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O ‘Arquivo X’ da dieta: por que nem todas as calorias engordam da mesma forma?

Os rótulos nutricionais são muito bons, mas são uma orientação: o corpo assimila mais energia se vier de um ‘donut’ do que de um filé de frango. Como é possível?

Um sanduíche de pão branco com manteiga, queijo cheddar e quatro fatias de presunto, um milk-shake de chocolate e duas tangerinas. Um senhor lanche de 900 calorias que acabam de entrar no seu corpo de uma tacada só. Calcular as que sairão é mais confuso e é determinado pela energia que utilizamos estando em repouso (metabolismo basal), pela energia que é usada para digerir cada nutriente (o efeito termogênico dos alimentos) e a que se gasta com a atividade, que vai do simples movimento ao exercício físico planejado. Se esses valores fossem fixos, usando a calculadora você poderia obter um equilíbrio preciso e perder peso diminuindo sua ingestão calórica, sem mais. Mas mais de 1,9 bilhão de pessoas com sobrepeso no mundo, de acordo com a OMS, provam que perder peso é tudo menos simples.

Para começar, quando você priva de gasolina o seu corpo em uma dieta, o organismo se rebela diminuindo o que queima em repouso e reduzindo o movimento espontâneo (estalar de dedos, sobe e desce de joelhos...), razão pela qual ao menos um dos valores, o do metabolismo basal, se torna uma incógnita. O efeito termogênico também varia. Um estudo de 2002 da Faculdade de Nutrição da Universidade do Arizona descobriu que as mulheres jovens gastavam o dobro de calorias na digestão de um prato altamente proteico em comparação com aquelas gastas na digestão de um cardápio abundante em carboidratos ou gorduras. De fato, as pesquisas calcularam uma média do referido efeito de cada grupo de macronutrientes: de 200 calorias de frango (rico em proteínas),140 chegam ao seu corpo (60 são gastas na digestão); de 200 de um donut (que tem bastante gordura) você fica com 180; e de 200 de uma fruta (principalmente carboidratos), você armazena 194. Para que a operação se complicou (ainda) mais?

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Para os seus pneuzinhos, nem todas as calorias são iguais

Um estudo publicado em 2009 pelo Scandinavian Journal of Clinical and Laboratory Investigation coloca mais lenha na fogueira. Durante duas semanas, os indivíduos estudados, divididos em dois grupos, complementaram sua dieta com quantidades isocalóricas (de mesmo aporte energético) de balas (açúcar, açúcar e somente açúcar) e frutas secas torradas (com gorduras e proteínas). No fim do experimento, os cientistas observaram que o primeiro grupo tinha piorado seus indicadores metabólicos (como a circunferência da cintura e o colesterol) e aumentado os músculos, enquanto o segundo grupo, de consumidores de frutas secas, tinha disparado seu metabolismo basal e manteve seu peso mais ou menos igual ao do início da pesquisa. Em outras palavras: uma caloria nem sempre é uma caloria, e o corpo reage de forma diferente de acordo com sua origem.

Por outro lado, se o que queremos é perder gordura e não apenas quilos em geral, como defendem atualmente os especialistas, uma pesquisa da Nutrition & Metabolism considera que o equilíbrio de macronutrientes na dieta é mais importante do que sua carga calórica. Ao submeter dois grupos de pessoas com sobrepeso a um regime com baixo teor de carboidratos e a outro com baixo teor de gordura, descobriram que o primeiro, apesar da energia extra, perdeu mais gordura corporal, especialmente da região abdominal.

As calorias que encontramos nas embalagens dos alimentos do supermercado se baseiam em estimativas feitas no século XIX com pessoas de diferentes composições corporais e alimentos de natureza muito diversa. Ainda é possível continuar confiando nisso? Os especialistas Iva Marques e Luis Jiménez se inclinam a não colocar essa informação em dúvida

Emagrecer não é comer menos do que se gasta

O balanço energético (calorias que entram-calorias que saem) é uma fórmula descritiva absolutamente correta, mas tão difícil de aplicar que, para alguns especialistas, começa a carecer de sentido nos processos de emagrecimento. “De forma inequívoca, o excesso de gordura é dado por um balanço energético positivo mantido ao longo do tempo. Mas a lista de ingredientes e como cozinhá-los é mais importante do que as calorias em si”, diz Iva Marques, nutricionista da Academia Espanhola de Nutrição e Dietética e professora da Universidade de Ciências da Saúde e do Esporte da Universidade de Zaragoza.

