O caldeirão da Internet que agita fantasmas do nazismo no Brasil
Pegadas históricas do movimento alemão, ainda antes da segunda guerra, estão no sul, mas descendentes rechaçam senso comum do segregacionismo como herança cultural
A recente revelação de que o pai do chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, dificultou a extradição do Brasil de um oficial nazista conhecido como “a besta humana” em campos de concentração mexeu em um terreno pantanoso que, passados 74 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, ainda provoca curiosidade e temor nos brasileiros.
Não foi apenas Gustav Franz Wagner, responsável por mais de 250 mil mortes no campo de Sobibor, na Polônia, que viveu no Brasil. Outro nazista cruel, conhecido como o “anjo da morte” também passou os últimos anos de sua vida por aqui: trata-se do temido médico Joseph Mengele, que escolhia entre prisioneiros judeus, cobaias para experimentos eugenistas. Mengele passou quase duas décadas vivendo sob falsa identidade no interior de São Paulo e morreu na praia de Bertioga, em 1979.
As pegadas históricas do movimento alemão em território brasileiro são ainda mais antigas. Foi aqui que nasceu a primeira célula do Partido Nazista fora da Alemanha, em 1928, em Timbó, Santa Catarina. Antes de Getúlio Vargas extinguir todos os partidos brasileiros, em 1938, a sigla chegou a reunir quase 3 mil filiados no Brasil. O maior contingente estava em São Paulo. Na sequência vinham Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná.
O medo de que essas raízes pudessem significar perseguições em dias atuais apareceu com força em 2018. No ano passado, apenas no mês de outubro, a suástica nazista apareceu pichada em São Paulo (na USP e em um muro de colégio na zona oeste), em uma igreja em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, nas portas de um banheiro da Universidade Federal de Juiz de Fora, no Mato Grosso do Sul e na Paraíba.
O temor não é infundado, já que no passado recente, neonazistas brasileiros protagonizaram ataques bárbaros, como o de 2009, ocorrido ao final da Parada Gay de São Paulo. Naquela noite de junho, uma gangue de seguidores de Hitler chamada Impacto Hooligan espancou um jovem negro que morreu no hospital e explodiu uma bomba caseira no Largo do Arouche, deixando mais de 40 feridos. Nesse mesmo ano, neonazistas do Paraná mataram um casal de namorados, integrantes do movimento, por disputa de poder.
Apesar das marcas ainda frescas desses atentados, a polícia assegura que os de 2009 foram os últimos ataques de gangues neonazistas brasileiras. Desde então, elas estão em silêncio.
Na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) de São Paulo, não foi constatada nenhuma movimentação inusual dos bandos neonazis ao longo de 2018. Em Porto Alegre, o delegado Paulo César Jardim - especializado em investigações policiais sobre o tema - assevera: “O movimento neonazista não teve nenhuma ação no sul do Brasil nos últimos cinco ou seis anos. Se alguém disser o contrário, ou está mentindo ou inventando”.
Embora longe das ruas, a ameaça neonazista está viva na internet. Em um território em que não há o rigor de doutrinação exigido pelas gangues - cujos integrantes possuem manual de conduta e precisam ser profundos conhecedores da história e simbologia nazi - nas redes a ideologia se espalha, se confunde e reforça os preconceitos nacionais.
Dados da SaferNet, organização que combate violações de direitos humanos na internet, mostram que o neonazismo, assim como outros crimes virtuais, estão em ascensão. Entre 2017 e 2018, houve crescimento de 51,70% nas denúncias recebidas pela instituição a respeito de práticas neonazis nas redes. Apesar de alarmante, o aumento foi um dos menores entre todos os tipos de denúncias que a SaferNet recolhe. O que mais cresceu foram as imputações de usuários por violência contra as mulheres (1639,54% a mais) e xenofobia (567,93% a mais).
Mas essas violações não estão necessariamente desvinculadas. Foi o que aconteceu anos atrás com um caso de racismo investigado pelo Ministério Público de São Paulo, no qual um jovem afirmou em uma rede social que “negros ficam podres” se não tomarem banho. Quando prestou depoimento ao MP, o agressor disse ter “interesse especial pela história de Adolf Hitler e o nazismo”, embora não integrasse uma gangue formalmente constituída.
O promotor Christiano Jorge Santos, autor do livro Crimes de Preconceito e de Discriminação (Saraiva, 2ª edição, 2010) gosta de citar esse exemplo porque o autor da agressão, Leonardo Viana da Silva, foi o primeiro condenado em segunda instância por um crime de racismo no Brasil – em 2012.
“O fenômeno do neonazismo vive na maioria dos países nas sombras, mas não está desaparecido. Evidentemente por haver repressão legal e social, não soa bem se afirmar nazista. Porém, em certos momentos é possível que se sintam mais autorizados a agir e a retomar esse espaço”, acredita o promotor.
