Como eu escapei da violência machista
Justificar. Contar. Perceber que o amor não é isso. Salvar os filhos. Fazer terapia. Reinventar-se. Enfrentar as sequelas. Cinco mulheres contam como escaparam da opressão de gênero
Sou feliz. Já não há quem me prenda. (Macarena García, auxiliar administrativa, 49 anos)
— No centro de recuperação, compreendi quem sou e o que quero. Cresci. (Kalinka, cozinheira, 28 anos)
—Tenho um novo parceiro, um programa de rádio e fundei uma associação de mulheres. Mas ainda reajo com agressividade (Rocío, fotógrafa, 41 anos)
— Tem um pedacinho de mim que não consigo encontrar. Minha vida se quebrou. (Pepi Suárez, auxiliar de geriatria, 59 anos)
— Chegamos a 20.000 mulheres. Somos uma rede que ajuda outras a quebrar o silêncio (Ana Bella Estévez, ativista da Fundação Ana Bella, 45 anos)
Aqui está o presente de cinco vidas. Uma amostra mínima do enorme número de sobreviventes da violência machista. Quatro de cada cinco mulheres maltratadas por seu parceiro ou ex-parceiro (77,6%, segundo a Macropesquisa sobre Violência contra a Mulher de 2015) conseguem escapar do terror silencioso que matou mais na Espanha do que o grupo separatista basco ETA (1.068 mulheres mortas desde 2001, segundo a contagem do EL PAÍS). Elas falam assim do passado:
— Tentou me estrangular no chão da cozinha. Eu me urinei toda. (Macarena, 23 anos de maus-tratos)
— Em duas ocasiões não pude sair para a rua por causa de como ele deixou meu rosto (Rocio, 11)
— Ele me batia com o cinto e eu lhe pedia perdão. (Ana Bela, 11)
— Disse que ia me matar. Ouvi-o afiando a faca. (Pepi, 5)
— Gritava. Eu abaixava a cabeça e dizia “está bem, está bem, é minha culpa”. (Kalinka, 3)
Poderiam dizer frases como essas quase três milhões de mulheres maiores de 16 anos, aquelas que alguma vez sentiram medo ou sofreram abusos sexuais ou físicos de seus companheiros de vida ou ex-parceiros, segundo projeções baseadas na macropesquisa citada, que revela que 15,5% das residentes na Espanha passaram por isso em algum momento.
Do presente tenebroso para um futuro em que recuperarão a dignidade e a coragem há um caminho longo e tão diverso como todas essas mulheres, dizem os especialistas. Dizem elas.
“Ele me separou de minha família, saí da ONG em que estava. Vieram os insultos. Eu o justificava.” Rocío, ao telefone, chora em alguns momentos. Não se chama Rocío. “Pensei que o problema era meu, que isso era algo normal, que os casais discutem”, diz Kalinka, também por telefone. “Elas têm dificuldade para reconhecer a violência, elas a aguentam, minimizam-na ou se culpam. Fazem qualquer coisa para manter e melhorar a relação. É o que chamamos de tática de aderência. Aí tem muita culpa a socialização de gênero, o mito do amor romântico”, afirmam em uníssono a professora da Universidade de Sevilha María José Cala e a também psicóloga e pesquisadora María García. A pesquisa Recuperando el Control de Nuestras Vidas. Reconstrucción de Identidades y Empoderamiento en Mujeres Víctimas de Violencia de Género (“Recuperando o controle de nossas vidas. Reconstrução de identidades e empoderamento de mulheres vítimas de violência de gênero”), dirigida por Cala, analisou o caminho libertador das oito sobreviventes.
Quando as mulheres estão sobrecarregadas, afastando-se de todos, adoecendo, mergulhadas na tristeza, mas caladas, deveria vir em seu auxílio a sociedade e seu entorno. Nesse aspecto, o da detecção, todos estão em débito. Miguel Lorente, ex-delegado do Governo espanhol para a Violência Machista, pede uma triagem universal nos centros de saúde, como a Comunidade Valenciana faz desde 2015, o que já trouxe à tona milhares de casos, porque as vítimas de maus-tratos vão mais ao médico.
FALAR PELA PRIMEIRA VEZ. É O MARCO QUE AS MULHERES APONTAM COMO DESENCADEADOR DA RECUPERAÇÃO
“Se você vê que ela está arisca, que muda sua forma de vestir ou não se importa com a aparência, que se relaciona menos com os amigos, tem de falar com ela”, aconselha Pepi. Ana Bella, que percorre a Espanha dando palestras em grandes empresas, assinala que os colegas de trabalho também podem ajudar. “O que faz falta é que as pessoas à sua volta sirvam de espelho para você, que ajudem a quebrar o silêncio. A força você já tem”, observa a sobrevivente (ela rejeita o termo “vítima”).
Ao longo dos 23 anos de terror, ameaças contra sua família, sexo forçado e doloroso, Macarena preparou muitas vezes as malas. Um dia, Kalinka se convenceu de que seu companheiro ia destruí-la. “Há um momento em que elas sabem que a relação não pode continuar, e aí usam as táticas de sobrevivência”, afirmam Cala e García. Tornam-se invisíveis, anestesiam-se, seguem o jogo do agressor, preparam a saída. “Eu chamo isso de perceber, ter consciência de que as coisas não vão mudar se não houver uma ruptura − embora o agressor prometa mudar, não fará isso”, diz por sua vez a também psicóloga e especialista em violência de gênero Laura Velasco, diretora do Centro de Atendimento Integral, Recuperação e Reinserção de Mulheres Maltratadas (CARRMM), vinculado à Federação de Associações de Mulheres Separadas e Divorciadas (FAMSD), umas das instituições de maior prestígio da Espanha.