“Claro, contar calorias não é uma estratégia particularmente útil para diminuir o número das roupas”, diz o químico Luis Jiménez, autor de Lo que Dice la Ciencia para Adelgazar, que considera que os aplicativos que seguem este modelo (MyFitnessPal, por exemplo, que chegou a ter 40 milhões de usuários), acabam não sendo úteis a longo prazo: “Eles não levam em conta fatores como o apetite, as mudanças no metabolismo em relação ao gasto energético ou o aproveitamento dos alimentos, ou as respostas hormonais que gerenciam todos esses processos”. E acrescenta que uma falsa simplificação do problema pode nos levar a pensamentos equivocados, como “se emagrecer é tão simples, os obesos engordam porque querem”. Ascensión Marcos, presidenta da Federação Espanhola de Sociedades de Nutrição, Alimentação e Dietética (Fesnad), é mais taxativa: “Deve-se viver como se as calorias não existissem. Contá-las para emagrecer é uma barbaridade”.

O papel da microbiota: bactérias que comem parte de seus caprichos

O amido do grão refinado (pão branco ou cereais matinais) é digerido pelo estômago com todas as suas calorias. Mas o grão integral é protegido pela fibra do alimento, por isso não é digerido e vai parar (junto com suas calorias) no intestino grosso, onde alimenta as bactérias e não suas redondezas, explica Marques. Isso significa que, com calorias iguais, o pão branco engorda mais do que o integral? “Poderia, mas somente se fosse realmente integral, algo difícil de encontrar aqui...”, lamenta a nutricionista, que acrescenta que isso seria mais fácil de verificar em seu próprio corpo com legumes e frutas secas.

Um estudo recente do Departamento de Agricultura dos EUA deu números ao fenômeno: das 170 calorias de uma porção de amêndoas, ficamos apenas com 129, algo semelhante ao que acontece com o amendoim e o pistache. “É o que se conhece como grau de aproveitamento. Acontece também quando cozinhamos o macarrão al dente que, ao ser menos digerível, rende menos glicose e, portanto, deixa menos energia no organismo”, explica a nutricionista. “Outras variáveis que afetam o equilíbrio energético? O grau de eficiência com que se aproveita, utiliza e armazena a energia dos alimentos é determinado pela genética e pelo perfil hormonal, que por sua vez define a rota de cada nutriente. Também, obviamente, existem fatores externos, como o esporte”.

“Esqueça as calorias. O que é melhor? Um prato de feijão com legumes de entrada e um segundo prato de peixe ou um prato de embutidos como entrada e uma costeleta de segundo prato? É disso que tudo isto se trata, de assimilá-lo de uma vez”,

Os especialistas concordam, grosso modo, que é preciso se preocupar mais com a composição da dieta, buscando um padrão saudável, do que com a quantidade de calorias. Um estudo recente publicado pela revista JAMA aprofunda a esse respeito ao concluir que as pessoas que reduziram o consumo de açúcar, grãos refinados e alimentos altamente processados, aumentando o consumo de vegetais e alimentos pouco ou nada processados em geral, perderam um peso considerável após um ano, sem ter reparado em porções ou calorias. O grupo que praticou uma dieta baixa em carboidratos emagreceu uma média de 5,8 quilos, e aquele que aderiu a uma dieta com baixo teor de gordura, 5,3. Ambos, prossegue a pesquisa, melhoraram marcadores de saúde como circunferência da cintura, gordura corporal, açúcar no sangue e pressão arterial.

E se for saudável, posso comer 20 porções?

Brócolis, ovo cozido, brócolis, ovo cozido, brócolis, ovo cozido... Se ler isto já cansa, imagine comer uma e outra vez, dia após dia, com um pouco de chá no meio. Só assim Elena, uma madrilenha com 16 quilos a mais depois da segunda gravidez, era capaz de se limitar às 1.000 calorias que indicava seu aplicativo para voltar ao seu peso original. “Comecei com disciplina germânica... e me amarguei. Entre outras coisas, porque não perdia peso. Ou não o suficiente para o esforço titânico que fazia. Parei de sair com meus amigos, porque, é claro, se jantava fora, a calculadora disparava. Era frustrante”, lembra. Finalmente, ela relaxou, apostou em uma dieta de qualidade, variada, e isso começou a funcionar.

