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A arte de fingir dor

Rosa Montero se espelha em Marie Curie para refletir sobre o luto e a vida. Leia trecho de ‘A ridícula ideia de nunca mais te ver’, publicado pela editora Todavia

Rosa Montero
Marie Curie.
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Quando Rosa Montero se espelhou em Marie Curie
'Salvadoras de nada', por Rosa Montero

Como não tive filhos, a coisa mais importante que me aconteceu na vida foram os meus mortos, e com isso me refiro à morte dos meus entes queridos. Talvez você ache isso lúgubre, mórbido. Eu não vejo assim. Muito pelo contrário: para mim é uma coisa tão lógica, tão natural, tão certa. Apenas em nascimentos e mortes é que saímos do tempo. A Terra detém sua rotação e as trivialidades com que desperdiçamos as horas caem no chão feito purpurina. Quando uma criança nasce ou uma pessoa morre, o presente se parte ao meio e nos permite espiar durante um instante pela fresta da verdade — monumental, ardente e impassível. Nunca nos sentimos tão autênticos quanto ao beirarmos essas fronteiras biológicas: temos a clara consciência de viver algo grandioso. Há muitos anos, quando entrevistava o jornalista Iñaki Gabilondo, ele me contou que a morte da sua primeira mulher, que faleceu bastante jovem de câncer, havia sido muito dura, sim, mas também a coisa mais transcendente que lhe acontecera. Suas palavras me impressionaram: ainda me lembro delas, embora eu tenha uma terrível memória de passarinho. Na época, pensei que tinha compreendido bem o que ele queria dizer, mas só depois de ter vivido a mesma experiência é que entendi melhor. Nem tudo é horrível na morte, embora pareça mentira (e me espanto ao me ouvir dizendo isso).

Mas este não é um livro sobre a morte.

Na verdade, não sei bem o que é ou o que será. Aqui está ele agora, na ponta dos meus dedos, umas poucas linhas num tablet, um amontoado de células eletrônicas ainda indeterminadas que poderiam ser abortadas com muita facilidade. Os livros nascem de um gérmen ínfimo, de um ovinho minúsculo, uma frase, uma imagem, uma intuição; e crescem como zigotos, organicamente, célula a célula, diferenciando-se em tecidos e em estruturas cada vez mais complexas até se transformarem numa criatura completa e geralmente inesperada. Confesso a você que tenho uma ideia do que desejo fazer com este texto, mas será que o projeto se manterá até o fim ou surgirá outra coisa? Sinto-me como o pastor daquela velha história, que entalha distraidamente um pedaço de madeira com sua navalha e, quando alguém lhe pergunta “que figura está fazendo?”, ele responde: “Olhe, se sair com barba, são Francisco; se não, a Virgem Maria”.

De qualquer modo, uma imagem sagrada.

A santa deste livro é Marie Curie. Sempre a achei uma mulher fascinante, algo com que quase todo mundo concorda, aliás, porque é um personagem incomum e romântico que parece maior do que sua própria vida. Uma polonesa espetacular que foi capaz de ganhar dois prêmios Nobel: um de física, em 1903, em parceria com o marido, Pierre Curie; outro de química, em 1911, sozinha. Com efeito, em toda a história do Nobel só houve outras três pessoas que ganharam duas distinções: Linus Pauling, Frederick Sanger e John Bardeen, e apenas Pauling em duas categorias distintas, como Marie. Mas Linus levou um prêmio de química e outro da paz, e é preciso reconhecer que este último vale bem menos (como se sabe, até Henry Kissinger tem um). Ou seja, Madame Curie permanece imbatível.

