Menos comunicação em nome da democracia?
Mais que WhatsApp e 'fake news', o conservadorismo impulsionado pela indignação impulsa Bolsonaro
O WhatsApp está sendo pressionado a limitar as possibilidades que o aplicativo oferece para seus usuários se comunicarem. A justificativa para esse pedido, publicado recentemente por pesquisadores no The New York Times, é que esse aplicativo de troca de mensagens seria responsável pela difusão de "um número alarmante de desinformação, boatos e notícias falsas". Por causa disso, os brasileiros estariam decidindo seus votos "com base em informações falsas e distorcidas."
Em resumo, a recomendação é que o WhatsApp limite a possibilidade de usuários brasileiros participarem da circulação de mensagens. A empresa faria isso reduzindo o número de vezes que o mesmo conteúdo pode ser repassado e diminuindo o número de pessoas que podem fazer parte de um grupo. Uma solução parecida foi posta em prática recentemente na Índia depois que a disseminação de informações falsas pelo WhatsApp provocou uma série de linchamentos.
Não desprezamos a importância de temas como os disparos em massa denunciados pela Folha de São Paulo e pela revista Época, e do uso declarado e ostensivo de desinformação - como no caso do "kit gay" - para produzir pânico moral. Nem ignoramos que existem interesses comerciais de empresas como Facebook, que controlam o acesso a informação sobre atividades potencialmente ilegais. Nos concentramos em examinar fatores que não são tecnológicos nem ilegais. Ignorar esses aspectos e falar apenas do WhatsApp seria como culpar a Samsung, a LG ou a Panasonic pelo conteúdo veiculado pela TV. Se as ferramentas de comunicação estão disponíveis para todos os lados, o elemento diferenciador neste caso está sendo a força do engajamento da campanha Bolsonaro, que resultado de um uso competente e de longo prazo da internet para cultivar relacionamentos. E o combustível desse engajamento foi a indignação expressa por setores mais conservadores da sociedade.
Como os casos de Trump e Brexit?
Falar sobre uso de redes sociais para a manipulação de eleições traz à mente os casos recentes da eleição de Trump nos Estados Unidos e do plebiscito em que os britânicos escolheram romper o vínculo atual com a União Europeia.
Há sim pontos de contato entre esses dois eventos e o Brasil. Nesses e em outros países, vemos a emergência de vozes que defendem valores conservadores e nacionalistas. O candidato Jair Bolsonaro se promove como representante desses valores e se posiciona como salvador do país contra as ameaças da corrupção, da falta de segurança e do petismo. Mas, do ponto de vista técnico, o caso brasileiro é diferente do americano e do britânico.
No Brasil, o canal responsabilizado por disseminar conteúdo falso e assim comprometer o resultado da eleição foi o WhatsApp. E esse tipo de material é produzido, pelo menos em parte, por ações descentralizadas de militantes e simpatizantes. Nos Estados Unidos e no Reino Unido, o Facebook foi o veículo usado para a suposta manipulação. E os cidadãos teriam sido influenciados a partir de ações de marketing oficiais da campanha, baseados no uso do perfil de milhares de usuários analisados pela empresa Cambridge Analytica.
Essa distinção é importante. A característica da campanha do Bolsonaro nas redes e no ambiente mobile se parece, do ponto de vista da organização e coordenação, com eventos geralmente apreciados por analistas progressistas, como a Primavera Árabe e o movimento Occupy Wall Street. Do ponto de vista ideológico, há diferenças óbvias entre esses casos e o da campanha para eleger o candidato do PSL, mas eles têm em comum o fato de serem o resultado de grande engajamento voluntário. Engajamento que acontece dentro mas também fora da internet, por meio de muitas manifestações e encontros presenciais.
Mais comunicação compromete a democracia?
Um dos aspectos importantes dos regimes fortes é o controle da circulação de informação. No Brasil dos militares, havia censores trabalhando nas redações dos veículos mais influentes. Era responsabilidade deles dizer o que podia ou não ser publicado.
Um problema do argumento que responsabiliza o WhatsApp por comprometer, pela desinformação, o resultado da eleição brasileira é que a abundância —e não a limitação— dos canais de comunicação seja um problema para a democracia, considerando que a mesma tecnologia estava e está disponível para qualquer pessoa com acesso a um smartphone e a uma conexão para a internet.
