ele assumiu o comando do time em 2016 e é o responsável por apagar vários incêndios internos, como administrar a relação entre jogadores insatisfeitos com o governo e a federação do país, controlada por dirigentes ligados a Maduro. Também coordena as seleções de base. No Mundial sub-20, em 2017, conduziu os venezuelanos a uma inédita final, em que acabaram derrotados pela Inglaterra. Após seu time superar o Uruguai na semifinal, Dudamel fez um duro desabafo contra o presidente, exigindo um cessar-fogo à repressão de protestos que deixou mais de uma centena de mortos.

Desde a repercussão da fala, o treinador tem evitado críticas públicas ao governo. Em março deste ano, quando a Venezuela bateu a Argentina, de Lionel Messi, em Madri, ele recriminou a tentativa de uso político da visita de um embaixador vinculado a Juan Guaidó, presidente reconhecido por diversos países, por se aproveitar de uma vitória da seleção para se promover. Na Copa América, alheio às disputas pelo poder, o ex-goleiro se esforça para convencer seus jogadores de que a Vinotinto deve ser protagonista no torneio.

O retrospecto recente é animador. Conquistou quatro vitórias e três empates nos últimos oito amistosos. Na estreia, contra o Peru, teve um jogador expulso, mas conseguiu segurar o empate. Confiante, a Vinotinto agora sonha desbancar a seleção brasileira em seus domínios numa competição oficial. “Entendemos o favoritismo do Brasil, mas nós acreditamos que é possível vencê-la”, afirma Seijas, destacando a rodagem de um elenco em que apenas dois jogadores atuam no futebol venezuelano. “Não temos medo de jogar. Fomos preparados desde a base para os grandes confrontos. Ter muitos atletas jogando no exterior nos dá confiança e, também, tranquilidade, já que não vivenciamos tão de perto os mesmos problemas do dia a dia que nossos compatriotas.”

Apesar do distanciamento, os venezuelanos dizem se sentir muito bem representados pelos jogadores da Vinotinto. Em minoria no estádio em Porto Alegre, era visível a emoção dos torcedores por estarem próximos dos ídolos. “Esse é um time que se identifica com o povo”, diz José Jaramillo, batendo sobre o escudo em sua camisa. Para o zagueiro Mikel Villanueva, que joga no futebol espanhol há quatro temporadas, o sentimento de representatividade tem a ver com o fato de a seleção não assumir nenhuma bandeira política. E de se entregar em campo como se, fora dele, não houvesse tantos problemas. “É uma honra ainda maior representar o país nesse momento de dificuldade para todos os venezuelanos. Queremos deixar a alma por eles.”

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_