Rocío queria ir embora. Nunca tinha falado. Contou para um colega do partido no qual milita. Kalinka contou para as freiras que a acolheram quando era jovem, ao ser abandonada. Falar pela primeira vez. É o marco que as mulheres apontam como o desencadeador da recuperação. O melhor conselho. Isso se reflete na pesquisa dirigida por Cala. “A recomendação que dariam a outras mulheres não é denunciar. É quebrar o silêncio”, dizem Cala e García.
“Paralelamente, começa o trabalho de voltar a querer a si mesma, e isso abre caminho para o desapego e o empoderamento, que são as outras estratégias”, observam as pesquisadoras. Um processo nada linear, com idas e vindas, no qual as mulheres recuperam amigos e familiares. E o apoio destes é fundamental: “Eles têm de permanecer [ao lado delas], não podem se cansar, deixá-las sozinhas, porque voltam para o agressor. Têm de ter paciência”.
Macarena chamou a polícia quando seu marido agarrou seu filho, que quis defendê-la. Quando seus filhos ficaram no meio dos golpes e ameaças, diante de seus gritos, algo mudou dentro de Rocio, Kalinka e Ana Bella. “Elas sentem a necessidade e a obrigação de defendê-los e de buscar um ambiente tranquilo para viver”, assinala a pesquisa. Os filhos funcionam como catalisadores. Aceleram a saída.
Das mulheres maltratadas, 67% rompem a relação. “A ruptura é um momento crítico. Avaliar um plano de segurança é o primeiro passo”, diz Wara Rojo, psicóloga do CARRMM. “Elas são inundadas por sentimentos de culpa, medo e desamparo.”
Ana Bella fugiu com seus quatro filhos para outra cidade, denunciou o caso e acabou em uma casa de acolhida. Pepi e Macarena telefonaram para o 112, o número de emergência da União Europeia. Kalinka e Rocío entraram no centro dirigido por Velasco. Rocío, que acordava gritando à noite, pôde dormir a noite inteira pela primeira vez.
Terapia. Essa é a palavra mágica para todas. Elas a agradecem, anseiam por ela. Rocío e Kalinka, dentro do CARRMM, conviveram também com cerca de 20 mulheres e seus filhos, que recebem uma “resposta integral e multidisciplinar”, mas há muitas outras que estão à espera de atendimento, lamenta a diretora. “Primeiro é preciso dotá-las de ferramentas para estabilizar e administrar seus sintomas, para aprofundar e detalhar sua história de violência. A fase final é a recuperação e o desenvolvimento de um projeto de médio e longo prazo nas diferentes áreas de sua vida”, destaca Velasco. As mulheres passam em média 18 meses no centro. “Da violência se sai com o tempo, com um tratamento específico, com pessoas muito especializadas”, diz Ana María Pérez del Campo, presidenta da FAMSD, “Sai-se aprendendo a pensar, abandonando o mito do amor romântico, abandonando a ideia de que tenho de encontrar um homem que me faça feliz. A felicidade se compartilha. Ninguém a dá.”
Faltam recursos. Outra afirmação comum. “Dinheiro, alojamento, trabalho e terapia são necessários para recompor a vida”, diz Ana Bella. Sua fundação apoia as mulheres com tudo isso. A ela recorreu Macarena, que não tinha dinheiro nem para os livros escolares de seus filhos. Ela acabou ficando para ajudar. “Mas todas as ONGs estão saturadas. Precisam ser postas em prática as 200 medidas do Pacto de Estado contra a Violência de Gênero, e todos os encarregados de aplicá-las têm de estar perfeitamente treinados”, afirma Bella.
Miguel Lorente é pessimista. “Sim, a maioria sai se separando, mas sai mal. É como quando quebramos uma perna, ela é engessada, mas não fazemos fisioterapia. Ela acredita que falhamos não só na detecção, mas também na proteção, tanto de quem vai à polícia ou à Justiça, como de quem não vai.
Todas passaram pelos tribunais, com diferentes resultados. Rocío, cuja denúncia de maus-tratos foi arquivada, teve de entregar os filhos a seu ex-companheiro por ordem judicial. Ela mantém uma viva lembrança de quando estava no centro de acolhida. “Praticamente todas tínhamos problemas em nossos julgamentos. Ana María nos disse: ‘Vocês percebem? Denunciam e não adianta. A realidade é essa’. Isso me fez pensar muito.”
Anos depois, Pepi não tem facas em casa. Desde que fez a denúncia, suas mãos tremem e mal encontra trabalho. Recentemente, seu ex desrespeitou a ordem de manter distância. Se ela continua aqui, diz, é graças à fundação, a sua família e a seu gato.
Às vezes, Kalinka sente ansiedade e é invadida pela terríveis lembranças. Teve medo dos homens durante anos. Mas agora se fotografa ao lado de alguém com cara de bom menino.
Rocío perdeu a custódia dos filhos. Acha que sempre está na defensiva. Tem em torno dela, no entanto, um companheiro, um trabalho, projetos. Está inserida na sociedade.
Durante muito tempo, Macarena não pôde suportar que tocassem seu cabelo ou seu rosto. Nem fazer sexo. Agora não se imagina ao lado de um homem.
Mas se sente livre, a bordo da vida.