Além disso, Marie descobriu e mediu a radioatividade, esse atributo aterrador da Natureza, fulgurantes raios sobre-humanos que curam e matam, que fritam tumores cancerígenos na radioterapia ou calcinam corpos depois de uma deflagração atômica. É dela também a descoberta do polônio e do rádio, dois elementos muito mais ativos do que o urânio. O polônio, o primeiro que ela encontrou (por isso o batizou com o nome de seu país), foi logo ofuscado pela relevância do rádio, embora recentemente tenha virado moda como uma maneira eficiente de assassinar: lembremos a terrível morte do espião russo Aleksandr Litvinenko, em 2006, depois de ingerir polônio 210, ou o polêmico caso de Arafat (outro Nobel da paz inacreditável). De modo que as mãos de Marie Curie chegaram até mesmo a essas sinistras aplicações. Mas, bem ou mal, essa força devastadora está na própria base da construção do século XX, e provavelmente também do XXI. Vivemos tempos radioativos.

A dimensão profissional de Madame Curie foi uma raridade absoluta numa época em que não se permitia quase nada às mulheres. De fato, ainda hoje cientistas mulheres continuam relativamente escassas, e com certeza os prêmios ainda lhes são escamoteados. Desde o começo do Nobel até 2011, 786 homens ganharam o prêmio contra apenas 44 mulheres (pouco mais de 6%), sendo que a imensa maioria delas recebeu o Nobel da paz ou de literatura. Há apenas quatro laureadas em química e duas em física (incluindo a dobradinha de Curie, que eleva muito a porcentagem). Sem falar dos casos em que simplesmente lhes roubaram o Nobel, como aconteceu com Lise Meitner (1878-1968), que teve uma participação substancial na descoberta da fissão nuclear, embora o prêmio tenha sido dado em 1944 ao alemão Otto Hahn, que nem sequer a mencionou, porque, além de tudo, Lise era judia e aqueles eram tempos nazistas. Lise teve a sorte de viver o suficiente para começar a ser reivindicada e receber algumas homenagens na velhice — não sei se isso compensará a ferida de uma vida inteira.

Muito pior foi o que aconteceu a Rosalind Franklin (1920-58), eminente cientista britânica que descobriu os fundamentos da estrutura molecular do DNA. Wilkins, um colega de trabalho com quem ela mantinha uma relação conflituosa (ainda era um mundo muito machista), pegou as anotações de Rosalind e uma fotografia importante que a cientista conseguira tirar do DNA por meio de um processo complexo denominado difração de raios X e, sem que ela soubesse ou autorizasse, mostrou tudo a dois colegas, Watson e Crick, que trabalhavam na mesma área e, depois de se apropriar ilegalmente dessas descobertas, se basearam nelas para desenvolver seu próprio trabalho. Não se sabe se Rosalind chegou a ter conhecimento do “roubo” intelectual de que fora vítima; faleceu muito jovem, com 37 anos, de um câncer de ovário provavelmente causado pela exposição aos mesmos raios X que lhe permitiram vislumbrar as entranhas do dna. Em 1962, quatro anos depois da morte de Franklin, Watson, Crick e Wilkins obtiveram o Nobel de medicina pelas suas descobertas sobre o DNA. Como não é possível ganhar o prêmio postumamente, Rosalind nunca o levou, embora com certeza o merecesse. Mas o mais vergonhoso é que nem Watson nem Crick mencionaram Franklin ou reconheceram sua contribuição. Enfim, uma história suja e triste, mas pelo menos conhecida. Pergunto-me quantos outros casos de espionagem, apropriação indevida e parasitismo podem ter ocorrido na história da Ciência sem que tenham chegado a se tornar públicos.

(Incrível: enquanto eu redigia estas linhas, uma amiga de Facebook, Sandra Castellanos, me mandou uma mensagem. Não nos conhecemos pessoalmente, só sei que ela mora no Canadá e é uma ótima escritora principiante, porque já li seus textos. Fazia meses que não nos falávamos e, de repente, saindo da flamejante vastidão cibernética, recebi a seguinte informação:

Olá, Rosa, vi isso e achei que você gostaria de saber.

De Por amor a la física, de Walter Lewin:

Os desafios dos limites de nosso equipamento tornam ainda mais surpreendentes os resultados de Henrietta Swan Leavitt, uma astrônoma brilhante mas geralmente ignorada. Em 1908, Leavitt trabalhava no Observatório de Harvard, num cargo secundário, quando começou seu trabalho, que proporcionou um salto gigantesco na medição da distância até as estrelas.

