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“Maduro pede diálogo quando está com a água no pescoço”

Cardeal venezuelano considera que a situação no país já é irreversível e que a continuidade do regime chavista só trará mais repressão e pobreza

Francesco Manetto
O cardeal Baltazar Porras, depois da entrevista
O cardeal Baltazar Porras, depois da entrevistaAndrea Hernández

Ex-presidente da Conferência Episcopal da Venezuela, o cardeal venezuelano Baltazar Porras (Caracas, 74 anos) é uma das mais altas autoridades da Igreja Católica na América Latina. Em julho, o papa Francisco o nomeou administrador apostólico da arquidiocese de Caracas. Porras, crítico do chavismo desde o início, recebeu o EL PAÍS na paróquia Coração de Maria do município de Chacao horas depois de divulgada a carta enviada pelo papa Francisco a Nicolás Maduro para censurar sua atitude em relação ao diálogo. Recorda-se do dia em que, após a tentativa de golpe de Estado em 2002, Hugo Chávez lhe telefonou para pedir proteção e acredita que as negociações com a oposição só seriam viáveis após a saída da atual cúpula do poder.

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Pergunta. O que está acontecendo na Venezuela? Qual a sua leitura da guinada que ocorreu com a autoproclamação de Juan Guaidó?

Resposta. A nova posse [de Maduro] significa uma ruptura, a ilegitimidade de todo o processo que ocorreu nos últimos anos, apontada tanto por forças políticas como por instituições internacionais. Uma ilegitimidade jurídica que tem a ver com o constitucional, mas, para nós, como Igreja, a ilegitimidade moral reprovável é o exercício do poder, que é feito para o bem-estar e progresso, e o que aconteceu é bem o contrário. O Governo criou um poder paralelo que controla tudo, o que indica que o interesse não é o povo, mas simplesmente o poder. Só é favorecido em muitas coisas quem tem o carnê da pátria, quem se identifica com poder.

Isso gerou inquietação, e com a eleição da nova direção da Assembleia Nacional surgiram quase do nada estas manifestações multitudinárias com características muito particulares. São principalmente os setores populares em todo o país que expressam seu descontentamento, que tem a ver com a fome, com a necessidade das coisas mais elementares. E isso gerou uma repressão sobretudo dos setores populares. Um quase outsider despertou na população um sinal de esperança.

P. O foco agora está na ajuda humanitária.

R. Esta situação em relação à ajuda humanitária revela uma carência que tem sido sistematicamente negada pelo regime; isto é, que aqui nada está faltando. As carências no interior do país são crônicas há anos, e não por causa das sanções. Surgiu a necessidade de que aqui a mudança não seja cosmética, mas uma mudança estrutural. E isso está ligado a algo muito importante, que a quebra de confiança e credibilidade das agências do Estado é muito grande. Todas essas manifestações põem em evidência outro aspecto, que acho positivo: a imensa maioria do povo venezuelano quer uma solução pacífica, o menos traumática possível, porque nada ganhamos com mortos.

P. O Governo teme uma intervenção e recorre a uma retórica militar, bélica.

R. Em tudo se utiliza um vocabulário de guerra, vocabulário militar, aqui estamos em uma guerra econômica, há uma invasão que está prestes a chegar e temos que nos armar para nos defender. As feridas da guerra sempre são muito mais difíceis de curar. Temos de forçar todo tipo de saída pacífica, negociação. O problema é que, nas experiências dos últimos anos, na Venezuela a palavra diálogo está proscrita, e é quase um insulto falar em diálogo porque os mecanismos que foram usados no passado simplesmente serviram para o adiamento.

P. Qual é sua opinião sobre a carta do Papa?

R. Se é verdade o que saiu, é uma evidência, é uma verdade gritada. Não é nenhum segredo que houve uma série de ofertas e a mais evidente é a que foi feita quando o Papa, de boa vontade, apoiou os diálogos de 2015 e 2016, que foram uma chacota, que foi o que deu origem à carta do cardeal Parolin em 1º de dezembro de 2016, e que ainda não obteve nenhuma resposta. Se tivesse ocorrido naquela época, poderia ter sido até com o Governo do atual regime, mas neste momento é tamanha a quebra de confiança e de credibilidade que qualquer tentativa de fazer com o mesmo staff é praticamente impossível porque todos os órgãos do Estado estão sequestrados pelo Executivo.

P. O que considera que vai acontecer com as Forças Armadas?

R. Eles estão adotando uma série de passos. Ninguém pode agir contra a sua consciência e menos ainda se a ordem dada for para que matem outro. Em 2002, foi o presidente que pediu nossa intermediação para proteger sua vida. E o mesmo presidente, quando me ligou, me disse: 'Perdoe-me por todas as atrocidades que eu disse sobre o senhor, mas o senhor está disposto a proteger minha vida?' Ora, sim. Aqui não se trata da bolsa ou a vida, mas a equação tem que ser outra.

P. Acha que deveria haver diálogo com o chavismo?

R. Sem dúvida. Sim. Não se trata de tirar você para colocar a mim. Quando nos perguntam: vocês da Igreja estão com Maduro ou com Guaidó? Não, não estamos com nenhum dos dois. Estamos com pessoas. E nessas marchas não há pessoas que se identifiquem com apenas um setor. É preciso abrir espaços para um trabalho em comum, com espírito de reconciliação. É por isso que favorecer esta transição não é uma folha assinada em branco, primeiro estamos aqui para fazer cumprir a Constituição. A perda quase total da institucionalidade neste país significa que a instituição que permaneceu mais coesa provavelmente seja a Igreja Católica.

P. O que fracassou nas últimas tentativas de aproximação?

R. Em todo processo de diálogo é preciso colocar algo na mesa, os problemas reais. E isso nunca aconteceu. Em todas as tentativas que foram feitas este regime sempre pede o diálogo quando sente que a água está chegando a seu pescoço, e quando ela cai um pouquinho, logo se esquece. Na mediação do Vaticano, o processo foi manipulado e não se chegou a nada. Na última reunião oficial do papa Francisco com Maduro, ele fez ofertas que não cumpriu. Este regime sempre procura conversar com seus aliados de fora, aqueles amigos neutros, como no Uruguai. E com aqueles de nós que estão aqui dentro, queimando as pestanas, não se conversa em absoluto. Quer negar tudo, o que tem sido um dos defeitos deste regime desde o início, não dar lugar ao outro. O que isso mais provoca é um abismo na população.

P. Qual é o cenário mais provável em curto prazo?

R. Já estamos em uma situação irreversível. Irreversível não significa que ganhe um ou outro lado. Se este regime se consolidar, certamente será para maior repressão e maior pobreza. Existe essa janela aberta de uma realidade que pode ser diferente. Por ser irreversível na medida em que fique mais evidente quem é a favor da dignidade humana e de poder viver em paz, e que haja sensatez suficiente para se poder, digamos, negociar. Não se trata de eliminar todo mundo, mas o regime se mantém porque tem o apoio militar. E essas pessoas também têm famílias, sofrem os mesmos males que as outras.

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