Podemos ainda questionar esse argumento —da responsabilidade do WhatsApp para comprometer o resultado da eleição brasileira— por outro caminho. Dizendo, por exemplo, que o problema está na própria internet. Porque o WhatsApp existe e chegou a essa popularidade por causa da infraestrutura que permite a transmissão de dados descentralizada.
É assim que funcionam e-mail, listas de discussão, fóruns e também outros aplicativos como o Telegram, que pode ser adotado rapidamente caso o WhatsApp se torne inconveniente. Essa capacidade de rearticulação usando outras ferramentas já foi demonstrado, no Brasil, nas vezes em que a Justiça impôs a suspensão do funcionamento do WhatsApp. Certamente no próximo ciclo eleitoral em 2022 estaremos falando de outra ferramenta.
Conservadorismo, indignação e engajamento (não necessariamente nessa ordem)
Há um ponto final a ser considerado no lugar de atribuir a uma solução tecnológica a responsabilidade exclusiva ou principal pela manipulação do resultado desta eleição. O nosso argumento é que o meio e a maneira como ele é usado refletem uma estrutura participativa robusta, engajada e afiada para criar e transmitir conteúdo e interagir online.
Poderíamos comparar Bolsonaro a Obama como um líder capaz de mobilizar pessoas a trabalharem por sua campanha, mas essa comparação seria injusta com Bolsonaro. A campanha Obama resultou também do carisma do candidato; mas Obama também usou fartamente de anúncios televisivos. Diferente de Obama, Bolsonaro é um azarão que se lançou candidato por um partido com importância periférica.
Bolsonaro teve, no primeiro turno, escassos oito segundos de TV, contra os muitos minutos dos representantes do PSDB, MDB e do PT. E, junto com isso, ele constantemente desafiou e foi retaliado pelos principais grupos de mídia do país.
A campanha de Bolsonaro parece ter sido o resultado de uma gestão eficiente (mesmo que acidental) do uso das mídias sociais. Uma gestão que não teve início com a propaganda eleitoral, mas que vem sendo cultivada ao longo dos anos. O conteúdo que circula pelo menos em parte surge dessa relação sinérgica entre pessoas que se identificam com o candidato do PSL e sua forma autêntica de se comunicar.
Esse engajamento parece ser consequência, também, da rejeição mais generalizada ao PT e ao petismo. Não só sua campanha está sendo eficiente em se comunicar com potenciais apoiadores; o número de apoiadores cresce na medida em que Bolsonaro se tornou a opção mais viável de vencer valores e causas associadas ao PT.
Portanto, não estamos defendendo aqui que o que vem sendo chamado —frequentemente de maneira vaga— de fake news tenha uma importância menor nesta eleição. Temos de combater fake news sim. Nosso argumento é que os eleitores não são tão passivos e manipuláveis como talvez gostaríamos que eles fossem.
Desde eleições anteriores, temos bots e ações subterrâneas de "guerrilha online" para disseminar boatos. As máquinas partidárias conhecem essa frente de atuação e investem nela para desconstruir, pela desinformação, seus adversários. Mas devemos nos perguntar: por que um candidato está se saindo melhor nesse campo mesmo ele tendo recursos financeiros aparentemente menores e tendo a grande mídia o subestimando?
Sim, a desinformação via principalmente WhatsApp foi um fator importante nesta eleição. E, sim, ações planejadas para a criação e disseminação de conteúdo aconteceram, como o caso potencial que foi denunciado recentemente pela Folha de São Paulo e pela revista Época. Mas devemos considerar, primeiro, a grande quantidade de conteúdo gerado espontaneamente pelo engajamento voluntário de pessoas. E além disso, o quanto a pessoa que recebe tem a predisposição para acreditar no que está sendo dito —mesmo que não acredite literalmente na informação.
Os autores deste artigo não defendem nenhuma candidatura em particular, mas a vitória de Bolsonaro será também a consequência do empoderamento de pessoas comuns que se engajaram usando as ferramentas disponíveis para defender seus valores, sua indignação e visões de mundo. A fake news é um dos subprodutos desse empoderamento, junto com a ampliação dos debates sobre política. E iremos descobrir se o candidato que defendeu diversas ideias controversas poderá, como presidente, entender que a abundância de canais de comunicação não seja uma boa ideia.
Juliano Spyer é antropólogo e atua na Alexandria Big Data. David Nemer é professor da Universidade do Kentucky. Mauricio Moura é fundador do IDEIA Big Data.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.