Já em 2007, antropóloga Adriana Dias mapeou uma rede que produzia e distribuía conteúdo para recrutamento neonazista, incluindo “vídeos, livros para download, cartazes para impressão e distribuição, manuais de procedimento para a guerra racial” e até livros de colorir para crianças, segundo um artigo da pesquisadora disponível na internet. Na época, ela contabilizou cerca de 150 mil membros conectados através de sites, comunidades, fóruns e até lojas virtuais.
“A sistemática muda muito e hoje em dia um dos principais focos é o aplicativo WhatsApp, muito mais eficiente do que blogs no recrutamento de pessoas, porque é possível replicar o conteúdo fora da mira da lei”, revela o promotor Christiano Jorge Santos, apontando o vilão das eleições 2018 no Brasil como o veículo central de ideias segregacionistas na atualidade.
O estereótipo da xenofobia
Os estudos da antropóloga Adriana Dias sugerem que, do contingente total de simpatizantes dos ideais nazistas no Brasil, um terço esteja em Santa Catarina. O achado da pesquisadora reforça um estereótipo atribuído sobretudo aos estados do sul, mas é refutado por outros pesquisadores.
“Criou-se um senso comum de associar neonazistas às colônias de alemães, mas são acusações infundadas”, objeta o historiador René Gertz.
Gertz pesquisou sobrenomes dos envolvidos em casos considerados neonazistas e encontrou poucos alemães, fato confirmado pelo delegado Paulo César Jardim, um dos maiores especialistas no assunto dentro da polícia brasileira.
De fato, entre os acusados pelo ataque terrorista à Parada Gay de São Paulo, em 2009, aparecem sobrenomes como Alcântara, Ferreira, Carvalho, Miranda, Silva, Guimarães e Nascimento. O mesmo acontece no caso mais rumoroso de ataque neonazista no Rio Grande do Sul, quando, em 2005, um bando atacou três judeus em frente a um bar - os culpados começaram a ser condenados somente no ano passado, 13 anos depois do crime.
“(Entre os 14 réus), somente um tem sobrenome completo alemão. Outros quatro tem uma parte do sobrenome alemão e os demais, nada”, desmistifica René Gertz.
A regra vale também para o assassinato no Paraná: Barollo e Corrêa ao lado de sobrenomes como Fischer e Wendler, esses últimos, de origem alemã.
“Algumas pesquisas sugerem que não existe correlação direta entre imigração alemã ou italiana e a formação dessas células neonazi. O que aparenta ser mais impactante é a leitura que esses grupos, muitos deles jovens com baixo nível de formação intelectual, fazem dessas regiões marcadas pela imigração alemã e italiana, uma leitura que constrói essas regiões como um local de ‘pureza’ étnica e racial”, confirma o também pesquisador de pós-doutorado da UFSM Odilon Caldeira Neto, professor do programa de pós-graduação da Universidade Federal de Santa Maria.
Conservadorismo é marca das comunidades
Se não há relação direta comprovada entre imigração alemã e células neonazistas no sul do Brasil, pesquisadores também apontam que os hábitos mais conservadores dessas comunidades descendentes de imigrantes que, podem, por vezes, reforçar os ideais segregacionistas de Hitler.
Lançado em 2017, o documentário Anauê, do diretor Zeca Pires, se debruça sobre a sociedade de Blumenau, na região de colonização alemã de Santa Catarina para investigar as relações entre o passado nazista e a cultura da sociedade contemporânea.
“Há uma ligação pelo menos educacional e de espaço físico. Tem muitas pessoas que ainda defendem o nazismo. No filme, há depoimentos que colocam em dúvida o número de judeus mortos em campos de concentração, e de admiradores de Hitler que duvidam que ele tenha sido o comandante do genocídio”, revela o cineasta e historiador.
Também historiadora, integrante do corpo docente da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), Marlene de Faveri sustenta que as ideias nazistas “perduraram no imaginário e nas representações de pessoas e famílias de origem alemã”, embora saliente o conservadorismo da sociedade como um fator importante, especialmente no atual contexto.
Ela dá um exemplo: Santa Catarina lidera o ranking de violência doméstica contra mulheres no Brasil, dado que ela atribui também à herança da crença na eugenia. “De tempos em tempos há uma explosão dessas ideias, que tem crescido nos últimos anos”, acredita.
Faveri observa que o atual momento político brasileiro é um ingrediente decisivo nesse caldo cultural. “O ambiente é favorável para essas elites que aceitam ideias conservadoras de exclusão, preconceito e xenofobia. Há ainda o aspecto religioso, que é um chamariz para ideias ultraconservadoras”, explica.
Já o historiador Odilon Caldeira Neto afirma a necessidade de não confundir as manifestações recentes com a organização de neonazistas profissionais. Apesar disso, não descarta que haja influência e defende que é preciso estudar as relações entre ambas.
“É necessário futuramente entrecruzar os dados de violência e simbologia nazista com a atuação desses grupos neonazi. Assim, será possível entender até onde esses atos são formas ligeiramente articuladas ou expressões mais diversificadas desse momento atual e do ódio à democracia que tem animado setores significativos do país”, conclui.
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