Esse tipo de coisa aconteceu com tanta frequência na história da Ciência que o fato de minimizar o talento, a inteligência e a contribuição das mulheres cientistas deveria ser considerado um erro sistêmico.

E ao final:

Aconteceu com Lise Meitner, que participou da descoberta da fissão nuclear; com Rosalind Franklin, que contribuiu para descobrir a estrutura do DNA; com Jocelyn Bell, que descobriu os pulsares e deveria ter dividido em 1974 o prêmio Nobel dado a seu supervisor, Anthony Hewish.

Uau! Eu não sabia nada sobre Leavitt ou Jocelyn Bell, mas o que me deixou atônita foi a espetacular sincronia de momento e tema. E o que é mais inquietante: essas #coincidências que parecem mágicas são frequentes no terreno literário. Mas falaremos disso mais tarde.)

Eu estava preparando outro romance. Vinha fazendo anotações, lendo livros relacionados ao tema havia mais de dois anos. Estava deixando o zigoto crescer na minha cabeça. Finalmente dei início a ele, isto é, passei à ação: sentei-me em frente ao computador e comecei a digitar. Isso foi em novembro de 2011. A trama toda transcorre na selva, esse asfixiante, putrefato, enlouquecedor ventre vegetal. Escrevi os três primeiros capítulos, e gostei deles. Além do mais, sei tudo o que vai acontecer depois. E também gosto disso. Quer dizer, acho que pode ser emocionante para mim escrever esse romance. E, no entanto, no final de dezembro, deixei essa história de lado, talvez para sempre (espero que não). Em toda a minha vida, só abandonei um outro romance pela metade: foi em 1984, e àquela altura ele já estava com uma centena de páginas. Joguei-as fora, salvo as cinco ou seis primeiras, que publiquei em forma de conto com o título “A vida fácil” no meu livro Amantes e inimigos. Esse romance nunca mais voltará. Deixei de sentir os personagens, suas peripécias passaram a não me interessar, cansei do tema. Para poder escrever um romance, para suportar as tediosas e longas horas sentada que o trabalho implica, mês após mês, ano após ano, a história tem que manter borbulhas de luz na nossa cabeça. Cenas que são ilhas de emoção incandescente. E é pela ansiedade de chegar a uma dessas cenas — que, sem sabermos o motivo, nos deixam tiritando — que atravessamos meses de soberano e insuportável tédio ao teclado. De modo que a paisagem que vislumbramos ao começar uma obra de ficção é como um longo colar de escuridão iluminado aqui e ali por uma grande pérola iridescente. E vamos avançando com esforço pelo fio de sombras de uma conta à outra, atraídos como mariposas pelo brilho, até chegarmos à cena final, que, para mim, é a última dessas ilhas de luz, uma explosão radiante. É verdade que cada romance tem poucas pérolas: com sorte, com muita sorte mesmo, talvez umas dez. Mas já dá para nos virarmos com quatro ou cinco se forem suficientemente poderosas para nós, se forem embriagantes, se as sentirmos tão grandes que não caibam no nosso peito a ponto de pensarmos: preciso contar isso aqui. Porque, se não o fizermos, desconfiamos que a cena explodirá dentro da gente e acabaremos bufando pelas narinas.

E o que aconteceu com aquele romance de 1984 é que essa chama se apagou. Acabou-se a necessidade, o arrepio e o êxtase. Foi um verdadeiro aborto, e ainda por cima tão tardio — de uns cinco meses, digamos metaforicamente — que minha saúde literária foi abalada: me bateu La Seca, como dizia Donoso, e passei quase quatro anos sem conseguir escrever. Um maldito inferno, pois ao perder a escrita, perdi também o nexo com a vida. Sentia uma lassidão, uma distância da realidade, uma névoa que borrava tudo, como se eu não fosse capaz de me emocionar com o que vivia se não o elaborasse mentalmente através de palavras. Pensando bem, é possível que o grande Fernando Pessoa se referisse a isso nos seus célebres versos: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. Talvez o escritor seja um sujeito mais ou menos louco que é incapaz de sentir a própria dor se não fingir ou construí-la com palavras. Com essas palavras que combinam, completam, consolam, que nos tornam calmos e conscientes de estar vivos. Caramba, todas as palavras saíram com C! Extraordinário. O cego tilintar do cérebro.

