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Caracas, a cidade onde o metrô é gratuito porque não há como cobrar

Medida aumentou a afluência de passageiros e também o caos no deteriorado transporte da capital venezuelana

Venezuelanos usam o metrô de Caracas, em janeiro de 2017.
Venezuelanos usam o metrô de Caracas, em janeiro de 2017.Thierry Monasse (Corbis via Getty Images)

Os letreiros escritos à mão se repetem de guichê em guichê nas estações do metrô de Caracas, capital da Venezuela. “Fechado”. A indicação não impede o uso do serviço de transporte, mas há alguns meses ninguém precisa pagar para usá-lo. Os bilhetes, cartõezinhos amarelos com uma faixa marrom, acabaram e não foi possível por parte da empresa estatal importá-los novamente. Além disso, a escassez de moeda torna impossível pagar uma tarifa subsidiada, que se mantém sem aumentos há anos, e que a inflação devorou completamente.

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Um jovem tenta comprar um bilhete para evitar a fila que se forma para passar gratuitamente em um sistema saturado de usuários. Uma viagem custa 4 bolívares — valor irrisório, já que um dólar equivale a quase 3,5 milhões de bolívares — que podem ser pagos com duas notas de 2 bolívares. O responsável pela estação rasga os bilhetes na cara dele e o faz passar pela porta livre.

A situação é uma mostra das complicações monetárias da precária economia venezuelana e da gestão do regime de Nicolás Maduro, que há meses arrasta uma hiperinflação insuportável. Segundo o FMI, os preços aumentaram 1.800.000% em dois anos. Também é uma mostra de como a crise econômica e social da Venezuela afetou até o mais básico da rotina dos venezuelanos.

“A empresa não voltou a comprar os rolos de boletos, porque não tem recursos nem para isso, e também não quis atualizar a tarifa para um valor mais justo, o que se reflete na grande deterioração do sistema”, denuncia Alberto Vivas, da Associação Civil Família Metrô, que reúne trabalhadores do metrô que monitoram seu funcionamento.

O metrô funciona gratuitamente porque não consegue cobrar e também não há quem o faça. A migração impactou fortemente a empresa estatal, que há dois anos tomou a decisão de suspender a tramitação de demissões em seu departamento pessoal, para tentar conter o êxodo em massa de trabalhadores especializados. Uma pequena estação exige pelo menos oito funcionários para trabalhar na bilheteria, supervisão de acessos, plataformas e trens, mas normalmente pode haver dois ou três. “A diáspora profissional também afetou muito as operações. O absenteísmo dos trabalhadores é alto e diante da impossibilidade de se demitir muitos acabam desertando, ou seja, vão embora do país sem liquidar seus contratos, porque o que se economizou em auxílio social não vale nada com essa hiperinflação”, afirma Vivas.

Por décadas, a chamada “cultura metrô” era motivo de orgulho para os cidadãos e a empresa se tornou um modelo de gestão na América Latina desde que começou a funcionar em 1983. Enquanto em outras cidades os metrôs costumam ser hostis com o excesso de passageiros, em Caracas o metrô era um oásis de pontualidade, limpeza e cidadania embaixo de uma cidade caótica. O morador alterava sua conduta assim que descia a primeira escada rolante para chegar às plataformas.

Revitalização inacabada

Hoje, corpos apertados brigam para segurar nos tubos tentando buscar equilíbrio sobre o piso do trem, sujo depois de dias sem limpeza. Calor dentro e fora do vagão. As pessoas vão chacoalhando na hora de pico ou em momentos de pouco tráfego depois de uma espera desesperadora de dez, quinze ou trinta minutos, quando o trem finalmente sai do túnel. Em meio à massa de passageiros há pedintes, vendedores, ladrões, pessoas buscando uma lufada de oxigênio. Em cada parada, para entrar ou sair do trem é preciso treinamento em fórceps. Tudo faz barulho nos vagões da Linha 1 do metrô de Caracas, onde viajam diariamente pelo menos dois milhões de caraquenhos, e que mal completaram seis anos de vida, depois de uma milionária revitalização, salpicada de corrupção, que não resultou em melhorias.

Para funcionar em sua melhor forma é preciso colocar para rodar 38 trens. Na terça-feira desta semana havia 27 rodando no ramal principal, o único reformado depois de mais de 30 anos de serviço. Em outros dias pode haver menos. A disponibilidade de uma frota nova foi afetada em 30%, como reconheceu recentemente o presidente do sindicato da empresa, Edinson Alvarado — ligado à diretoria da empresa — que atribuiu isso à suposta guerra econômica internacional que impediu o Governo de importar as peças necessárias. Em outras linhas (são quatro em uma rede de 70 quilômetros) a falta de trens operacionais pode chegar a 50%, e por isso a mobilidade na cidade se torna cada vez mais difícil. Assim funcionou este ano o metrô e o serviço se tornou um pesadelo ao qual a maioria da população que opta pelo metrô gratuito está condenada em meio à dura crise econômica do país, e como única possibilidade diante das limitações do transporte público de superfície. A gratuidade acaba saindo cara.

Segundo denúncias da Família Metrô, pelo menos 13 novos trens estão totalmente parados por avarias e são usados para tirar peças de reposição para a frota de 48 trens da Linha 1 compradas da empresa espanhola Construcciones y Auxiliar de Ferrocarriles (CAF), por meio de um contrato para a modernização do sistema assinado em 2008 por 1,85 bilhão de dólares, sobre o qual se investigam questões como pagamento de suborno a funcionários e ocultação de fundos em Andorra.

Essa revitalização milionária ficou inacabada e isso é visível no serviço. As avarias são frequentes e obrigam o desalojamento dos passageiros no meio das vias e túneis, sem apoio da equipe de segurança, como ocorreu na quarta-feira e na segunda-feira desta semana por falta de energia. Os 48 trens novos chegaram, mas a adequação do sistema e sua transição da tecnologia francesa, com a qual se inaugurou o Metro, para a espanhola não foi feita adequadamente. O piloto automático, coração de um sistema como este, não foi colocado em funcionamento seis anos depois da compra dos trens. “A única coisa que fizeram foi modificar o limite de velocidade para um máximo de 80 quilômetros por hora, mas sob responsabilidade total do condutor”, adverte Ricardo Sansone, também da Família Metrô.

Subestações elétricas, renovação de 42 quilômetros de vias (21 em cada sentido) e melhorias das instalações das estações também faziam parte do contrato que não foi executado. “O problema do Metrô se agravou visivelmente e vai além do que os usuários percebem, como as falhas nos trens, as escadas rolantes, as portas giratórias, o ar condicionado. Também está no que não se vê, como ventiladores de emergência sob as plataformas, as bombas de água, as subestações elétricas e tudo que a falta de manutenção preventiva gera”, acrescenta Sansone.

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