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Use minha mansão até sua morte

Donos de apartamentos caros em grandes cidades espanholas vendem suas propriedades a menor preço e permanecem como usufrutuários até a morte, como forma de complementar a aposentadoria

Mulher observa anúncio de uma moradia em um site imobiliário.
Mulher observa anúncio de uma moradia em um site imobiliário.Luis Sevillano
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O anúncio descreve um apartamento moderno e elegante no coração do bairro do Argüelles, no centro de Madri. Seus janelões oferecem vista de 360 graus sobre a capital espanhola. Destaca-se a pintura lisa das paredes, o assoalho de jatobá, o estuque na sala, as portas maciças laqueadas de branco. O valor da propriedade beira os dois milhões de euros (quase nove milhões de reais). A senhora de pantufas que prepara macarrão na cozinha vem incluída no pacote.

Ana María, de 70 anos, vende este lindo apartamento como nua-propriedade, ou seja, o comprador o adquire com a condição de que ela permanecerá vivendo nele até sua morte. Esse tipo de transação se popularizou nos últimos anos nos bairros mais humildes das grandes cidades espanholas, como um modo de combater a precariedade dos pensionistas, mas cada vez mais começa a ser uma opção também para ricos que querem manter seu alto nível de vida até o final.

A moradora, que nesta manhã prepara o almoço para um dos seus filhos que está por chegar, não tinha coragem de se desfazer da casa onde vive há 20 anos. Aqui passou os melhores anos de sua vida. O balcão forrado de couro na cozinha americana testemunhou as melhores festas realizadas num raio de vários quarteirões.

Retirar suas coisas e ver outros ocupando os cômodos onde sua existência transcorreu a destroçaria por dentro, conta ela enquanto passa do hall para a sala de estar, da sala de estar para a sala de jantar, e de lá para as suítes. Por isso conversou com seu marido e concluíram que essa poderia ser uma opção para cobrir certas dívidas que se arrastam e passar uma velhice cômoda. Sem sobressaltos, porque “numa casa como esta, cada vez que chega um boleto você leva um belo de um susto”.

Casa em venda em nua-propriedade por Engel & Volkers.
Casa em venda em nua-propriedade por Engel & Volkers.Engel & Volkers

A redução no preço depende da idade do vendedor. Calcula-se pelo valor de um aluguel, multiplicado pelos anos que os proprietários podem chegar a viver. Com alguém na faixa dos 70 anos, como no caso de Ana María, a redução pode ficar em 40%. Aos 80, de 30%, e com 90 ou mais, é de no máximo 20%. “Muita gente tem filhos maravilhosos, mas outros nem tanto. Por um lado, você resolve esse problema de herança, e se quiser gasta você mesmo o dinheiro no que quiser. É um complemento fenomenal para a aposentadoria", diz Ignacio Pérez-Portabella, diretor de divisão da Engel & Volkers, em Barcelona, onde essa imobiliária de alto padrão já mediou várias transações desse tipo.

“Na nossa empresa, o número de operações de nua-propriedade cresceu em torno de 300% em apenas um ano”, afirma Eduardo Molet, um especialista imobiliário que utiliza campanhas de marketing agressivas, no estilo americano — muitos madrilenhos reconhecem seu rosto das placas comerciais. “Os bairros onde há mais demanda são bairros mais caros, como Salamanca, Chamberí e Chamartín.”

Molet explica que a Espanha é um país de proprietários, e a maior parte da riqueza das famílias está em imóveis. Essa tradição acarretou contratempos após o estouro da bolha imobiliária, mas o fato é que é uma vantagem para os idosos — mesmo para os mais ricos. Essa modalidade é uma forma de acabar com a imagem clichê de um velho marquês bebendo vinho barato num palacete com goteiras, porque não tem suficiente dinheiro vivo.

Às vezes são os próprios filhos que incentivam o negócio. Katherine e Elisa herdaram o apartamento da sua mãe, Adelfa, de 88 anos, que se diverte ao entardecer vendo os aviões da janela da sua casa, na movimentada rua Arturo Soria. Suas filhas não querem morar aqui depois que sua mãe morrer, e dividi-lo tampouco é uma opção. Por isso, dizem que decidiram vendê-lo antes da hora por 860.000 euros (3,8 milhões de reais). Elisa, de 59 anos tem planos de negócios com uma amiga, e sua irmã é uma grande executiva que não tem interesse em viver neste apartamento de estilo clássico.

As irmãs nasceram na Suíça, mas passaram grande parte da vida em Cuba, até que a revolução as expulsou para a Espanha. Ela diz que este método de venda em nua-propriedade atualmente é muito popular na Espanha, e que, mesmo vendendo mais barato, é possível ter dinheiro na mão imediatamente. Nada impede que, dentro de alguns anos, o idoso se mude para um asilo e a compra total seja antecipada. Adelfa tem a casa abarrotada de fotografias que narram uma vida feliz junto a seu marido e suas filhas.

As vantagens para o vendedor são que ele deixa de arcar com o IBI (o IPTU espanhol) e com os gastos extraordinários do condomínio, além de reduzir o gasto do seguro. Além disso, goza de um abatimento ao declarar o imposto de renda. O comprador, por sua vez, adquire o imóvel abaixo do preço de mercado e, segundo a lei, tem direito a recebê-lo em boas condições. Visto de outro modo, é como comprar o imóvel a preço de mercado, mas garantir antecipadamente o recebimento de um aluguel. O destino escolhe quem tira mais proveito da situação, como ocorre com os seguros de vida.

No caso de María não existem herdeiros. Bom, sim, pelo lado do seu marido, mas a verdade é que não lhes tem muito apreço. Por que então deixar que eles herdem este belo sobrado com vista para um castelo medieval? Para ela, este pedacinho de chão é o paraíso. “É uma casa maior. Não gostaria de morar aqui sozinha se o meu marido morrer. O que eu faria é vender o usufruto, ter agora um dinheiro em espécie e deixá-lo quando já não estiver neste mundo...”, diz por telefone. Contará isso a esses malquistos sobrinhos do marido? “Não, por que contaria? Isto aqui é meu e posso fazer o que bem entender.” Sem dúvida, pagaria para ver suas caras na hora de abrir o testamento.

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