Não acho que meu relato da selva esteja tão morto como aquele de 1984 que acabou me bloqueando. Gosto de pensar que é uma simples falta de sintonia entre mim e o tema; não é o que eu quero contar agora; ou, quem sabe, preciso contar outra coisa. Aquele romance surgiu na minha cabeça durante os meses da doença do meu marido. É a trama mais obscura, mais desesperada e angustiante que já imaginei. E agora não me vejo ali. Não quero me enfiar ali. Não desejo passar o próximo ano presa naquela selva trituradora.

Eu estava nisso quando recebi um e-mail de Elena Ramírez, editora da Seix Barral. Ela propunha que eu fizesse um prólogo para Únicos, uma coleção de livrinhos muito curtos. O texto sobre o qual ela queria que eu falasse era o diário de Marie Curie, pouco mais de vinte páginas redigidas ao longo de doze meses após a morte de seu marido, que faleceu aos 47 anos atropelado por uma charrete. E a sábia, a bruxa, a maga Elena Ramírez dizia:

Pensei em você porque o diário reflete com crueza explícita o luto de Marie pela perda do marido. Acho que, se você gostar da obra, pode fazer algo estupendo, a respeito dela ou da superação (se é que se pode chamar assim) do luto em geral. Acho até que, dependendo de sua imersão no livro e de como se sentir ao escrever, poderia ser um prólogo ou o corpo central, e o diário de Curie um complemento. Bem, deixo aberto a qualquer surpresa.

Li o texto. E me impressionou. Mais do que isso: me prendeu.

Mas este tampouco é um livro sobre o luto. Ou não só sobre o luto.

Comprei meia dúzia de biografias de Madame Curie, de quem eu já sabia algumas coisas, mas não muitas. E algo ainda sem forma começou a crescer na minha cabeça. Uma vontade de contar sua história à minha maneira, de usar sua vida como um parâmetro para entender a minha; e não estou falando de teorias feministas, mas de tentar desvendar qual é o #lugardamulher nesta sociedade em que os lugares tradicionais foram extintos (o homem também anda perdido, evidentemente, mas eles que explorem esse pântano). Vontade de perambular pelas esquinas do mundo, do meu mundo; e de refletir sobre uma série de #palavras que me despertam ecos, #palavras que ultimamente ficam dando voltas na minha cabeça como cães perdidos. Vontade de escrever como quem respira. Com naturalidade, com #leveza.

