O “luto ambíguo” dos que esperam pelos familiares desaparecidos em Brumadinho
160 pessoas ainda não foram encontradas, o que dificulta o enfrentamento do luto dos que ficam. "Não há cura. A cura é encontrar o corpo", diz especialista
“É como se você fosse demitido e continuasse indo para o espaço de trabalho. Você não consolida a demissão, fica num vazio”. A médica Ana Cláudia Quintana Arantes, especialista em intervenções de luto, tenta explicar com palavras o que é o terrível sentimento de perder alguém, mas não encontrar o corpo para realizar os rituais de despedida. “É um espaço que não é de vida e nem de morte; a pessoa só não está lá”, diz ela. É esse vazio que pode ser enfrentado por dezenas de famílias e amigos das vítimas do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho. Passadas mais de duas semanas da tragédia que soterrou tantas vidas, a esperança dos familiares que ficam é que ao menos o corpo daquelas 160 vítimas que ainda estão desaparecidas seja encontrado para que o último adeus possa ser dado. Até o domingo,156 corpos haviam sido encontrados e nove deles ainda não haviam sido identificados.
De acordo com Arantes, o fato de não encontrar o corpo agrava ainda mais o processo de enfrentamento do luto. “Quando você não tem o corpo, parece que a pessoa não morreu”, diz. O vazio no olhar de tantos parentes que esperavam por alguma notícia na Estação Conhecimento em Brumadinho na semana passada materializava esse sentimento descrito por ela. Quando a Vale anunciou uma doação de 100.000 reais aos familiares dos mortos e desaparecidos, alguns se recusaram a realizar o cadastro para receber o dinheiro. “Não quero dinheiro, quero meu irmão de volta”, disse Paulo Renato Oliveira da Silva à reportagem, justificando a ausência na fila do cadastro. Como ele, outros tantos negaram a “doação” da Vale antes de ter alguma informação sobre o paradeiro de quem estava na mineradora ou nos arredores naquele fatídico 25 de janeiro. Outros se diziam "sortudos", como Michel Fernandes Guimarães que afirmou ao menos ter conseguido enterrar o irmão.
Em meio a tanta dor, a espera por encontrar os desaparecidos é um fio comum de esperança ao qual se agarram os familiares que vivenciam diferentes tragédias. Em janeiro de 2011, uma forte chuva sobre a região serrana do Rio de Janeiro deixou mais de 900 pessoas mortas, ao menos 99 desaparecidas, além de milhares desabrigadas. Sandra Rodrigues de Oliveira, doutora em psicologia clínica pela PUC do Rio de Janeiro, fez sua tese sobre o luto das famílias que perderam parentes naquela que foi classificada como a maior tragédia climática da história do país. Ela explica que ter esperança faz parte do que chama de “luto ambíguo” diante de algo tão doloroso. “Embora você saiba que a chance de a pessoa estar ali [soterrada] é muito grande, enquanto você não a encontra, você fica na esperança de, quem sabe, encontra-la com vida”, diz.
“Dois anos após a tragédia [na região serrana do Rio], perguntei a várias famílias se elas ainda achavam que o parente poderia aparecer e todas disseram que sim”
“Nos primeiros dias isso é mais intenso", segue ela. "[Em Brumadinho] muita gente dizia que a pessoa podia estar ilhada, esperando resgate, mesmo tendo a informação de que ela estava em local de alto risco, como o refeitório, no momento do rompimento da barragem”. Com o passar do tempo, essa esperança diminui, mas pode custar até anos para que essa chama se apague por completo. “Dois anos após a tragédia [na região serrana do Rio], perguntei a várias famílias se elas ainda achavam que o parente poderia aparecer e todas disseram que sim”, conta Oliveira.
A psicóloga explica que essa expectativa de encontrar a pessoa com vida, ou ao menos o corpo, está inserida no que ela chama de “flutuação dos sentimentos”, em que um único fato isolado é capaz de alimentar esperança. “A primeira vítima encontrada em Brumadinho foi uma médica que trabalhava na Vale. Depois disso, as pessoas ficam se perguntando: ‘será que a minha hora vai chegar? Por que acharam a médica, lá atrás, e não acharam o meu familiar? Será que estão procurando mais funcionários da Vale?’. Isso tudo passa na cabeça dos familiares”.
Luto coletivo
Maria Helena Pereira Franco, psicoterapeuta, professora da PUC de São Paulo e autora de livros sobre o luto, afirma que os rituais têm função muito importante no processo de superação da perda. “Eles são organizadores, ajudam a colocar no lugar a experiência para a família”, diz. “Por isso, não ter o corpo para fazer o ritual pede que a gente faça alguma coisa para substituir esse ritual”. Sandra de Oliveira lembra que na região serrana do Rio, em 2011, foi realizado um enterro coletivo com caixões vazios, contendo somente alguns pertences dos desaparecidos. “Houve famílias que compareceram, e outras que não compareceram”, afirma. “Para algumas pessoas, enterrar com os pertences era até ofensivo”.
Nesse sentido, Oliveira afirma que é possível que a Vale ofereça algum ritual simbólico, inclusive para dar andamento à parte burocrática dessa tragédia. De acordo com o Código Civil, há alguns casos em que a morte presumida pode ser atestada, tendo o mesmo valor que o atestado de óbito. Quando não se trata de desastres ou acidentes, é preciso esperar por cinco anos após o desaparecimento para que seja atestada a morte presumida. Mas em casos como o de Brumadinho, da região serrana do Rio, ou em acidentes aéreos em que alguns corpos não são encontrados, algumas provas podem ser utilizadas para dar andamento na documentação. “Em um acidente aéreo, por exemplo, tem a lista de passageiros que comprova que a pessoa estava lá”, explica Maria Helena Franco. É uma questão delicada e deve ser analisada caso a caso, já que depende de as buscas terem sido encerradas —algo que ainda não ocorreu em Brumadinho— e coloca uma pá de cal sobre a esperança dos familiares de encontrar a vítima com vida.
"É muito diferente de quando você vê o corpo, constata que a pessoa morreu. É tipo você ser abandonado”
Ana Claudia Quintana Arantes ressalta que independentemente da questão burocrática, quem fica precisa de acompanhamento de profissionais. “Não tem a cura para isso. A cura é encontrar o corpo”, afirma. “O processo de ressignificação de sua vida a partir do desaparecimento é muito diferente de quando você vê o corpo, constata que a pessoa morreu. É tipo você ser abandonado". Ela lembra, porém, que em casos de tragédias coletivas, em que há muitas vítimas, os que ficam podem confortar uns aos outros. “As pessoas todas que perderam alguém podem se amparar, porque cada uma delas sabe o que a outra está vivendo”, afirma. “É um processo de uma dor compartilhada que, de alguma forma, encontra um pouco de alívio. E aí você tem mais jeitos de ressignificar esse processo, que é fundar associações se amparar uns nos outros... Não resolve o processo de luto, não é uma alternativa, mas de alguma forma traz algum sentido”.
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