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“Nunca vou entender por que deixaram Michael Jackson dormir com crianças”

Diretor de ‘Deixando Neverland’ explica como lida com a reação furiosa que seu documentário tem provocado pelo mundo

Trailer do documentário 'Deixando Neverland'.
Tom C. Avendaño

Dan Reed (Reino Unido, 1964) é, há três semanas, um homem em uma cruzada: demonstrar que Michael Jackson era um pedófilo em série. Sua arma é o documentário de sucesso Deixando Neverland (Leaving Neverland), que ele dirigiu (pode ser visto no Brasil no canal HBO) e no qual duas vítimas de Jackson, Wade Robson e James Safechuck, contam os abusos físicos e emocionais que sofreram nas mãos do cantor mais querido da cultura popular recente. Mas desde a estreia do filme, apesar de apresentar muitas provas, Reed vem enfrentado o pior exército de negacionistas − que não toleram uma revisão da imagem do Rei do Pop − que ele já viu em suas décadas de trabalho como documentarista. “Acabo de chegar da França, onde fui a um debate televisionado, e tinha um homem, que é pai, defendendo aos gritos a inocência de Jackson. Perguntei se ele deixaria seu filho dormir com Jackson. E tive de fazer isso várias vezes, porque me respondia com evasivas. No fim, disse que não”, explica Reed por telefone ao EL PAÍS. “Essa gente vive em uma Neverland [Terra do Nunca] própria, muito estranha.”

Pergunta. O que o surpreendeu em relação à enorme reação que seu documentário provocou?

Resposta. As culturas são diferentes e respondem de maneira diferente à ideia de uma figura de autoridade que abusa da confiança que conquistou entre alguns pais. Os países católicos têm suas histórias da Igreja e dos padres, e aí é mais difícil acreditarem que Michael Jackson tenha feito algo errado. Nos Estados Unidos existe o #MeToo e se escutam mais as vítimas.

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P. Os apologistas de Jackson pararam de atacar você?

R. Não, e não entendo o que os move. Sua identificação com Michael Jackson é total; eles veem tudo que se diz sobre ele como uma acusação pessoal. Enquanto isso, os herdeiros de Jackson não param de espalhar informações descontextualizadas ou manipuladoras. Querem desarmar as acusações do documentário e armar aos fundamentalistas. E olha que o filme não os contradiz, porque não fala das estupidezes que dizem. Em geral, eu vivia melhor quando lidava com jihadistas [fazendo seu documentário anterior, Three Days of Terror: The Charlie Hebdo Attacks (“três dias de terror: os ataques ao Charlie Hebdo”), que estreou em 2016].

P. Sentiu alguma pressão por abordar alguém tão querido? Como dizem, “se tentar matar o rei, não falhe”.

R. Fomos os primeiros a tentar desmontar as histórias de Wade e James, mas elas acabaram sendo indestrutíveis. Não tenho dúvida de que eles dizem a verdade. Minha equipe e eu verificamos cada informação minuciosamente. Tudo se encaixava. No fim das contas, algo que me salva é que o documentário não é sobre Jackson, mas sobre as famílias que ele seduziu.

P. Um dos meninos, Wade, fala com carinho de seu abusador, e o documentário explora esse sentimento tão estranho.

R. Essa foi uma das coisas que me convenceram de que diziam a verdade. Se pretendessem me contar uma série de mentiras para levar a julgamento os herdeiros de Jackson, não precisariam entrar em detalhes tão específicos, em sentimentos tão complexos e contraditórios.

P. James fica com o coração despedaçado quando Jackson o deixa para abusar de outro menino. Esperava-se, antes da filmagem, que o componente emocional fosse mais sombrio que o sexual?

R. Há um momento-chave. É quando está acabando o período de lua de mel − nem sei se deveria ser chamado assim − entre James e Michael Jackson. Este ainda o convida para sua casa, mas dorme com outro menino. E James tem de dormir no sofá com um cobertor. Aí entende que seu “matrimônio” com Jackson terminou. Embora [Jackson] continuasse a convidá-lo para sua casa e tendo encontros sexuais, o menino entende que o período de proximidade e companhia constante terminou. Ele começa a chorar, a pedir que sua mãe venha. Jackson lhe compra uma passagem de avião e o manda para casa. A brutalidade emocional de um homem que é capaz de descartar uma criança e mandá-la para casa com dinheiro, essa foi a coisa mais dura de ouvir.

Michael Jackson com Jimmy Safechuck em seu avião em 1988.
Michael Jackson com Jimmy Safechuck em seu avião em 1988.DAVE HOGAN (GETTY)

P. A maioria das entrevistas foi filmada no início de 2017, antes da explosão quase repentina do #MeToo. Isso provocou alguma mudança no filme?

R. Não muito, mas criou um clima em que já não se despreza o testemunho de uma vítima, principalmente se o acusado é rico e poderoso. No caso de Michael Jackson, não entendo por que não se dá mais importância a uma coisa: ninguém nega que dormisse com meninos, provavelmente uma dúzia deles. No entanto, ninguém fez nada. Ele era sexualmente ativo. Sua música não é assexual. No entanto, o fato de que dormisse cada noite de sua vida adulta com menores, a portas fechadas e com o alarme ativado para que ninguém entrasse, era aceito como algo normal. Dá para questionar a sanidade das pessoas que o rodeavam.

P. Dos fãs ou dos que se beneficiam deles?

R. Os dois são parte de uma seita, não porque estejam organizados, pois não estão, mas pela forma como transformam Jackson em um ídolo. Acreditam que representa uma pureza infantil, que é um ser angelical, que não era totalmente deste mundo. Ele mesmo se encarregou de mentalizá-los meticulosamente para que aceitassem um adulto que dorme com crianças.

P. Como?

R. Inventou um mito para si mesmo, uma mistura de Peter Pan e Flautista de Hamelin. E quanto mais mítica é a forma que essa gente assume, mais medo as pessoas têm de perfurar essa aura. E a queda cria mais confusão.

P. Antes estávamos do lado dos famosos. O que mudou?

R. Muitas figuras de autoridade falharam conosco.

P. A música de Jackson foi fundamental não só na cultura, mas na vida de muita, muita gente. Agora há quem não consiga voltar a escutá-la. Essa consequência é um peso para você?

R. Isso é responsabilidade dele. No filme, nunca dizemos que não se escute algo.

P. Você a escuta?

R. Antes não, mas comecei a escutá-la. Tenho muita curiosidade para entender como aquele belo garoto acabou se transformando em um predador sexual.

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