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“Bolsonaro inconscientemente queria divulgar meu livro sobre educação sexual”, diz escritora

Autora de 'Aparelho Sexual e Cia' critica o presidenciável após propagada negativa sobre sua obra. "Eu acho que suas obsessões dizem muito sobre o que ele próprio tem na cabeça", argumenta

Hélène Bruller.
Hélène Bruller.Instagram

A escritora francesa Hélène Bruller não sabia que o seu livro Aparelho Sexual e Cia. (Le Guide du Zizi Sexuel, no original em francês) havia se tornado alvo no Brasil de uma verdadeira cruzada promovida por Jair Bolsonaro, candidato à presidência da República pelo PSL. Mas não se pode dizer que ela, que assina a obra com o suíço Philippe Chappuis (conhecido como Zep), tenha ficado propriamente surpresa: “Grupos extremistas católicos já tentaram proibir o livro e a exposição que foi feita a partir dele. Como sempre, aumentaram o sucesso da obra. Talvez eu devesse agradecê-los... Mas aí já é me pedir demais”, ironiza a autora, em uma entrevista por e-mail dada ao EL PAÍS. Se os ataques de Bolsonaro à obra são uma espécie de reedição de algo que Bruller já viveu, a afiada ironia que ela usa para se referir às críticas de outros tempos tampouco muda quando ela é questionada sobre as declarações do capitão reformado do Exército brasileiro: “Eu acho que lá no fundo do Bolsonaro existe um pequeno garoto, o petit Jair, que teria adorado se, na sua infância, lhe tivessem dado de presente um exemplar de Aparelho Sexual e Cia", diz.

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O livro de Bruller foi publicado pela primeira vez em 2001 e lançado no Brasil seis anos depois, pela Companhia das Letras. A obra está esgotada na editora brasileira e, por aqui, poucas pessoas sabiam de sua existência. Isso até a noite da última terça-feira, quando Bolsonaro mostrou o livro durante a tradicional rodada de entrevistas que os presidenciáveis dão ao Jornal Nacional. Ele sugeriu na ocasião que a publicação era parte do chamado kit gay —nome pejorativo dado ao Escola sem Homofobia, projeto de formação de professores para temas referentes a direitos LGBT. No horário mais nobre da televisão, Bolsonaro não se preocupou em dar dois esclarecimentos aos espectadores: o kit gay foi barrado pelo Governo Dilma Rousseff em 2011, sem nunca ter saído do papel; e o livro Aparelho Sexual e Cia. não fez parte do material produzido para o Escola sem Homofobia. Tem mais: o livro jamais figurou em algum programa do Ministério da Educação e apenas 28 exemplares foram comprados por um programa do Ministério da Cultura e distribuídos para bibliotecas públicas, nenhuma delas em escola.

Na manhã desta quinta-feira, Bolsonaro voltou à carga, desta vez afirmando que o livro “estimula precocemente as crianças para o sexo” e “escancara as portas da pedofilia”.

Com a palavra, Hélène Bruller.

Pergunta. Você sabia que o seu livro, Aparelho Sexual e Cia., estava sendo criticado por um candidato à presidência no Brasil?

Reposta. Acabo de descobrir e me surpreendeu muito. O senhor Bolsonaro sabe muito bem que, ao dizer coisas ruins sobre o meu livro, ele aumenta consideravelmente as vendas. Então eu me pergunto: será que o senhor Bolsonaro quer divulgar o meu livro? Inconscientemente, eu até acho que sim. Eu acho que lá no fundo do Bolsonaro existe um pequeno garoto, o petit Jair, que teria adorado que, na sua infância, lhe tivessem dado de presente um exemplar de Aparelho Sexual e Cia ao invés de ficarem, com caras transtornadas, berrando e dizendo para ele: “Petit Jair, você vai para o inferno se se masturbar”.

P. O livro já foi alvo de críticas pela sua temática, seja na França ou em algum outro país?

R. Grupos extremistas católicos já tentaram proibir o livro e a exposição que foi feita a partir dele. Como sempre, aumentaram o sucesso da obra. Talvez eu devesse agradecê-los... Mas aí já é me pedir demais.

[A exposição à qual Bruller se refere, segundo uma nota enviada ontem pela Companhia das Letras, ficou em cartaz duas vezes na Cité des Sciences et de l’Industrie, em Paris, e viajou por sete anos por diferentes países europeus]

P. A Companhia das Letras, editora que lançou o seu livro no Brasil, disse que sugeria o livro para crianças que tinham entre 11 e 15 anos de idade...

