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Tribuna
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A oportunidade perdida de passar a Justiça a limpo

A tarefa que o constituinte adiou era a nobre missão da Lava Toga, que sucumbiu à pressão corporativa

Ministros Dias Toffoli, Marco Aurélio Mello e Celso de Mello em outubro de 2018.
Ministros Dias Toffoli, Marco Aurélio Mello e Celso de Mello em outubro de 2018. Nelson Jr. (SCO/STF)
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Foi arquivado nesta segunda-feira o pedido de criação da CPI da Justiça — a “Lava Toga”, proposta pelo senador Alessandro Vieira (PPS/SE) na última quinta. O pedido havia conseguido o apoio de 27 senadores, o quórum básico para instalação da CPI.

Mas a retirada da assinatura de dois senadores, aos 47 do segundo tempo, sacramentou o fim do louvável esforço de passar a Justiça brasileira à limpo. A corporação venceu.

Poucas contribuições poderiam ser mais valiosas para o país neste momento histórico do que trazer o combate à corrupção para dentro do Judiciário brasileiro.

Em 1987, o constituinte optou por “adiar” a limpeza moral da velha Justiça, omissa e comprometida com a ditadura, talvez na esperança de que os velhos vícios se curassem naturalmente com o tempo. Trinta anos depois, as novas gerações chegaram aos altos cargos do Judiciário, e se lambuzaram nos negócios, na política e na corrupção.

Boa parte dos magistrados brasileiros são empresários. Abusam da licença constitucional para exercer o magistério, e constroem faculdades e projetos online, entre outros negócios.

Não se trata de fenômeno periférico, na verdade. Jovens juízes, que mal se acostumaram à beca, logo se apresentam ao público como “empreendedores”. Vários já possuem empreendimentos multimilionários, viajam o país e o mundo networking e promovendo seu business. Tudo amparado em interpretações jurídicas esdrúxulas e na complacência dos seus pares.

Ao lado dos juízes-empresários, estão os juízes-políticos. Inúmeros magistrados possuem conexões partidárias explícitas e abusam da seletividade. Suas armas são as manifestações na imprensa, as liminares, os pedidos de vista aleatórios.

Sob o pretexto de realizar a Constituição, os juízes-políticos intervêm em nomeações de ministros, destituem presidentes de outros poderes, mandam prender ou soltar sem qualquer limite ou controle, refazem o direito à sua ideologia. Não é à toa que a “governabilidade” hoje exige dos governantes “eleger”, desde o início, seus líderes na Câmara, no Senado e “no Supremo”.

A pior estirpe de magistrado, contudo, talvez seja o juiz-corporativo — ou corrupto mesmo. Ele usa o cargo para indicar seus filhos, sem lastro ou trajetória independente, para os tribunais superiores. Manipula regras para aumentar sua remuneração. Dá preferências aos casos dos “amigos”. E está se lixando para a situação econômica do país: no auge de nossa mais aguda crise, junta-se aos promotores e procuradores em protesto em frente ao Supremo por aumento salarial e manutenção do auxílio-moradia, mesmo para quem já possuía imóveis.

A luta destes magistrados “valeu a pena”. Em liminar esdrúxula, o Supremo autoriza a manutenção do benefício, com alto impacto para os cofres públicos já debilitados. Assim que o governo cedeu ao aumento, a liminar foi anulada. Ao mesmo tempo, o CNJ regulamentou o auxílio-moradia, e os magistrados ficaram com os dois.

Como nos tempos de autoritarismo, o Judiciário ainda vive às sombras. Quem tentar obter uma simples lista com salário detalhado dos magistrados, nos termos da Lei de Acesso a Informação, perceberá que transparência ainda não faz parte do dicionário da Justiça.

Seria impensável no Brasil hoje, por exemplo, a definição secreta das regras eleitorais. Mas os sorteios de relatores nos tribunais ocorrem no escuro. De forma similar, o único critério para definição das pautas e ordens dos julgamentos nas cortes é o humor do presidente.

Nada disso combina com o papel da magistratura em um Estado de Direito. Quando ingressam na carreira, os magistrados assumem um “celibato cívico”. Sua dedicação é recompensada com os mais altos salários e honras do funcionalismo público, incluindo dois meses de férias ao ano, aposentadoria generosa, e a máxima independência para pensar e decidir. Isso para que qualquer pessoa saiba que os guardiões das leis, imparciais e independentes, estão sempre a postos para arbitrar e resolver controvérsias. Ao mesmo tempo, contudo, a República espera de cada juiz que mantenha toda a distância da política e dos negócios.

A tarefa que o constituinte adiou era a nobre missão da Lava Toga, que sucumbiu à pressão corporativa. O Brasil e a magistratura ética e comprometida só teriam a ganhar com isso. No século XIX, Otto von Bismarck se notabilizou pela frase: “Os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis”. Hoje, no século XXI, o escândalo da cidadania é outro: “se soubessem como são feitas as coisas na Justiça, nunca mais conseguiriam pregar o olho.”

Ao que parece, ontem como hoje, há muita gente preocupada com nosso sono.

Daniel Vargas é doutor em direito em Harvard, advogado constitucionalista.

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