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Feminicídio
Coluna
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Salvadoras de nada

Rosa Montero

Frequentemente ocorre que, em vez de tentar olhar de verdade um homem e conhecê-lo, a mulher o inventa, o idealiza, o decora com todo o tipo de virtudes

Rebeca Santamalia com José Juan Salvador, em 2005, durante o julgamento pela morte da esposa dele, na Audiência de Teruel.
Rebeca Santamalia com José Juan Salvador, em 2005, durante o julgamento pela morte da esposa dele, na Audiência de Teruel.Antonio García (Heraldo de Aragón)

Às vezes me pergunto que maldito fio solto a maioria das mulheres tem para agir como agimos. Voltei a pensar nisso pela recente tragédia de Zaragoza, na Espanha: o assassinato de Rebeca Santamalia, uma advogada de 47 anos, por José Salvador, de 49, que já havia matado em 2003 sua primeira e jovem esposa. Deu 11 tiros de escopeta na mulher, alguns com o cano encostado na cabeça. Uma carnificina. Nessa época conheceu Rebeca: ela o defendeu no julgamento. Condenado a 18 anos de cadeia, cumpriu 14 e saiu em 2017. Em algum momento desse longo trajeto, a advogada e ele iniciaram uma relação sentimental. Há algumas semanas, esse energúmeno esfaqueou várias vezes Santamalia. Arma branca, ódio sombrio: esse segundo crime parece ainda mais violento e feroz. Na sequência, ele se jogou de um viaduto. Uma pena que não tenha se matado antes.

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Rebeca, todo mundo diz, era inteligente, corajosa, generosa. Fico angustiada de pensar que esse triste acontecimento possa ter ocorrido por um mal que afeta muitas mulheres: esse absurdo impulso regenerador que faz com que nos sintamos impelidas a salvar a todo custo os homens. E salvá-los de que? Bom, é aí que começa o problema. Como essa advogada experiente, sensível e lúcida pôde ter se apaixonado por um assassino frio e brutal que, ao que parece, jamais mostrou arrependimento pela morte de sua primeira esposa? Leio no jornal Heraldo que, durante o julgamento, Rebeca se esforçou em mostrar seu cliente como uma boa pessoa, órfão de pai e mãe desde os 13 anos, separado de sua irmã mais nova e com uma infância carente de afeto. Eu não sei se convenceu o júri com tudo isso, mas é possível que, infelizmente, tenha convencido a si mesma. Essa infância de Dickens é o relato perfeito para que a patologia da redentora seja ativada.

Nós mulheres fomos tradicionalmente educadas com uma ênfase tão doentia no amor romântico que tendemos a inventar os amados. E dessa forma frequentemente ocorre que, em vez de olhar de verdade um homem e tentar conhecê-lo, a mulher o inventa, o idealiza, o decora com todo o tipo de virtudes, mesmo que não sejam visíveis para ninguém. Ou seja, é possível que ele seja um grosseiro e um ignorante, mas a mulher se empenha em intuir que, no mais profundo de seu coração atormentado, esse homem é um poeta, um ser afetuoso e sensível. Para piorar, a mulher se convence, excitada, que será ela que irá salvá-lo de si mesmo. Ela curará todas as suas feridas e libertará o prisioneiro interior, o doce amado. O conto clássico já o diz com toda a clareza: as mulheres passam a vida beijando sapos repugnantes com a louca esperança de transformá-los em príncipes.

Há exceções, claro, mas se trata de um comportamento muito espalhado (eu mesma caí algumas vezes em minha juventude em tal demência). Somos mineiras de amor e tentamos extrair paladinos perfeitos da escumalha da realidade imperfeita. E é assim porque fomos educadas no machismo, uma ideologia profundamente patológica que deixa todos nós muito machucados. Porque a síndrome das redentoras não só pode conduzir a sangrentas tragédias (como talvez tenha acontecido com Rebeca), como existem outros dramas cotidianos que também surgem daí. Como diz o comediante francês Arthur, “o problema dos casais é que as mulheres se casam pensando que eles irão mudar e os homens se casam pensando que elas não vão mudar”. Que lucidez terrível! Muitas mulheres estão empenhadas em mudar o amado para que se transforme no formoso príncipe que elas inventaram. Começam a relação acreditando que irão conseguir, mas quando o tempo passa e o pobre sapo continua sendo, como é natural, verde e pegajoso, existem mulheres que se sentem enganadas, sem perceber que elas mesmas se enganaram; e começam a sentir uma raiva desvairada e injusta pelo outro, que por sua vez comprovará, espantado, a mudança aterradora de sua mulher, que agora já não somente não o idolatra como antes e parece até mesmo odiá-lo. Desses sonhos destruídos nascem algumas vezes dores muito profundas, convivências tóxicas. Se queremos brincar de salvadoras, vamos salvar em primeiro lugar nós mesmas das miragens.  

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