R. Eu acho que a faixa etária não é um bom parâmetro. Há crianças de 12 anos que não têm a maturidade necessária para entender respostas sobre a sexualidade; enquanto que há crianças de oito anos que já pedem por essas respostas. Eu acho que é o papel dos pais olhar e folhear os livros para julgar se os seus filhos têm a maturidade necessária para lê-los.

P. Por que você quis fazer que tratasse de sexualidade para as crianças?

R. Quis fazer o livro que eu sonhava ter quando era uma criança. Não me importava nada as informações sobre sexualidade que, durante a minha infância, me chegavam nos livros: o nome dos hormônios, como se parece um feto na quarta semana de gravidez; ou mesmo as imagens de um parto. Aquilo tudo era sério? Eu tinha 12 anos! Naquela idade eu não tinha nenhuma vontade de parir. O que me preocupava de verdade era saber o que eu deveria fazer se um dia um menino me beijasse. Então eu decidi responder essas perguntas no livro para que outras crianças pudessem se tranquilizar.

P. Como você definiria o seu livro?

R. É um livro sobre o medo. Sobre o medo de virar adulto, o medo de viver a sua sexualidade —algo que muitas vezes os extremistas apresentam às crianças como algo sujo. A questão do livro não é dizer às crianças que a sexualidade é algo que diz respeito a elas hoje, mas sim dizer-lhes que a sexualidade será parte da sua vida adulta; e que assimilá-la de forma serena é a melhor maneira de vivê-la como algo saudável.

P. Na sua opinião, quais as consequências de simplesmente não tratar sobre sexualidade com crianças e adolescentes?

R. Eu acho que é preciso informar muito bem às crianças que peçam informação sobre sexualidade porque uma pessoa bem informada saberá se proteger, enquanto que alguém que vive na ignorância se torna uma presa fácil. Todo mundo sabe disso. Eu acho que é essa justamente a técnica dos extremistas — e dos pedófilos também: usar a ignorância para melhor controlar as pessoas.

P. Você disse na resposta anterior que a sexualidade não pode ser vista como algo sujo.

R. Considerar a sexualidade como uma coisa suja já é um verdadeiro problema em si. Por outro lado, se a sexualidade é percebida como algo bonito e saudável, por que não falar sobre ela com as crianças? E, além do mais, é preciso deixar de confundir “viver a sexualidade” com “falar de sexualidade”. É evidente que informar, trazer respostas, tranquiliza. E com isso você ajuda o jovem a decidir o melhor momento para viver, ele mesmo, a sua própria sexualidade.

E mais uma coisa: se ignoramos tudo, como podemos saber a diferença entre sexualidade e pornografia? Esse senhor, o Bolsonaro, nunca falou com mulheres sobre a experiência da sexualidade. Porque, do contrário, ele saberia que muitas jovens que foram casadas com homens sem ter qualquer informação sobre a sexualidade lamentaram essa união. Algumas se casaram com homens torpes, nunca conheceram o prazer ou sequer souberam que ele existe! Outras deixavam seus maridos realizarem certas práticas, como a sodomia, sem que elas necessariamente as desejassem. Tudo isso porque essas mulheres não sabiam que tinham o direito de dizer "não". É essa a vida que o senhor Bolsonaro promete às jovens mulheres brasileiras? Socorro!

P. O que você achou das acusações feitas por Bolsonaro de que o seu livro estimulava de forma precoce a sexualidade de crianças?

R. O senhor Bolsonaro pode dizer o que bem quiser sobre o meu livro. Com isso ele não consegue mudar o conteúdo da obra e eu acho que os brasileiros são suficientemente inteligentes para formarem eles mesmos suas opiniões sobre o livro. Há, no entanto, algumas particularidades muito claras da personalidade do senhor Bolsonaro: ele denigre o meu trabalho, então é uma pessoa sem qualquer respeito; e se sente no direito de usar o meu livro para sua autopromoção sem me consultar antes, então é uma pessoa desonesta. Não são as características que esperamos de um suposto representante da moralidade.

Agora o mais importante é a perversidade subjacente desse senhor: ele grita para quem quer ouvir que não temos que falar muito sobre a sexualidade, mas ele só fala disso. Eu acho que as obsessões do senhor Bolsonaro dizem muito sobre o que ele próprio tem na cabeça.

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