Há um perigo no Brasil e não fechamos os olhos
Numa sociedade tão marcada pela desigualdade social e por divisões profundas, a política do ódio ganhou espaço e conseguiu apoios vastos
O primeiro turno das eleições presidenciais brasileiras confirmou o avanço da estratégia do choque e pavor: quase metade dos eleitores deu o seu voto a Jair Bolsonaro, que tem feito carreira pedindo o assassinato de dezenas de milhares de pessoas, sugerindo a esterilização das mulheres pobres e desprezando os valores essenciais da liberdade e democracia. A desagregação do sistema político brasileiro, em particular desde a impugnação da presidente Dilma Rousseff, a quem aliás não foi imputado qualquer crime mas apenas irregularidades de gestão orçamental, está a ser acentuada por esta vertigem de ódio personificada por Bolsonaro. Numa sociedade tão marcada pela desigualdade social e por divisões profundas, a política do ódio ganhou espaço e conseguiu apoios vastos, entre associações empresariais, dirigentes dos partidos tradicionais e várias igrejas, envolvendo mesmo intervenções partidarizadas de juízes. Assim, um fascista pode ganhar as eleições numa das maiores democracias do mundo, ameaçando as regras básicas da vida social. Quando a sinistra memória de Pinochet ou de Videla ainda está tão presente, este clamor por uma ditadura militar não pode ser ignorado.
Há mais de 200 anos, Goya pintou um drama a que deu o título de “o sono da razão produz os monstros”. Foi sempre assim, mas por vezes leu-se nesta constatação a rendição perante a inevitabilidade. Pela nossa parte, não aceitamos soluções irracionais nem o silêncio covarde perante as tragédias anunciadas. É por isso que, considerando os nossos pontos de vista distintos, nos juntamos hoje para um apelo fundamental contra a ameaça monstruosa no Brasil, que afeta todos os povos, em particular na América Latina, mas também outros continentes.
De fato, a peste antidemocrática está a se espalhar. Assistimos com preocupação à separação de crianças dos seus pais e a depoimentos judiciais de meninos e meninas de dois e três anos em casos de expulsão de imigrantes nos Estados Unidos. Notamos a normalização da violação dos direitos humanos no tratamento em vários países europeus de refugiados de guerras e de imigrantes que fogem da fome. Indigna-nos a conivência de um grande partido europeu com a campanha de desmantelamento da independência do sistema judiciário e da liberdade de imprensa na Hungria. Lemos com indignação o reconhecimento pelo presidente das Filipinas da sua atuação em assassinatos extrajudiciais. Que o Brasil possa vir a ser um novo campo para a discriminação das diferenças, o desprezo pelas mulheres ou a vertigem da violência, é também motivo para preocupação, e sobretudo para uma escolha que ninguém deve ignorar: pela nossa parte, tomamos posição contra a indignidade.
Notamos ainda que muitos responsáveis políticos que apelaram à rejeição da extrema-direita quando no segundo turno das eleições presidenciais francesas se opunham Jean-Marie Le Pen e Chirac ou, depois, Marine Le Pen e Macron, se calam agora perante uma opção tão clara, se não ainda mais gritante. Pelo nosso lado, não nos deixamos condicionar por calculismos mesquinhos. A democracia e a liberdade são indivisíveis. Os democratas e a democracia brasileira contam com a nossa integral solidariedade e empenho.
Freitas do Amaral é jurista português, foi presidente da Assembleia Geral da ONU e ministro de vários governos. Pilar del Rio é jornalista espanhola, presidenta da Fundação José Saramago. Francisco Louçã é economista português, membro do Conselho de Estado e fundador do partido Bloco de Esquerdas.
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