O próprio método Vigilantes do Peso, que, desde o seu nascimento, propunha a contagem de calorias como método para emagrecer, mudou a estratégia para incentivar seus clientes a comer à vontade a partir de uma lista de produtos hipocalóricos e frutas, presentes no compêndio apesar de sua carga energética. “As calorias se tornaram uma métrica vazia, pouco profunda, oca...”, defende Gary D. Foster, diretor científico da empresa, em artigo na revista da Universidade de Tufts (Boston).

Sobre o consumo livre de produtos saudáveis, parece não haver consenso. Iva Marques apela ao bom senso: “As calorias da fruta importam pouco, porque seus benefícios superam seus açúcares, mas se eu tomar todos os dias 4 quilos de fruta em forma de suco, ganharei peso, porque, por mais saudáveis que sejam, não são mágicas. Além disso, o risco de comer sem medida esse tipo de alimento é que costumam ter tanta fibra que, em excesso, acabam causando desconfortos e alterações intestinais”.

Enquanto isso, Dariush Mozaffarian, cardiologista, epidemiologista e diretor da Escola de Ciência e Política de Nutrição Gerald J. e Dorothy R. Friedman, da Universidade de Tufts, deixou escrito na publicação de sua instituição acadêmica: “Se você está comendo alimentos que ajudam os mecanismos habituais do corpo para o controle do peso, melhoram o metabolismo e aumentam a boa saúde, como fruta não processada, frutas secas, sementes, legumes, vegetais sem amido, cereais integrais, óleos vegetais, iogurte e talvez até mesmo queijo, há muito pouca evidência científica de que o controle da porção seja relevante”.

O curioso caso do cientista que perdeu peso comendo chocolate

Há alguns anos, o professor de Nutrição Mark Haub, da Universidade de Kansas (EUA), quis minar a mensagem da qualidade da dieta com uma experiência excêntrica: comer apenas snacks de chocolate durante dois meses, mas sem ultrapassar nunca as 1.800 calorias por dia (quando sua ingestão habitual era de 2.600). Resultado: perdeu um bom punhado de quilos. Mas o mesmo pesquisador pediu ao público para não replicar seu exemplo. “Há coisas que não podem ser medidas. Quanto terá aumentado o meu risco de câncer?”. A nutricionista Marques não se surpreende com o resultado: “Reduzindo as calorias se emagrece quase sempre. Do contrário, não haveria perdas de peso significativas nas dietas milagrosas, e sim, elas existem. Nos primeiros meses se pode emagrecer muito. A questão é que essa redução se mantenha, e quase nunca é assim com dietas que não empoderam o indivíduo a adotar escolhas saudáveis e um estilo de vida melhor”.

Luis Jimenez enumera uma série de características mais interessantes do que o aporte calórico de um alimento, como o seu grau de processamento (quanto mais natural, melhor), a presença de nutrientes relevantes (vitaminas e minerais), se forem adicionados componentes desnecessários ou se traz satisfação e saciedade. À pergunta sobre se os rótulos deveriam acrescentar informações sobre sua variabilidade calórica em função da técnica de cozimento, o químico e divulgador científico responde: “Minha recomendação seria, simplesmente, comprar precisamente alimentos que não tenham rótulo”. Marques, por seu lado, concorda com ele que não se vence a obesidade contando calorias, “porque com o passar do tempo desanima, cansa... Não há aderência possível”. Mas também não diminuiria a importância do equilíbrio energético. “O ideal seria fazer testes com cada indivíduo para saber como ele metaboliza esses nutrientes e saber otimizar uma perda de peso, pois os fatores que afetam são muitos”, prossegue. “E, claro, é conveniente olhar a lista de ingredientes antes que as calorias, porque não é o mesmo que uma gordura venha da manteiga, do óleo de girassol ou das amêndoas, mas o comprador nem tem sempre a educação necessária. Mas com ingredientes iguais, sempre proponho comprar o menos calórico”.

O que está claro é que o esporte as fulmina

Um croissant, meia hora de bicicleta elíptica?

Neste contexto desfavorável para as calorias, existem aqueles que, no entanto, defendem que se acrescente aos rótulos a quantidade de exercício necessária para queimar seu aporte de energia. No caso de Shirley Cramer, diretora-executiva da Royal Society of Public Health, no Reino Unido, que defende essa medida em um editorial da revista BMJ como um gesto inovador, criativo e revolucionário, "ingredientes necessários" para conter uma epidemia, a de obesidade, que está longe de terminar. "Cerca de 44% da população, de acordo com estudos da nossa entidade, não entende bem o rótulo. E 54% dos entrevistados disseram que mudariam seu comportamento se encontrassem informações mais claras", escreve na revista médica. "Assim, além de lembrar o consumidor com símbolos mais contundentes sobre o aporte energético de cada alimento, o estaríamos incentivando a praticar esportes", continua.

