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Seymour Hersh: “Julian Assange fez o que eu faço, pedir às pessoas que me deem informação secreta”

Jornalista norte-americano acaba de lançar ‘Repórter’, autobiografia que no Brasil sai pela editora Todavia. “Sou um sobrevivente da era de ouro do jornalismo”, afirma em entrevista ao EL PAÍS.

Amanda Mars
Seymour Hersh, na segunda-feira, em seu escritório em Washington.
Seymour Hersh, na segunda-feira, em seu escritório em Washington.XAVIER DUSSAQ

O escritório de Seymour Hersh (Chicago, 82 anos) é tudo o que um fanático pelo jornalismo poderia desejar: pequeno, austero e desordenado, com dezenas e dezenas de pastas empilhadas no chão. Fotos em preto e branco, arquivos, jornais amarelados. Alguns prêmios estão pendurados na parede junto a resenhas de seus livros, uma máquina de escrever antiga repousa sobre um armário, e sua bolsa de trabalho, uma pasta de couro marrom gasto, se oculta sob muitos papéis. Hersh não grava entrevistas nem digitaliza os contatos, para proteger suas fontes. Se não fosse pelo computador de mesa, pareceria uma viagem no tempo até meio século atrás. Na época, Hersh, com pouco mais de 30 anos, revelou a barbárie de My Lai, durante a guerra do Vietnã. Ganhou o Pulitzer. Depois investigaria o Watergate, exploraria o lado sórdido dos adorados Kennedy e tornaria públicas as torturas em Abu Ghraib, no Iraque.

Hersh fala como uma metralhadora, salta com vara de um assunto a outro, intercala frases estrondosas, que exigiriam uma elucidação, mas o levam a outra galáxia temática, de onde custa trazê-lo de volta. Está divulgado seu livro de memórias, Repórter (Todavia), escrito por acidente: tinha contrato para um livro sobre Dick Cheney, mas suas fontes se intimidaram na última hora, por causa da cruzada do Governo contra os vazamentos. Em vez de devolver o adiantamento à sua editora, preferiu falar de si mesmo. Hersh é considerado, junto com Bob Woodward, o grande jornalista investigativo da sua geração, ou melhor, de várias. Flagelo das versões oficiais, seu negócio são os peixes grandes: de Kissinger a Bush, de Nixon a Obama.

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Perguntado sobre por que não escreve a respeito de Trump, remete à sua investigação sobre os ataques com gás sarin em 2017 na Síria, que Washington e outras grandes potências atribuíram a Bashar al Assad. “Escrevi uma reportagem dizendo que havia muitas razões para achar que não havia sido a Síria, mas não saiu nos EUA”, lamenta. “Assim são as coisas, é muito louco, tenho coisas melhores a fazer do que lutar contra a imprensa que quer se aferrar ao que acredita.”

Suas pesquisas sobre os ataques químicos de 2013 também geraram receios, mas o grande divórcio entre o velho sabujo e os editores norte-americanos ocorreu em 2015, quando desmentiu a versão oficial sobre a morte de Osama Bin Laden. Escreveu que o líder terrorista estava detido no Paquistão desde 2006, que a Arábia Saudita pagava o cativeiro e que, quando Washington descobriu isso, pactuou com Islamabad para poder executá-lo. Nem a The New Yorker nem o The New York Times, meios nos quais Hersh tinha trabalhado, quiseram publicar o artigo, que saiu na London Review of Books e acabou sendo muito questionado por causa do uso de fontes anônimas ou indiretas.

“Permitirei com prazer que a história seja o juiz da minha obra recente”, escreve no livro. Mas a história pode não lhe dar essa oportunidade. Em jornalismo, ter a verdade não basta, é necessário prová-la. E nem as lendas do ofício se livram disso.

Hersh leva as mãos à cabeça diante das novas acusações dos EUA contra Julian Assange. O fundador do Wikileaks já não é réu apenas por conspirar para entrar nos computadores do Pentágono; desde maio, pesam sobre ele 17 novas acusações por divulgar material secreto. Aplicar contra ele a Lei de Espionagem de 1917, que é a novidade neste caso, abre um debate sobre a Segunda Emenda da Constituição, que protege a liberdade de imprensa. Depois dos chamados Documentos do Pentágono, em 1971, os jornalistas ficaram protegidos; a Justiça podia punir o vazamento de material sigiloso, mas não a sua publicação. “Assange fez o que eu faço para ganhar a vida: pedir às pessoas que me deem informação secreta”.

Filho de imigrantes judeus da Europa Oriental, Hersh foi criado num bairro operário de Chicago, onde seu pai era gerente de uma tinturaria. Estudou alguns trimestres de Direito, com pouca vocação, e foi trabalhar em uma farmácia da rede Walgreens até que, através de um amigo, soube de vagas para aprendiz de jornalista e tentou a sorte na agência de notícias da cidade.

Hersh se sente, como conta no livro, “um sobrevivente da era de ouro do jornalismo”. “Nós, que trabalhávamos na imprensa escrita, não tínhamos que competir com canais de notícias 24 horas, os jornais nadavam na abundância graças ao faturamento publicitário e aos anúncios classificados, e eu tinha liberdade para viajar aonde e quando quisesse.”

As mais de 400 páginas de suas memórias refletem esse estilo de trabalho sob ameaça de extinção e incluem episódios surpreendentes, como quando Lyndon B. Johnson defecou na estrada na frente de um jornalista do Times, Tom Wriker, para lhe mostrar desprezo por sua “análise jornalística”, ou a notícia que não escreveu, sobre os maus tratos infligidos pelo presidente Nixon à sua esposa, algo do que se arrepende.

Tem um filho repórter, a quem não dá conselhos. “Nunca me fala do seu trabalho, e eu não queria que se dedicasse a isto”. Por quê? “Pela dureza.” Já aos repórteres que não são seus filhos ele recomenda que “leiam antes de escrever e que saiam do meio da história”.

Lamenta a aproximação entre jornalistas e políticos e o fascínio pelos governantes, mas o que mais o preocupa, diz, é a economia desse setor. “Não há dinheiro, já não se pode gastar tanto em uma reportagem; o jornalismo de investigação não está morto, veículos como o The New York Times fazem coisas, mas têm muitas dificuldades.” Também critica a ênfase que a mídia norte-americana dedicou à ingerência da Rússia nas eleições. “Digo que há uma contra-história aí.” O velho sabujo, soterrado por papéis em seu pequeno escritório de Washington, continua faminto por furos.

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