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Morre Clóvis Rossi, o mestre de várias gerações de jornalistas brasileiros

Colunista da 'Folha de S. Paulo' morreu nesta sexta ao 76 anos. Destacou-se por seu trabalho como repórter de Política, enviado especial e correspondente. E também por sua generosidade

Clóvis Rossi, jornalista da 'Folha de S. Paulo'.
Clóvis Rossi, jornalista da 'Folha de S. Paulo'.Sergio Pedreira (EFE)

Clóvis Rossi tinha 76 anos e uma coluna no jornal Folha de S. Paulo, mas nunca deixou de ser repórter. "Reportagem é a melhor versão da verdade", disse recentemente o veterano jornalista que não queria ser chefe. Na profissão desde 1963, Rossi morreu na madrugada desta sexta-feira em sua casa. Estava se recuperando de um ataque cardíaco que teve uma semana antes, como ele mesmo revelou na quarta-feira em uma coluna intitulada Boletim Médico. Contou a seus fiéis leitores o motivo de sua ausência e detalhava como tinham sido as operações. Garantia que não era grave e que pretendia voltar à rotina de trabalho na semana que vem. "Agradecimento também aos companheiros da Folha que me ampararam e até mentiram dizendo que estavam sentindo minha falta”, concluía, com o humor de sempre, o artigo. Ninguém imaginava que seria seu último.

Vários jornalistas de diferentes veículos e gerações relataram nas primeiras horas desta sexta-feira quão importante Rossi tinha sido em sua vida profissional. "Sensação de orfandade, como se tivesse morrido o adulto da sala, ou cara que foi modelo para a minha geração", escreveu o repórter do Nexo João Paulo Charleaux. Há algo em que todos concordam: a generosidade. Não era só um jornalista admirável, que escrevia rapidíssimo textos muito compreensíveis sobre temas densos, sem ser simplista, mas também uma pessoa maravilhosa que sempre dava uma mão aos colegas. Incluindo os mais jovens, aos quais gostava de ensinar. "Devo tanto a ele. Me mandou esta mensagem na quarta: 'Pata, foram quatro [stents], um coração novo, mas o mesmo amor por você'. Difícil parar de chorar", contou a ex-correspondente e colunista da Folha Patricia Campos Mello no Twitter.

Rossi começou sua  carreira em 1963, um ano antes do golpe militar no Brasil, e trabalhou em jornais como O Estado de São Paulo, Correio da Manhã e Jornal do Brasil. Escrevia na Folha desde 1980 e era membro de seu conselho editorial. Tornou-se uma referência da casa e da renovação jornalística que na época empreendia, destacando-se pelo trabalho como repórter de Política, enviado especial a todas as partes do mundo e correspondente na Argentina e na Espanha. A Folha recordou em seu obituário que, para ele, a melhor reportagem seria a seguinte. Mas tinha um orgulho especial pela cobertura que fez da transição espanhola —também é mítica sua cobertura em 2004 do ataque terrorista em Madri. Sempre manteve uma relação próxima com a Espanha: seus times de futebol eram o Palmeiras e o Barcelona; seus jornais favoritos, a Folha e o EL PAÍS, que devorava todos os dias e citava com frequência em sua coluna. Chegou a escrever no blog Algo Mais que Samba, deste jornal. Quando em 2013 foi criado o EL PAÍS Brasil, nossa edição brasileira, foi convidado para ser colunista, mas teve de rejeitar por conta do contrato de exclusividade que mantinha com a Folha. "Sinto como se estivesse dizendo não ao Barcelona", lamentou na época.

Rossi também cobriu a Revolução dos Cravos, em Portugal, e fez história como correspondente na Argentina ainda durante a última ditadura militar. Viveu e relatou tantos golpes e transições democráticas, incluindo a do Brasil, que há um elemento essencial presente em todos os seus textos: o apreço pela democracia.

Seu período na Argentina também serviu para ampliar o olhar para os vizinhos latino-americanos e estabelecer o país como o pilar de qualquer cobertura internacional dos jornais brasileiros. A estreita relação com a América Latina –não só entre Brasil e Argentina– resultou nos prêmios Maria Moors Cabor, da Universidade Colúmbia, e o da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano, da Fundação Gabriel García Márquez. No entanto, sua longa jornada deu a ele uma visão cética e desapaixonada dos fatos. Mesmo nos períodos de maior otimismo na região, como durante a onda de esquerda na primeira década dos anos 2000.

Era amado pelos focas, com quem sempre foi generoso. Assim como foi aberto com os colegas mais novos e mais velhos durante toda a carreira. A sorte do dia de um trainee da Folha era calhar em uma pauta com ele. A sorte dos já profissionais, especialmente dos correspondentes e enviados especiais, também. O orgulho de estar sob a sombra de seus quase dois metros de altura estalava quando um diplomata ou grande nome dos governos brasileiros e estrangeiros, especialmente na América Latina, faziam questão de parar para falar com ele nas coberturas e halls de hotéis, numa inversão de papéis. Raramente anotava, escrevia rápido como ninguém, diante dos olhares admirados. Era uma performance tão desconcertante que restava aos assistentes repetir a si mesmo: "Não tentem repetir isso em casa, crianças".

Clóvis Rossi foi acima de tudo um mestre de jornalistas, uma referência constante a quem se dedica ou quer se dedicar a esta profissão. Em seu livro O Que é Jornalismo, obrigatório nas universidades, explica que de nada serve a melhor preparação se não vier acompanhada de um valor essencial: a honestidade. Argumentava que as condições precárias a que muitos jornalistas estão submetidos não são uma desculpa para renunciar à nossa responsabilidade. Porque o jornalismo, dizia, não é um ofício técnico, mas uma função social relevante. "O dever fundamental do jornalista não é para com seu empregador, mas com a sociedade. É para ela, e não para o patrão, que o jornalista escreve”, ensinava.

Alternava períodos cobrindo política brasileira e política internacional, à qual se dedicou nos últimos anos como enviado especial em viagens presidenciais ou a cúpulas internacionais —sobretudo a de Davos— e em suas colunas. Explicava o mundo aos brasileiros e fazia isso como ninguém. Com os anos passou a trabalhar no nono andar do edifício da Folha, onde fica o setor de Opinião do jornal. Era festejado nas vezes em que descia, passeando entre as baias, discutindo a conjuntura, contando episódios. Ao contrário do que escreveu na quarta-feira, sua falta será sentida.

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