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Ricardo olha para a tela do celular e diz: “Eu estou falando comigo mesmo”

Em 'Ricardo e Vânia', de Chico Felitti, os outros lados da vida do Fofão da Augusta, incluindo a história do seu grande amor. Leia trecho

Ricardo e Vânia, quando namoravam.
Ricardo e Vânia, quando namoravam.Arquivo pessoal

Introdução

O Cemitério São Bento, no centro de Araraquara (sp), tem um túmulo sem nome. É a segunda lápide da quarta quadra à esquerda, para quem entra pelo portão onde fica a barraquinha de garapa, ao lado da floricultura. A família do finado não tem 130 reais para pagar pela placa de identificação. Mas o homem cujas cinzas estão lá morreu com um nome: Ricardo Correa da Silva.

Ricardo morou em São Paulo a maior parte da sua vida, e dizia que não voltaria para Araraquara nem morto. Fugiu da cidade do interior por ser diferente dentro de uma família tradicional, a primeira a ter um aparelho de rádio na cidade, na década de 1930. Era diferente por ser ambicioso, gay, artista e esquizofrênico. Não necessariamente nessa ordem.

Na São Paulo dos anos 1970, ele conseguiu se tornar um maquiador conhecido. Fez milagres em rosto de mulheres como Beth Carvalho e Tônia Carrero. Mas, por ironia do destino, ficou mais famoso pela própria aparência do que pela dos outros.Ricardo queria ter o rosto de uma boneca de porcelana chinesa e investia parte do dinheiro que ganhava nos salões em silicone, que injetava em si mesmo, com a ajuda do amor da sua vida, Vagner.

Ricardo e Vagner chegaram a ter um litro e meio de silicone sob a pele antes de Vagner deixar o parceiro e a doença de Ricardo se agravar. Foi então que Ricardo começou a pedir dinheiro na rua Augusta. E passou a ser conhecido como Fofão da Augusta.

Em 2017, estive quatro meses com ele para fazer uma reportagem. A matéria foi publicada pelo BuzzFeed e viralizou nas redes sociais, com mais de 1 milhão de leitores. Um desses leitores era Vagner. Há uma caixa de correio no hall de entrada de um prédio no Quartier Latin, em Paris, com o nome Munhoz Pereira, V. O lugar, que costumava ser uma abadia, é hoje um conjunto de quitinetes. Em uma delas mora uma mulher chamada Vânia. Que já foi conhecida por Vênus, Venúsia, Kara, Hara, Vagner. Vânia foi Vagner, o grande amor da vida de Ricardo.  

Este livro é sobre a história dos dois.

Ricardo e Vânia

“Eu conheço a mona de Paris.” É a mensagem que Gabriella da Silva Lia deixa na caixa de comentários da matéria sobre Ricardo. A mona de Paris, imagino, é Babette. O amor da vida de Ricardo, que não consegui encontrar. O maior furo na narrativa da história dele. Escrevo para Gabriella, perguntando se ela pode contar mais, mas não obtenho resposta.

Uma semana depois, outra mensagem chega à caixa de entrada do meu Facebook. Alexandra, uma paraibana que mora em Paris, diz que tem uma pessoa para apresentar e pede meu número de telefone. Dou. Ela manda por WhatsApp mensagens na madrugada de uma sexta: “Nunca conheci o Ricardo, mas ouvia falar dele. Quero te mostrar uns áudios de hoje. Ela me autorizou a passar para você”.

Ela ri e pergunta: “Você ainda se lembra de mim, Ricardo?”. Ele responde: “É claro que eu me lembro de você. Você é o Vagner. Você é o amor da minha vida”.

Ela então envia gravações de uma voz feminina que diz: “Salut, Alê! Ouvi falar dessa matéria. Estou aqui almoçando, numa correria. Cansadíssima!”.

Desconfio que seja Babette, que morou com Ricardo quando ainda era conhecida por Vagner. Pergunto para Ale-xandra: “É o Vagner?”. Ela diz que sim. “O Vagner hoje é Vânia”.

Vânia Munhoz, que por oito anos namorou Ricardo, quando ainda se chamava Vagner, existe. Está viva e em Paris. E ainda não leu a matéria. “Vou dar uma olhada assim que tiver um tempinho”, ela promete na mensagem de áudio transmitida por Alexandra.

Dois dias depois, Vânia me adiciona no Facebook. Diz que ficou comovida com o texto “e muito triste por saber o que aconteceu com ele”.

Explica que o casal teve dois salões de beleza, um em São Paulo e outro em Araraquara, antes de Vânia se mudar para Paris, passar pelo processo de transição para assumir sua identidade feminina e começar um périplo de dezenas de cirurgias para retirar o silicone que um aplicava no rosto do outro. Vânia termina a mensagem dizendo que adoraria falar com Ricardo.

No meio de novembro de 2017, vou com Isabel ao Mandaqui. A infecção urinária que foi diagnosticada quando ele deu entrada pelo pronto-socorro, semanas antes, está curada. Um dos seus companheiros de quarto, o do infarto musical, recebeu alta, e Ricardo está prestes a ser liberado. Uma ultrassonografia do rosto dele mostra fraturas que parecem validar as histórias de espancamentos que ele sempre narrou. Mas nada que precisasse de cirurgia, segundo os médicos.

A assistente social do hospital afirma que sua internação na psiquiatria é provisória. Ele vai ficar lá até estar estabilizado, depois deve receber alta. Um membro do Ministério Público explica que é possível pedir na Justiça uma vaga definitiva em uma instituição psiquiátrica, e que a herança a que ele tem direito seja usada para custear sua estada num asilo.

Enquanto falamos com a assistente social, Vânia manda uma mensagem. Conto que estamos no hospital e pergunto se ela quer ver Ricardo. Ela diz que sim. Volto para o quarto e pergunto se Ricardo quer falar com um velho amigo. Ele diz que sim. Saco o celular e faço uma videochamada para Vânia. Ricardo olha para o rosto feminino na tela do celular e diz: “Eu estou falando comigo mesmo”.

Ela ri e pergunta: “Você ainda se lembra de mim, Ricardo?”. Ele responde: “É claro que eu me lembro de você. Você é o Vagner. Você é o amor da minha vida”.

Vânia sorri.

“Sou eu. Ricardo, eu quero que você saiba que eu te quero muito bem. Eu vou te ver quando for para o Brasil, tá?”.

Vânia sai de quadro por um segundo. Volta com algo no colo. É o cachorro que a acompanha em suas caminhadas por Paris. “Essa é a Gaya, Ricardo".

Faz vinte anos que os dois não se falam, após um término conturbado. “A gente tinha gatinhos”, diz Ricardo, “você lembra?” Vânia sorri e seus olhos se fecham mais do que das o-tras vezes em que sorriu. Estão cheios d’água.

Quando a ligação de vídeo termina, há duas trilhas de água que começam nos olhos de Ricardo e percorrem suas bochechas. Isabel sai do quarto para chorar no corredor. O homem da cama ao lado, que não queria saber da história de Ricardo, passa a mão no rosto enquanto olha para a tv, ligada em um programa policial. Desconfio que ele também está chorando.

Chico Felitti é repórter. Esse trecho é parte de seu livro Ricardo e Vânia - o maquiador, a garota de programa, o silicone e uma história de amor (Editora Todavia, 2019)

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