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No Rio de Janeiro se transa muito. Em Bangladesh também

É a prova de que estamos no mesmo mundo e de que, da Princesa Isabel ao outro lado da India, estamos conectados

Árvore de natal na Lagoa, no Rio.
Árvore de natal na Lagoa, no Rio.Alexandre Brum (EFE)

Leia abaixo o texto inédito dos artistas Yuri Firmeza e Cezar Migliorin. Firmeza foi um dos expositores da mostra Arte-Veículo, que acaba de encerrar no Sesc Pompeia. Como parte da programação, houve intervenções de artistas na mídia, incluindo esta inserção no site do EL PAÍS, nas quais o artista justapõe suas reflexões atuais com suas colaborações para o jornal O Estado de Minas, na década passada.

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Ela desceu do ônibus na Princesa Isabel, duas quadras da praia. Copacabana encontrava homens de boné com camisa de material sintético, com latas de cerveja de ontem e senhores atléticos e madrugadores que na noite anterior transaram com suas senhoras e jovens de pele morena e tatuagem azul. No Rio de Janeiro se transa muito. Em Bangladesh também, em Beirute não menos. Isso só prova de que vivemos no mesmo mundo e que da Princesa Isabel ao outro lado da Índia, estamos conectados. O ônibus que a deixou na praia queimava diesel e seu proprietário não tinha costume de ir a Bangladesh, apenas os restos que seus ônibus deixavam pelo mundo, chegavam por ali: aquele aquecimento comprova que estamos conectados. Bangladesh nos mandava por preços ótimos as camisas dos motoristas. O patrão dos motoristas, naquele mesmo domingo, encontrava o governador, o prefeito, o secretario de transportes e garantia que tudo ficaria bem. Para todos.

O rapaz de tatuagem azul, onde se lê Carolina e se lê também Keven, ficaria ali com o dono dos ônibus por pouco tempo. Teriam destinos diferentes na cadeia. Quando chegou na Princesa Isabel, depois da noite com o casal madrugador, esperou o ônibus que, mesmo no domingo, vinha cheio, vinha quente e com um ranger que dificultava dormir no assento que conquistou com a força do corpo. Ela desceu, ele subiu, quase se viram na Princesa Isabel. Se tivessem se visto, provavelmente teriam se amado, como é normal. Nesse dia, antes de ser preso, o dono do ônibus acordou tarde e comeu apenas frutas antes do encontro com o governador que comeu de tudo, gulosamente até o fim.

Por poucos instantes os três dormiram. Ela no sol, ele no ônibus voltando para Realengo e o empresário, alheio ao sono do rapaz, à existência dos trabalhadores de Bangladesh e ao seu próprio destino. Ninguém que faz tudo recebe algo que não seja tudo isso, entende? Para o dono dos ônibus fazia todo sentido e assim ele podia dormir. Diesel, borracha, ferro, trocar a marcha, garagem, grana, fumaça, casamento no Copacabana Palace. Aí sim! Rapazes sadios, moças queimadas. Isso é que é cidade! Merece um grande evento: trazer Roma para cá? Quer evento maior? Vamos ser Roma durante um mês, ou Londres. Quando for 3:30, no inverno, apagamos o sol, servimos cervejas quentes e abrimos o museu britânico para estudantes. Isso sim é um grande evento! Investimentos, luzes de LeD, telas de plasma, arquitetos renomados, parceria público privada, organizações de mídia. O povo merece Roma ou Londres por um mês. Imagine o legado! Se aqui já se transa tanto, imagina sendo noite tão cedinho, como lá na Europa! Imagina a orgia no Victoria Park ao cair da tarde na beira da Baía de Guanabara. Aí sim! Imagina ver o coliseu lá de cima do Pão de Açúcar.

O sol queimava forte e ela já podia virar de costas.

Terra da luz e do vento. Miami - "Ceará em letras garrafais de boas-vindas. Me ame, Ceará”. Leu em voz alta e riu fartamente segurando a camisa polo e andando mais devagar que o resto do grupo. Ainda no aeroporto, o retrato dos humoristas acima das escadas rolantes e uma prévia do parque aquático com um dos maiores toboáguas das Américas, quiçá do mundo. Aquele tanto de boias espalhadas pelo corredor, as paisagens adesivadas nas paredes, os novos destinos aéreos. “É muita boia” e riu fartamente apontando para a publicidade de churrascaria e tocando a barriga sob a camisa polo. Corredores: Jericoacoara, one of the ten most beautiful beaches in the world. Tem bitch! E ria... As férias começavam. Tirou o jogging, enquanto lia as dicas no mapinha turístico que pegou no primeiro guichê. Estampado em vermelho na capa: inspirada na London Eye. Ai, Ai, Ai, Ai.

Ela também pegou o mapinha. Estava ali a tal roda de 100 metros: “Cristo Redentor, Rio de Janeiro, 38 metros de altura. Elevador Lacerda, Salvador, 73 metros de altura. Roda Gigante, Fortaleza, 100 metros de altura”. Mais que o dobro, exclamou baixinho e repetidamente. Mais que o dobro do tamanho do Cristo Redentor. Arrumou a alça do top e sentiu medo. Sozinha não vou. "24 cabines climatizadas com 30 metros cada”. Se sentiu minúscula diante da monumentalidade. Ainda se desse para ver o Coliseu, o Big Ben, um escorrega até a Disney.

Queria praia, água morna e mais cerveja gelada. Na primeira noite sonhou que perdia a carteira de identidade. Nas férias até os sonhos são óbvios. O mapinha dobrável como um origami a fez mudar de rota. Ali estava a dica para não começar a beber tão cedo. Mas talvez fosse preciso. Dobrado e redobrado, apresentava a imagem de um prédio modernista, não citando o arquiteto, nem o paisagista: Mausoléu Castelo Branco. Na outra foto ela viu Médici e Geisel verdemente uniformizados abraçados na inauguração do mausoléu. Ceará é história, é gente importante, é moderno. Contemporâneo, pensou se não fosse ela. Estava tudo ali, informado, dobrado e agora guardado no bolso do casaco que ela voltara a vestir. Fazia frio no aeroporto, frio no táxi, frio na farmácia onde parou para comprar o protetor solar e alguma coisa para o fígado, para o estômago, para a cabeça e para o cansaço. Férias e tchau mundo! Só fica o corpo. Farmácias e shoppings, imensos como o maior toboágua, a maior roda gigante, a luz mais intensa e com um bônus: história!

Aquela brisa, a água morna do mar, o excesso de luz. Que cidade cosmopolita! Carolina e Keven, azuis, teriam também adorado essa cidade. Me ame.

Artista publicou textos em jornal de Minas

Proposta do artista Yuri Firmeza é por lado a lado seus pensamentos atuais com sua experiência no jornal O Estado de Minas. Acima, imagem da página que publicou texto seu em colaboração com Fabricio Melo.

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