Quando eu era pequena, tive tuberculose. Fiquei sem ir à escola dos cinco aos nove anos e, segundo a lenda familiar, fui salva por um pediatra chamado dom Justo, que era um médico maravilhoso e um grande ser humano, e não cobrava quando não tínhamos dinheiro. Lembro-me bem das muitas visitas a dom Justo; vivíamos longe, precisávamos pegar um ônibus e eu sempre chegava enjoada (naquele tempo, quando quase ninguém tinha carro próprio e as pessoas viajavam pouco em veículos motorizados, era bastante comum passar mal ao entrar num automóvel). Nos fundos do consultório de dom Justo havia uma espécie de quartinho onde ficava a máquina de raio X. Inúmeras vezes, em todas as ocasiões que fui vê-lo, durante a doença e nos checkups dos anos seguintes, dom Justo me punha de pé na máquina, nua da cintura para cima porque tinha acabado de me auscultar. Fazia-me ficar bem reta, com as costas coladas no metal gelado, e depois aproximava do meu peito a placa de raios, também desagradavelmente fria. Eu apoiava o queixo na borda superior: o aparelho tinha um leve odor de ferro, um ranço que depois reconheci no cheiro de sangue. Dom Justo e minha mãe se punham diante da máquina sem nenhuma proteção e, depois de apagar a luz, o espetáculo começava; lembro da penumbra do consultório e de como os rostos do pediatra e da minha mãe se iluminavam com o brilho azulado dos raios. “Está vendo, dona Amalia?”, dizia dom Justo, apontando para algum ponto do meu peito. “Aquela parte aparece mais branca porque a lesão está calcificando.” Eles olhavam e conversavam animadamente por um tempo que me parecia muito longo, fascinados com o espetáculo do meu interior. Eu me sentia importante, mas também incômoda e inquieta: aquela escuridão, aquele fulgor espectral que parecia transformá-los em fantasmas, sem falar na ideia asquerosa de estarem vendo minhas tripas. Hoje, quando calculo a quantidade de radiações que devemos ter recebido o meu sangue congela, embora seja tranquilizador saber que dom Justo faleceu com quase cem anos e que minha mãe continua viva e guerreira aos 91. Tudo isso aconteceu no final dos anos 1950, começo da década de 1960; Marie Curie havia morrido, destruída pelo rádio, um quarto de século antes. Agora penso no brilho frio, que saía do meu peito como um ectoplasma, e no zumbido da máquina, e sinto uma proximidade enorme, uma estranha intimidade com aquela sisuda cientista polonesa. De algum modo, seu trabalho ajudou no meu diagnóstico e na minha cura. Sem falar que a mãe de Marie morreu de tuberculose. E eu também vi aquele brilho azul que Curie tanto amou! Digamos que fui uma menina radioativa; e agora sou uma mulher madura ou uma jovem senhora que, há alguns anos, vive a dois quarteirões do antigo consultório de dom Justo, ou seja, a cem metros de onde ficava aquela antiga máquina de raio X que fedia a sangue. Agora o lugar é um consultório ginecológico. Às vezes tenho a sensação de que na vida nos movemos dando voltas sempre pelos mesmos lugares, como num jogo de tabuleiro desconcertante.

Marie Curie não foi apenas a primeira mulher a receber um prêmio Nobel e a única a receber dois, mas a primeira a se formar em Ciências na Sorbonne, a primeira a se doutorar em Ciências na França, a primeira a ter uma cátedra... Foi a primeira em tantas frentes que é impossível enumerá-las. Uma pioneira absoluta. Um ser diferente. Também foi a primeira mulher a ser enterrada pelos seus próprios méritos no Panteão dos Homens Ilustres [sic] de Paris. Seus restos foram transladados para lá no dia 26 de abril de 1995 com toda a pompa e circunstância (aliás, no Panteão também estão Pierre Curie e Paul Langevin, respectivamente marido e amante de Marie), e o discurso do presidente Mitterrand, na época já muito doente, enfatizou “a luta exemplar de uma mulher” numa sociedade em que “as atividades intelectuais e as responsabilidades públicas eram reservadas aos homens”. Eram, ele disse. Como se essas desigualdades já tivessem sido completamente superadas no mundo contemporâneo. Mas Marie Curie continua sendo a única mulher enterrada no Panteão; e o Panteão ainda é chamado, como se pode imaginar, de Homens Ilustres. Como aquela polonesa sem apoio nem dinheiro conquistou tudo isso, tão cedo, tão só, em circunstâncias tão desfavoráveis? Foi uma mulher inédita. Uma guerreira. Uma #mutante. Por isso é que estava sempre tão séria, tão triste? Por isso exibia aquela expressão tão trágica em todas as suas fotos? Inclusive nas instantâneas, que, como a seguinte, são anteriores à sua viuvez. Penso agora na velha história do pastor entalhando a madeira e digo a mim mesma que talvez o que sairá deste livro será algo intermediário; e que Marie teve de ser são Francisco e a Virgem Maria ao mesmo tempo para conseguir fazer tudo que fez.

Rosa Montero é jornalista e escritora. Este é o trecho inicial do livro A Ridícula Ideia de Nunca Mais Te Ver, publicado em português neste ano pela editora Todavia. Tradução de Mariana Sanchez.

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