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China investiga suposta criação de bebês geneticamente modificados

Hospital onde o geneticista responsável pelo caso trabalhava acusa o pesquisador de falsificar assinaturas do comitê de ética que deu aval à experiência

Macarena Vidal Liy
He Jiankui refletido na tela do computador de seu laboratório, na universidade chinesa de Shenzhen
He Jiankui refletido na tela do computador de seu laboratório, na universidade chinesa de ShenzhenMark Schiefelbein (AP)

Repulsa absoluta de todos os lados e até uma denúncia à polícia. Essa foi a resposta ao geneticista chinês He Jiankui, que afirma ter criado os primeiros bebês geneticamente modificados da história, utilizando a técnica conhecida como CRISPR para causar a mutação de um gene em um par de gêmeas, que assim se tornaram teoricamente imunes ao vírus da AIDS. As autoridades científicas desse país abriram uma investigação sobre o caso, que gerou tantos questionamentos como críticas. O Comitê de Edição Genética chinês condenou o experimento e advertiu que ele contraria as leis do país e o consenso da comunidade científica internacional. O hospital onde He trabalhava o denunciou por ter supostamente falsificado assinaturas de um documento do comitê de ética que, segundo a instituição, nunca chegou a se reunir.

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Um dia depois do surpreendente anúncio, ainda não está claro se a experiência foi real. Não se sabe se realmente ocorreu com todo o rigor necessário e o respaldo de um comitê de ética, como afirma o cientista numa série de vídeos postados no YouTube e no site de seu laboratório, ou se nos encontramos diante um professor Frankenstein do século XXI, agindo de forma solitária e disposto a tudo para realizar sua obsessão. Ou mesmo se se trata de uma grande fraude.

Todas as instâncias mencionadas por He Jiankui como implicadas na investigação desmentiram taxativamente, de um modo ou outro a sua participação. O hospital com o qual o cientista afirma ter colaborado, o HarMoniCare em Shenzhen (no sudeste da China), se antecipou e apresentou uma denúncia por fraude. As assinaturas constantes em um documento pelo qual um comitê de ética do centro dava seu aval à investigação, segundo o hospital, “parecem falsificadas, e nunca ocorreu uma reunião do nosso comitê de ética. Pediremos ao Departamento de Segurança Pública [polícia] que investigue as responsabilidades legais.”

Universidade se desvincula

A Universidade do Sul da China de Ciência e Tecnologia (SUST), em Shenzhen, onde He Jiankui era chefe de um laboratório, negou ter conhecimento da prova, que o geneticista chinês tivesse solicitado permissão à instituição ou que a experiência tenha se dado em suas instalações. Também salientou que ele se encontra de licença desde fevereiro e até 2021.

O mais alto órgão de saúde da China, a Comissão Nacional de Saúde, indicou por sua vez em um comunicado que deu ordens para que as autoridades provinciais “investiguem detalhadamente e verifiquem” as afirmações de He Jiankui. A Comissão de Saúde e Planejamento Familiar de Shenzhen confirmou que já foi aberto um inquérito para “verificar a autenticidade do aval ético ao teste”.

O geneticista, formado nas universidades norte-americanas Rice e Stanford, surpreendeu o mundo nesta segunda-feira, 26 de novembro, ao anunciar o nascimento, há “algumas semanas”, de Nana e Lulu, duas gêmeas chinesas que teriam tido seu gene CCR5 modificado. Esse gene serve de porta de entrada para o ataque do vírus HIV ao sistema imunológico humano. Segundo He, as meninas se encontram em perfeito estado de saúde, em sua casa, e sua experiência não provocou nenhuma mutação indesejada.

O cientista, que retornou à China em 2012, recrutou sete casais heterossexuais voluntários para seu teste. Em todos eles, o homem era portador do vírus da AIDS. Até conseguir a gestação com êxito dos embriões em Grace, a mãe das gêmeas, He usou onze embriões em seis tentativas de implantação.

Nos vídeos postados no YouTube, He afirma está disposto a aceitar as críticas e a polêmica em torno de um passo que considera cientificamente necessário. “Não se trata de criar bebês projetados, apenas uma criança saudável”, afirma. Não busca melhorar a inteligência, mudar a cor dos olhos, a aparência ou algo similar. Não se trata disso.” Seu método, insiste, pode ser a única maneira de curar alguma doença.

He deve falar nesta quarta-feira, 28, na cúpula mundial sobre edição de genoma humano que acontece nesta semana em Hong Kong, em uma intervenção que certamente irá gerar enorme interesse. O especialista não foi visto em público nas sessões desta terça-feira, informa Victoria Pascual.

Se o que He diz for verdade, terá sido dado um passo gigantesco na engenharia genética. Um passo que a comunidade científica dava como certo que aconteceria um dia, embora sob estrita regulamentação. Atualmente, uma moratória não declarada entre os cientistas de todo o mundo impede a modificação genética de embriões humanos viáveis. A legislação nos Estados Unidos e na Europa considera ilegal o experimento de He. Mas na China tais experimentos são regulamentados com menos rigor. E o próprio geneticista, em seus vídeos, alude a uma pesquisa realizada pela Universidade Sun Yat-Sen, na China, em que dois terços dos entrevistados apoiam esse tipo de pesquisa para tratar doenças, se for realizada com garantias suficientes.

Na segunda-feira, um grupo de 122 cientistas chineses manifestou sua condenação categórica do experimento de He, que foi considerado uma “loucura”.

As Academias Nacionais de Medicina, Ciência e Engenharia dos Estados Unidos, organizadoras do congresso de que He participará, lembraram em um comunicado que vários estudos deram diretrizes para experiências com modificações genéticas que podem ser herdadas. Essas diretrizes consideram que a pesquisa nesse campo poderia ser permitida se uma avaliação científica aprofundada prévia deixar claro seus riscos e benefícios, se existirem razões médicas que a justifiquem e não houver nenhuma outra maneira de resolver o problema, e se todo o procedimento for feito com máxima transparência e supervisão. Em todo caso, qualquer teste deve ter apoio público e ser realizado com muita cautela.

“Ainda resta esclarecer se os protocolos clínicos que resultaram nos nascimentos na China seguiram as diretrizes desses estudos”, aponta o comunicado das Academias.

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