A especialista conclui com um apelo para investigar a esse respeito, bem como a possibilidade de também incluir na embalagem os danos potenciais derivados do consumo de determinados alimentos. “Sobre o que não há dúvida é que, atualmente, estamos falhando”, reflete Cramer.

Não há dúvida. As calorias que saem quando você sua a camisa ficam fora para sempre. É o que conta Juan Del Coso, professor de Fisiologia Humana e do Exercício da Universidade Camilo José Cela, em Madri. “A verdade é que as pessoas sedentárias queimam grande parte delas graças ao metabolismo basal, muito difícil de modular. Mas esse 60% ou 70% que costuma representar pode diminuir muito em pessoas que praticam esportes, que com o exercício disparam seu gasto energético ‘controlável’ [e, portanto, a porcentagem]. Também é possível aumentar o metabolismo basal por meio da criação de músculo (o tecido que consome mais energia), embora seja verdade que, neste caso, a margem de manobra é modesta”. Assim, o especialista não vê inconveniente nas ações compensatórias (“ontem comi o que quis no jantar e hoje vou correr) porque, embora seja evidente que o corpo não funciona assim (“do mesmo modo que o dia em que se come muito no jantar não se engorda cinco quilos, correr o dobro não queima todo o jantar, porque o organismo tende à homeostase [processo de autorregulação] ou pequenas mudanças”), observam-se benefícios se finalmente se torna uma motivação psicológica.

E podemos confiar nos números de calorias queimadas mostrados pelos aplicativos? Desta vez, sim. “É verdade que para saber isso com exatidão seria preciso usar água radioativa, o que colocaria as pessoas em risco. Mas temos uma máquina, o analisador de gases, que mede indiretamente. E com bastante precisão”, diz Del Coso. Custa 30.000 euros (cerca de 132.400 reais), por isso não é para levar para casa, mas empresas como a Apple, diz o pesquisador e professor, programam seus relógios esportivos com base nesse aparelho. A Universidade Camilo José Cela possui uma em suas instalações e realizou testes com vários aparelhos, verificando a quase exatidão da maioria, principalmente em atividades aeróbicas. “A parte anaeróbica [exercícios de força] é muito mais difícil de medir”, detalha.

À dúvida que sempre paira sobre se o exercício é eficaz em um processo de emagrecimento, Del Coso responde taxativamente: “Claro que é. Contudo, é verdade que não é seu benefício mais importante, mas que busca mais a mudança da composição corporal, ou seja, colocar músculo onde antes havia gordura. Devemos superar a ideia de emagrecer e substituí-la pela de estar em forma. Já se sabe que existem pessoas com mais peso do que outras e, no entanto, com melhor qualidade de vida somente por terem menos gordura. Está na hora de mudar a mentalidade.” De novo, as calorias, para o banco de reservas.

Origens confusas

De acordo com um estudo publicado no Journal of Nutrition pelo professor de Nutrição da Universidade da Geórgia, James L. Hargrove, nem os especialistas têm clareza sobre a origem do termo caloria. Em teoria, é a unidade que mede a quantidade de energia necessária para aquecer um grau um quilograma de água.

"Era usada originalmente em engenharia e física, mas encontrou um nicho na nutrição, onde é usada como medida da quantidade de energia contida em um alimento", afirma um artigo da revista ScienceDaily. Em todo caso, de acordo com Hargrove, há dúvidas sobre seu inventor: enquanto algumas referências apontam para os franceses P.A. Favre e J.T. Silbermann, que teriam criado o termo em 1852, outros textos dizem que o mérito é do físico alemão Julius Mayer, em 1848. De acordo com o pesquisador, Mayer foi o primeiro a estabelecer uma relação entre alimentos e energia, e foi nos EUA que se começou a usar as calorias como unidade nos manuais de nutrição no final do século XIX. O padrão: um grama de carboidratos ou proteínas fornece 4 kcal e um de gordura, 9 kcal. O símbolo inicial era cal ou c, embora hoje tenha evoluído para kcal. E, como observou o professor da Universidade da Geórgia, o primeiro texto que pede para contá-las para controlar o peso data de 1918, quando a médica Lulu Hunt Peters apresentava porções de 100 calorias de uma grande variedade de alimentos.

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